2. EFEITO VINCULANTE: LEITURA CRÍTICA E FIGURAS AFINS NO DIREITO COMPARADO
2.1 Eficácia erga omnese efeito vinculante
A despeito de demais efeitos, as decisões proferidas em sede de controle concentrado de constitucionalidade, inclusive aquelas que importem em interpretação conforme a Constituição e em declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, têm eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal, a teor do art. 28, parágrafo único da Constituição.
Acentua Teori Albino Zavascki que "há dificuldade em estabelecer, com precisão, o que é efeito vinculante e o que o diferencia da eficácia erga omnes", [82] porque, citando o Min, Moreira Alves, "a eficácia contra todos ou erga omnes já significa que todos os juízes e tribunais, inclusive o Supremo Tribunal Federal, estão vinculados ao pronunciamento judicial". [83]
O ponto ora abordado por certo é pantanoso e envolto em muitos questionamentos. Todavia a aludida dificuldade, ao nosso ver, com a devida venia, reside na similitude de vocábulos utilizada no voto do Min. Moreira Alves, quando da fundamentação da decisão exarada na ADC n. 01.
Na passagem citada por Zavascki, a expressão "vinculados", frise-se, se refere, em verdade, à extensão do julgado (erga omnes, espraiando-se contra todos, incluindo o Poder Legislativo e o próprio Supremo Tribunal Federal), [84] não se confundindo com o efeito vinculante instituído pelo EC n. 03/93. Conforme assinala Moreira Alves em seu voto, verbis:
A eficácia erga omnes das decisões de mérito proferidas em ambas essas ações as impõe a todos, mas é o efeito vinculante da decisão de mérito na ação declaratória de constitucionalidade que lhe permite, prontamente, defender a segurança jurídica com o respeito da ordem constitucional assegurado por esse meio de controle. [85] (grifamos)
Desse modo, podemos observar que há uma sensível diferença no que concerne ao aspecto dos limites subjetivos ou, em outras palavras, da extensão de ambos os efeitos. Enquanto a eficácia erga omnes, em face de todos, se exaure, o efeito vinculante tem abrangência mais restrita, abarcando o Poder Executivo (incluindo-se aí a administração Pública federal, estadual, distrital e municipal) e os demais órgãos do Poder Judiciário (ou seja, todos os órgãos do Poder Judiciário, excetuando o Supremo Tribunal Federal).
De maneira alguma, diante da dicção da EC n. 03/93, se poderia concluir que esta estendeu o efeito vinculante ao Poder Legislativo, uma vez que esta não o fez expressamente. Igualmente, no que tange ao próprio Supremo Tribunal Federal, este não é alcançado pelo efeito vinculante dado que este é atribuído aosdemais órgãos do Poder Judiciário. [86]
Além de diverso o alcance dos efeitos ora estudados, há outro aspecto que os diferencia e revela-se de fundamental importância para o presente trabalho, qual seja: a possibilidade de garantir a autoridade das decisões proferidas em sede de controle abstrato de normas.
Tais decisões quando dotadas somente de eficácia erga omnes, possibilitavam que as demais instâncias do Poder Judiciário decidissem de modo diverso, restando às partes somente a possibilidade de lançar mão de recurso extraordinário [87] ou ação de desconstituição, no caso de sua aplicação por autoridades administrativas, para que estas fossem respeitadas. [88] O efeito vinculante, por sua vez, impõe sua observância, revelando, assim, nítido aspecto subordinante. Decorre daí relevante conseqüência de caráter processual, notadamente a possibilidade de utilização da reclamação para assegurar a eficácia das decisões da Corte. [89]
Quanto ao aspecto da natureza e fundamentos em que está calcada a eficácia erga omnes, há um vazio doutrinário.Moreira Alves aduz ser a eficácia erga omnes decorrência da "própria natureza do controle abstrato de normas". [90] Não aborda, todavia, a natureza da própria eficácia erga omnes. Sobre o ponto, Lúcio Bittencourt observa que os tratadistas americanos, não restaram por fundamentar a eficácia erga omnes, sendo acompanhados nessa trilha pelos doutrinadores pátrios, os quais apenas repetiram os ensinamentos daqueles, sem buscarem as razões em que estavam calcados. [91] Todavia o referido autor resignando-se frente à dificuldade ou impossibilidade de justificar tal amplitude de efeitos, a atribui aos princípios que orientam a coisa julgada, verbis:
É que, em face dos princípios que orientam a doutrina de coisa julgada e que são comumente aceitos entre nós, é difícil, senão impossível, justificar aqueles efeitos, que, aliás, se verificam em outras sentenças como, por exemplo, as que decidem matéria do estado civil, as quais, segundo entendimento geral prevalecem erga omnes. (grifamos)
Ao nosso ver, conforme acima destacado, a razão de ser da utilização da expressão erga omnes está calcada no fato de que a pecha de inconstitucionalidade decorrente do julgamento de lei em tese, acarreta a retirada dessa lei do ordenamento jurídico. Desse modo, uma vez declarada a inconstitucionalidade de determinada norma, reconhecesse sua nulidade desde o início, dado que dissonante de seu próprio fundamento, qual seja, a Constituição. Daí deflui que, não integrando o ordenamento, a norma deixa de existir, se exaure perante todos.
"O Efeito vinculante da decisão", ao seu passo, conforme ressaltado pelo Min. Gilmar Mendes:
está intimamente vinculado à própria natureza da jurisdição constitucional em dado Estado democrático e à função de guardião da Constituição desempenhada pelo Tribunal (...) Em verdade, o efeito vinculante decorre do particular papel político-institucional desempenhado pela Corte ou pelo Tribunal Constitucional, que deve zelar pela observância estrita da Constituição nos processos especiais concebidos para solver determinadas e específicas controvérsias constitucionais. [92] (grifamos)
A busca dos fundamentos do efeito vinculante é um assunto, por certo, demasiado polêmico, tendo gerado intensos debates no cenário nacional. É lícito, portanto, afirmar que não existe unanimidade entre nossos doutrinadores, sendo defendidas teses divergentes da acima esposada por autores de forte compleição intelectual, como Ingo Sarlet, o qual igualmente preocupado com a manutenção do Estado Democrático de Direito afirma que "as medidas reformadoras já realizadas e propostas, em verdade estão contribuindo para erosão e distorção das instituições democráticas entre nós". [93] Dentre os motivos para tanto, aponta a fragilização do controle difuso e incidental de constitucionalidade ao qual atribui a preservação da abertura do processo de interpretação jurídico-constitucional. Além disso, apesar de admitir a vinculação das decisões declaratórias de inconstitucionalidade, desde que venham a afastar o ato inconstitucional, assevera quanto à ação declaratória de constitucionalidade, com esteio em Lênio Streck e Gomes Canotilho, que esta ao atribuir caráter normativo às decisões, transformam a Corte numa espécie de legislador positivo, o que, a seu ver, ofenderia os princípios da separação dos poderes e do Estado de Direito. Nessa linha, ademais, apoiado em lição de Carmem Rocha, aduz que o Supremo Tribunal Federal acaba por exercer funções de Poder Constituinte Reformador, já que sua interpretação se converte em norma com força constitucional. [94]
Importante aí ressaltar ante o fato (e aí usamos o vocábulo fato intencionalmente, sem nos comprometer com qualquer relativismo subjetivista) da fragmentação do vocabulário, onde conceitos como o de "Estado Democrático de Direito" alberga fundamentações de teses que trilham por caminhos antagônicos, vez que abordados sob diferentes enfoques, com diferentes visões sobre a jurisdição constitucional e, por conseguinte, do papel a ser desempenhado pelo Supremo Tribunal Federal.
2.2 Limites objetivos do efeito vinculante
No estudo dos elementos do efeito vinculante, emerge a discussão a propósito dos limites objetivos deste instituto. Deve-se indagar se o efeito vinculante transcende a parte dispositiva da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal.
A Corte, quando do julgamento da Reclamação 1.987-0 DF, decidiu, em conflito que envolvia questão rumorosa, que os motivos determinantes da decisão também se estendem a outras hipóteses. In casu, tratava-se de reclamação ajuizada pelo Governador do Distrito Federal, na qual se sustentava que a ordem de seqüestro de recursos públicos para o pagamento de precatório vencido, emanada da Juíza presidente do Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região, com base na EC n. 30/00 e no art. 78, § 4°, teria violado o conteúdo essencial da decisão proferida na ação direta de inconstitucionalidade n. 1662/SP.
A decisão ofendida revelou a inconstitucionalidade da Instrução Normativa n. 11/97, do Tribunal Superior do Trabalho, diploma no qual se equiparava à hipótese de preterição do direito de preferência ao caso de não inclusão do débito no orçamento do ente devedor e a de pagamento inidôneo, firmando entendimento de que exclusivamente se aceita o seqüestro de verbas públicas quando da comprovada preterição do direito de procedência.
Entendeu o Tribunal que "qualquer ato administrativo ou judicial, que determine o seqüestro de verbas públicas em desacordo com a única hipótese prevista no art. 100 da Constituição, revela-se contrário ao julgado e desafia a autoridade da decisão de mérito tomada na ação direta em referência, sendo passível, pois, ser impugnado pela via da reclamação". [95]
No mesmo sentido é a lição de Ives Gandra Martins em conjunto com o Min. Gilmar Mendes, ao destacar que o efeito vinculante não pode estar adstrito à parte dispositiva da sentença, uma vez que sua inspiração repousa no direito germânico, somado ao fato de que a proposta original apresentada pelo Deputado Roberto Campos, em que pesem as posteriores modificações, deixava clara tal intenção. [96]
Assim, o conteúdo extraído da parte dispositiva, bem como os fundamentos determinantes da decisão, vinculam todos os tribunais e autoridades administrativas nos casos futuros.
Ao nosso ver, a questão poderia ser analisada sob enfoque diverso sem comprometer os cânones do processo civil, ou deixar qualquer margem de dúvida a esse respeito, antes de se ampliar os limites objetivos da coisa julgada, estendendo-a aos motivos determinantes da decisão, em que pese o efeito vinculante tenha tido o propósito da "das bindungsvircum" alemã.
Segundo nos ensina Liebman:
é exata a afirmativa de que a coisa julgada se restringe à parte dispositiva da sentença. A expressão entretanto deve ser entendida em sentido substancial e não apenas formalístico, de modo que compreenda não apenas a frase final da sentença, mas também tudo quanto o juiz porventura haja considerado e resolvido acerca do pedido feito pelas partes. Os motivos são, pois, excluídos por essa razão da coisa julgada, mas constituem a amiúde indispensável elemento para determinar com exatidão o significado e o alcance do dispositivo. [97] (grifamos)
Em outras palavras: os fundamentos da sentença não são abarcados pela coisa julgada, mas devem ser tomados em consideração para se entender o verdadeiro e completo alcance da decisão. [98] Sob esse prisma intelectivo, poder-se-ia alcançar resultado semelhante, em harmonia com as linhas mestras que orientam o processo civil brasileiro.
2.3 Limites subjetivos do efeito vinculante
No que concerne aos limites subjetivos do efeito vinculante, deixou claro a EC n. 03/93 que este ficou reduzido aos órgãos do Poder Executivo e Poder Judiciário, os quais uma vez proferida decisão declaratória de constitucionalidade ou inconstitucionalidade ficam obrigados a guardar-lhe plena obediência. [99] Desse modo, declarada a inconstitucionalidade de uma norma, nada impede que o Legislativo edite outra norma de idêntico conteúdo, devendo ser ajuizada nova ação objetivando a declaração em tese de sua inconstitucionalidade. [100]
Questão interessante é a de se saber se o efeito vinculante resta por vincular as decisões proferidas pelo próprio Supremo Tribunal Federal.
Sob o ponto de vista legal, a conclusão é de que o texto da EC n. 03/93 exclui a vinculação da Excelsa Corte às suas próprias decisões ao referir expressamente que o efeito vinculante se refere "aos demais órgãos do Poder Judiciário". [101]
Desse modo, somente quando o desrespeito se der em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário à decisão do Supremo Tribunal Federal, estará caracterizada, lesão à autoridade de seu julgado, afigurando-se legitima a propositura de reclamação.
Além disso, levantamos a seguinte questão: o texto da EC 03/93 possibilita a exegese de que o efeito vinculante abarca a totalidade dos jurisdicionados? Em outras palavras: as pessoas, sejam elas físicas ou jurídicas, devem obedecer ao decidido pelo Tribunal mesmo não tendo sido a referida emenda expressa nesse sentido? Pensamos que uma resposta afirmativa se impõe. Isso porque, em que pese a dicção da referida emenda não ter sido expressa nesse sentido, deve-se observar que esta objetivou dar maior efetividade aos julgados da Corte em sede de controle normativo abstrato, assegurando sua autoridade de forma imediata pela via da reclamação. Nessa linha de intelecção, não seria razoável esperar que alguém ingressasse no Judiciário para, só em caso de ver proferida decisão contrária ao abstratamente decidido, a qual poderia se dar somente após sucessivos recursos, ingressar com uma reclamação. [102] Ao nosso juízo, a aludida emenda ao prescrever a vinculação dos demais órgãos do Poder Judiciário, por via reflexa, previu a vinculação da totalidade dos jurisdicionados. Tal entendimento, ao nosso ver, ganha relevo especial relevo em se tratando de processos de massa e se coaduna com o princípio da celeridade processual, impedindo a eternização das demandas e a repetição de questões já decididas, bem como se amolda com a linha de postura de ampliação da legitimidade para propositura da reclamação adotada pelo Pretório Excelso. [103]
2.4 Efeito vinculante no direito comparado
Tendo em vista a brevissíma tradição do efeito vinculante em nosso ordenamento jurídico, afigura-se importante o seu estudo no direito comparado, o que, além de ampliar o horizonte de conhecimento, viabiliza uma melhor avaliação do instituto e, por via de conseqüência, enriquece o debate no que alude à aspectos ainda candentes entre nós, tais como vinculação do Parlamento, da própria Corte Constitucional e dos demais órgão do Poder Judiciário. A fim de realizar tal desiderato, selecionamos dois países representantes de diferentes sistemas jurídicos, aonde a vinculação já vem se desenvolvendo há muitos anos, quais sejam: Alemanha, de tradição romano-germânica e Estados Unidos, país alinhado com a common law, mas também orientado pelos statutes.
2.5 Direito alemão
O efeito vinculante remete sua origem ao Direito processual alemão.Destarte, porquanto o efeito vinculante no direito pátrio foi inspirado no instituto processual germânico do Bindungswirkung (§ 31, alínea I, da Lei da Corte Constitucional alemã),afigura-se importante analisar a paisagem na qual se estruturou o aludido instituto. [104]
No ordenamento tedesco, o efeito vinculante tem por desígnio conceder maior eficácia às decisões articuladas pelo Tribunal Constitucional Federal Alemão, [105] garantindo força vinculante não apenas à parte dispositiva da decisão, mas, além disso, aos chamados fundamentos ou motivos determinantes (tragende Gründe).
Observa Peter Häberle quanto aos limites subjetivos do efeito vinculante que:
O art 31.°.1 da LTCFA diz ‘as decisões do TCFA vinculam os órgãos constitucionais da Federação e do Estados Federados, bem como todos os tribunais e autoridades’. Deste modo, amplia-se o âmbito pessoal da vigência com expressão do alto nível do TCFA como órgão constitucional. [106]
Nessa seara, verifica-se que, na Alemanha, a orientação fixada pelo Bundesverfassungsgericht, enquanto subsistente, resta por vincular todos os órgãos, tribunais e autoridades da União e dos Estados, revogando ou modificando medidas com ela incompatíveis e impondo que estes tomem providências a fim de observar a decisão. [107]
Luís Afonso Heck vai além ao consignar que o § 31, alínea I da Lei sobre o Tribunal Constitucional Federal não abarca somente "os órgãos constitucionais da Federação, dos estados, todos os tribunais e autoridades, mas também todo o cidadão diretamente, i.e. todas as pessoas naturais e jurídicas". [108]
Tem-se como conseqüência uma extensão significativa da coisa julgada, na medida em que restam vinculados órgãos e autoridades que não haviam integrado o processo. [109]
Atualmente, na Alemanha, em se tratando do aspecto da vinculação do Parlamento, destaca o Min. Gilmar Mendes que:
A declaração de nulidade de uma lei não obsta à sua reedição, ou seja, a repetição de seu conteúdo em outro diploma legal. Tanto a coisa julgada quanto a força de lei (eficácia erga omnes) não lograriam evitar esse fato. Todavia, o efeito vinculante, que deflui dos fundamentos determinantes (tragende Gründe) da decisão, obriga o legislador a observar estritamente a interpretação que o tribunal conferiu à Constituição. [110] (grifamos)
Alusivamente à vinculação do Parlamento, leciona o referido mestre que não há consenso sobre a questão no Tribunal Constitucional Federal Alemão, posicionando-se pela não-viculação, conforme se depreende da seguinte passagem, verbis:
No seio do tribunal é discutido, nas duas secções, se, numa declaração de nulidade das normas do legislador, subsistente, uma ‘proibição de reiterar a norma’ (ver E 69, 12 [115; 77, 84[103]). Tendo em conta as mudanças no Estado e na sociedade, dever-se-ia deixar espaço ao poder de intervenção do legislador, de tal modo que lhe fosse permitido estabelecer novas regras tanto mais que, deste modo, o próprio TCFA poderia corrigir-se. [111]
No que concerne ao limites objetivos do efeito vinculante, Peter Häberle traça severas críticas ao instituto. Argumenta que a solução de dotar os fundamentos determinantes de força vinculante restará por engessar os demais tribunais, comprometendo a força inovadora dos eventuais votos dissidentes, ao afirmar que:
A mesma idéia de abertura deveria decidir o debate sobre se a eficácia vinculativa do art. 31.° da LTCFA afecta apenas o acórdão ou também a ratio decidendi ou fundamentos jurídicos nos quais ele se apóia. O TCFA inclina-se para essa segunda postura na medida em que ele próprio alude muitas vezes (e de forma consciente) a sua função de "interprete determinante e guardião da Constituição" (E 40, 88[93]). Esta "canonização" da ratio decidendi deve ser recusada, segundo a tese aqui defendida de uma compreensão processual, dinâmica da Constituição. Caso se estenda a força vinculativa das decisões também à ratio decidendi, o "dialogo jurídico" seria afectado, os restantes tribunais perderiam a coragem para efetuar outras interpretações da constituição e a força inovadora dos eventuais votos dissidentes seria minimizada. A sociedade aberta dos interpretes da constituição ficaria, pelo menos em parte, "fechada". [112] (grifamos)
Outro aspecto importante concerne ao reconhecimento do efeito vinculante tão somente às decisões de mérito proferidas pelo Bundesverfassungsgericht, é a circunstância de que "o efeito vinculante não imanta julgados de caráter exclusivamente processual, não abrangendo, por isso, decisões de simples caráter interlocutório". [113]
No que alude ao princípio da independência dos juízes em face das decisões proferidas pelo Bundesverfassungsgericht, acentua o Min Gilmar Mendes que tal questão não provoca maiores indagações, "uma vez que, segundo orientação doutrinária assente, essa independência é entendida como liberdade em relação aos demais órgãos estatais que não os próprios tribunais". [114]
2.6 Direito norte americano
Forte em Mauro Cappelletti, Clèmerson Merlin Clève ensina que a funcionalidade do modelo de controle de constitucionalidade americano "repousa no princípio do stare decisis, na força vinculante das decisões judiciais". Assenta Clève que em razão desse princípio, no momento em que a Supreme Court decide a respeito de qualquer questão constitucional, sua decisão é vinculante para todos os demais órgãos judiciais", onde a lei "embora permanecendo on the books é tornada uma dead law, uma lei morta." [115]
O stare decisis (stare decisis et non quieta moreve) é, antes de tudo, uma política jurisprudencial, na qual o precedente criado deve ser seguido para o julgamento de casos substancialmente iguais. Edifica-se sobre as bases da previsibilidade e estabilidade, garantido que os julgamentos de casos com iguais características sejam decididos pelos magistrados de forma não contraditória.Nas palavras de Cole, "stare decisis é a política que requer que as Cortes subordinadas à Corte de segunda instância que estabeleceu o precedente sigam o precedente e que não disturbem um ponto estabelecido". [116]
Segundo a leciona de Cole, enfocando a questão sob o prisma pragmático:
Quando o pesquisador encontrar um caso que está tratando as mesmas questões jurídicas e tais expressões são baseadas essencialmente sobre a mesma situação de fato relevante, tal caso é tido como análogo. Quando o caso análogo for decidido pela Corte de última instância na jurisdição em que o pesquisador está buscando um precedente, tal caso, se decidido por maioria de votos, é um precedente. Em tal situação o precedente em questão é tido como precedente vinculante quando decidido por uma Corte recursal do sistema estadual ou federal. Se o caso encontrado não for de decisão majoritária, ele será tido como autoridade persuasiva. Tal caso também será autoridade persuasiva se não tiver sido do mesmo foro, dentro do Estado em questão ou de circunscrição judiciária em questão. (...) O caso precedente será determinado como vinculante quando os fatos relevantes no caso precedente são suficientemente semelhantes aos do caso que se apresenta para julgamento.(...) Todas as alegações da Corte, que não são necessárias para a decisão naquele caso são dicta. [117]
Tal característica do sistema americano acarreta uma fundamental distinção, qual seja: a de se saber quais os fatos determinantes que foram levados em consideração para o precedente estabelecido, os que se revestem somente de caráter persuasivo (obter dicta).
[118]Crítica que se faz ao instituto é no sentido de que os precedentes jurisprudenciais com força vinculante, assumem uma presunção de boa fundamentação e embasamento legal, o que nem sempre corresponde ao que ocorre de fato. Isso significa, por conseguinte, que uma mera opinião pode definir uma gama de posições que excedem os limites da lei, tornando-se base para futuros precedentes, como se fosse a própria lei.
Considerações dessa ordem foram atacadas pelo Juiz Brandeis, o qual, em homenagem à segurança jurídica, considera que "em muitos casos é mais importante que a regra de lei aplicável seja estabelecida do que mesmo que ela seja estabelecida corretamente".
[119]É curioso notar que apesar de o juiz de primeira instância nos Estados Unidos estar vinculado a qualquer precedente verificado como aplicável ao caso a ser decidido, uma vez apurado o seu desgaste com o passar do tempo, pode o magistrado recusar-se a aplicá-lo precedente, conforme anotou Cole, verbis:
Quando, porém, o juiz de primeira instância se depara com a aplicação de um precedente anterior que tenha sido muito desgastado como passar do tempo ou por outros casos precedenciais deixando claro que o precedente deveria ser revogado se o caso fosse submetido à Corte recursal própria, ele pode se recusar a seguir o precedente. [120]
Nesse sentido, Sérgio Sérvulo da Cunha transcreve parágrafo clássico deBrandeis, membro da Supreme Court:
O stare decisis não é como regra de res judicata, uma regra universal, inescusável. A regra do stare decisis, ainda que tenda para a consistência de uniformidade das sentenças, não é inflexível. Que seja seguida ou deixada de lado, é uma questão de discrição do tribunal. [121] (grifamos)
A própria Suprema Corte não está demasiadamente aferrada ao princípio de fidelidade ao precedente. Em muitos casos, o Tribunal chega a admitir francamente seu erro em decisões anteriores, resultando na revogação de precedentes consagrados no direito americano há mais de um século.
[122] Todavia, não se pode deixar de constatar, na hipótese de "correção de erros", uma boa dose do pragmatismo norte-americano. Isso porque as modificações por intermédio de emendas à Constituição americana são praticamente impossíveis, o que limita a possibilidade de overruling.Podemos verificar, portanto, que o sistema norte-americano sustenta-se em uma tênue e delicada linha que separa a segurança jurídica da possibilidade de renovação e oxigenação da leitura da Constituição, amoldada ás freqüentes novas exigências surgidas no decorrer do processo histórico.
[123]