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A reclamação no Supremo Tribunal Federal e o efeito vinculante no controle abstrato de constitucionalidade

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21/07/2005 às 00:00
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3. RECLAMAÇÃO NO ÂMBITO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: CONTEXTO EVOLUTIVO, OBJETO, NATUREZA JURÍDICA E RELAÇÃO COM O EFEITO VINCULANTE NO CONTROLE ABSTRATO DE NORMAS, UMA MUDANÇA DE PARADIGMA

3.1 Histórico da reclamação no Supremo Tribunal Federal

3.1.1 Origem e primeiros delineamentos jurisprudenciais

O instituto da Reclamação no direito brasileiro teve origem em construção jurisprudencial enraizada na teoria dos poderes implícitos, sob a marcante influência das transformações que ocorreram na Suprema Corte dos Estados Unidos, notadamente após o caso MacCulloch versus Maryland. [124]

Acentua José da Silva Pacheco que Marshall,no acórdão do caso MacCulloch versus Maryland, afirmou: "não há artigo na Constituição que exclua poderes incidentais e implícitos (implied powers), o que requereria que cada competência fosse minuciosamente descrita". [125] No mesmo sentido é a dicção de Madison, o qual afirma que "desde que um fim é reconhecido necessário, os meios são permitidos; todas as vezes que é atribuída uma competência geral para fazer alguma coisa, nela estão compreendidos todos os particulares poderes para realizá-la". [126]

No que tange ao poderes implícitos, Carlos Maximiliano, articula o seguinte ensinamento: "Onde um poder é conferido em termos gerais, interpreta-se como estendendo-se de acordo com os mesmos termos, salvo se alguma clara restrição for deduzível do próprio contesto, por se achar ali expressa ou implícita". [127]

Nessa linha, lapidar é o magistério de Nagib Slailbi Filho, o qual merece transcrição pela clareza e precisão com que aborda o tema, verbis: "Quando a Constituição dá a um órgão determinado encargo implicitamente lhe confere os meios de realização desse encargo". [128]

Tais ensinamentos, uma vez absorvidos pelo pensamento jurídico brasileiro, possibilitaram ao Pretório Excelso construir a reclamação como meio de solução de problemas para os quais não encontrava resposta própria ou eficiente pelo manejo de outras medidas que se achavam a seu dispor no ordenamento jurídico. [129]

Quanto ao ponto, expressivo é voto o do Min. Rocha Lagôa, no qual traça importante panorama sobre o reconhecimento dos poderes implícitos pela Corte, na oportunidade do julgamento da Rcl. n. 141-SP, verbis:

(...) a função precípua do Supremo Tribunal Federal é a de guardião da carta magna, de que é interprete máximo. Na vigência do estatuto político de 1891, decidiu este pretório excelso não constituir inovação ou acréscimo de jurisdição e conhecer, ele por apelação de cousas não expressamente mencionadas na Constituição, mas que por seu evidente caráter federal se deviam ter por incluídas na competência das justiças da União. Reconheceu assim implícita a competência federal para os crimes de moeda falsa, contrabando e peculato dos funcionários federais (acórdão n. 350, de 21 de setembro de 1898). Por igual admitiu este magno colégio judiciário sua competência para tomar conhecimento de ação rescisória contra seus próprios julgados, embora não houvesse então texto de lei dispondo expressamente a respeito (ac. 494 de 25 de outubro de 1899). (...) Ora vão seria o poder, outorgado a este Supremo Tribunal, de julgar em recurso extraordinário as causas decididas em única ou última instância por outros tribunais e juizes se lhe não fora possível fazer prevalecer seus próprios pronunciamento, acaso desrespeitados pelas justiças locais. Para tanto ele tem admitido o uso do remédio heróico da Reclamação, logrando desse modo fazer cumprir suas próprias decisões. [130] (grifamos)

Relevante notar que as primeiras reclamações apreciadas por volta da década de 1940 pelo Supremo Tribunal Federal, ainda não tinham contornos definidos, assumindo caráter administrativo ou, até mesmo, correicional.

3.1.2 Da adoção da reclamação pelo RISTF - Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, até o advento Constituição de 1967

Essa fase tem início com a introdução no RISTF de normas específicas sobre a reclamação. A feitura do regimento interno da Corte estava calcada no art. 97, inc. II, da Constituição Federal de 1946, onde se previa a competência para o Supremo elaborar seus regimentos internos. [131] Entretanto, não era um ponto pacífico a constitucionalidade de Pretório Excelso legislar sobre matérias processuais de sua competência, ante a ausência de previsão expressa.

Além disso, importantes delineamentos jurisprudenciais foram fixados nesse período. Superadas (pelo menos em parte) as discussões sobre a admissibilidade da medida, restaram muitas dúvidas quanto ao aspecto de se saber sobre sua natureza. [132] O Supremo Tribunal Federal -em jurisprudência vacilante, diga-se de passagem - aos poucos desvelava os contornos da reclamação assente no RISTF, diferindo-a da reclamação correicional. [133]

Quanto à legitimidade para promover a reclamação, estabeleceu-se que só podia lançar mão da referida medida quem fora parte em processo no qual restara proferida a decisão descumprida. [134]

No que alude à possibilidade de obter ampliação de julgado sem cunho normativo, expressiva afigura-se ementa da lavra do Min. Antônio Villas Boas, verbis: "Não é possível obter, mediante reclamação, ampliação de um julgado, sem cunho normativo, a casos pretensamente iguais". [135]

Marcelo Dantas salienta a "possibilidade de interpretação a contrário para os dias atuais", [136] desta decisão (grifamos). Isso porque, conforme se verá adiante, "para dar eficácia ao efeito vinculante é absolutamente necessária a reclamação". [137]

No final dessa fase, igualmente relevante foi o julgamento da Reclamação 691-SP, de relatoria do Min. Carlos Medeiros Silva, onde novamente se aventava a hipótese de decisão com caráter normativo. [138] Quanto ao decidido, frente ao objeto do presente trabalho, importa ressaltar que a utilização da reclamação, in casu, foi rejeitada, sob o fundamento de que não caberia reclamação em face de um ato de caráter normativo.

3.1.3 Da Constituição de 1967 até a Constituição de 1988 [139]

Até a Constituição de 1967, muito se discutiu sobre a constitucionalidade da reclamação ante a ausência de norma constitucional que conferisse competência ao Supremo Tribunal Federal para legislar por intermédio do RISTF sobre matérias processuais de sua competência.

Nessa fase, todavia, a autorização para que a Corte legislasse sobre os processos de sua competência ganhou envergadura constitucional, notadamente em virtude da expressa previsão constante no art. 115, parágrafo único, c, da Carta de 1967. [140] Ademais, sobreveio a EC n. 07/77, a qual manteve a mesma autorização no art. 120 da Carta. Tal providência veio a silenciar quaisquer vozes céticas quanto à constitucionalidade do RISTF prever a reclamação.

3.1.4 Constituição da República Federativa do Brasil (1988)

Atualmente, com o advento da Constituição de 1988, a reclamação ganhou envergadura constitucional. Funda-se nos arts 102, inc. I, l, e 105, inc. I, f, os quais a prevêem expressamente, atribuindo ao Supremo Tribunal Federal e ao Superior Tribunal de Justiça o processo e julgamento, em instância originária, da reclamação, sendo disciplinada pela Lei n. 8038, art 13, na forma do RISTF.

3.2.1 Objeto

A reclamação, contemplada pela Constituição de 1998, arts 102, inc. I, l, e 105, inc. I, f, objetiva a preservação da competência do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, bem como a garantia da autoridade de suas decisões. [141]

No que diz respeito ao aspecto da preservação da competência do Pretório Excelso, esta se desdobra em originária e recursal, dividindo-se em recurso ordinário ou extraordinário, notadamente em face do art. 102 da Constituição Federal de 1988. [142]

Em se tratando de garantia da autoridade das decisões, bem observa José da Silva Pacheco "que esta deve ser preservada quer seja proferida em instância originária, quer em recurso ordinário ou em recurso extraordinário, pelo STF, ou em instância originária, em recurso ordinário ou em especial, pelo STJ". [143] A esse rol acrescentamos a utilização da reclamação para garantia da autoridade das decisões proferidas em sede controle abstrato de constitucionalidade, pelo Supremo Tribunal Federal. [144]

3.2.2 Natureza jurídica

A doutrina e a jurisprudência sempre divergiram sobre a natureza da reclamação, inexistindo entendimento uníssono esse respeito. [145] Sintomática é a indagação do Min. Amaral Santos, quando da relatoria da Rcl. 831-DF já no ano de 1970, in verbis: "perdura difícil questão: É a reclamação ação ou recurso?". [146]

Muitos e diversos foram os entendimentos esposados por renomados juristas brasileiros sobre o assunto. Basicamente, em que pesem as sutilezas de pensamento, podemos dividir os entendimentos empenhados em classificar a reclamação em quatro grupos, quais sejam: correição parcial, procedimento administrativo, ação e recurso.

Embora a reclamação já tenha sido utilizada com o escopo correicional [147] ou, até mesmo, em moldes administrativos, [148] tais empregos pecam pela inconsistência, não podendo, desse modo, subsistir. Quanto ao aspecto correicional, salienta Roberto Rosas, que a reclamação não possui tal natureza, tendo em vista que esta está limitada aos pressupostos fixados na Constituição, com o intuito político de impedimento à usurpação da competência ou do decidido pela Corte. [149]Mutatis mutandis, a mesma argumentação serve para afastar a natureza administrativa. Contudo permanece a questão de se saber se a reclamação é ação ou recurso.

Em tempos recentes, o Supremo Tribunal Federal, com base no entendimento esposado pelo Min. Amaral Santos, mesmo em reclamações com o objetivo de resguardar decisões proferidas em sede de controle abstrato de normas e contando com inexpressiva maioria, tem pugnado pela natureza recursal, com todas as implicações daí decorrentes, dentre elas, em que pese a ausência de prazo, [150] a necessidade de uma relação processual em curso. [151]

Segundo Marcelo Dantas, a reclamação é uma ação de conhecimento, pois a espécie de tutela que se busca nela é a cognitiva, além do que a matéria da reclamação será submetida à tutela exauriente, uma vez que a decisão de mérito poderá fazer coisa julgada formal e material. O referido autor, porém, não vislumbra a classificação quinária das ações, mas ressalta que para os adeptos dessa teoria, a reclamação é tida como mandamental. [152]

Também entendemos que a reclamação ostenta natureza de ação, mas por motivos diversos. Ao nosso ver, o Texto, ao prescrever a competência do Pretório Excelso, topograficamente, localiza a reclamação dentre os processos de competência originária (e não recursal), deixando clara a natureza de ação e, por via de conseqüência, revelando-se desnecessária a existência de processo em andamento como pressuposto de sua interposição.

3.3 Reclamação e efeito vinculante no controle abstrato de normas

A reclamação, conforme enfatizado, tem como função processual, justamente, a de assegurar a autoridade das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal. Tal função, além de sua larga utilização nos processos subjetivos, hodiernamente, passou a ser empregada nos processos objetivos.

Conforme leciona André Ramos Tavares, "a Corte caminhou de uma posição excessivamente rigorosa, de não admitir a reclamação por desobediência a decisão proferia em processo objetivo, para a mais recente posição de admiti-la, sob certos pressupostos". [153] (grifamos)

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Marcelo Navarro Dantas, ao tratar da decisão proferida na RclQMC 397-RJ, escreve que "o Supremo principia a reconhecer, na reclamação, instrumento para dotar de maior eficácia – diria maior efetividade – seu julgados proferidos no controle concentrado de constitucionalidade". [154]

De fato, o efeito vinculante, das quais são dotadas as decisões proferidas em sede de controle concentrado de fiscalização abstrata, emana implicação de ordem processual, notadamente a possibilidade de utilização da reclamação para garantir a eficácia das decisões do Pretório Excelso. [155]

3.3.1 Legitimidade ativa para propositura da reclamação com o propósito de resguardar a autoridade das decisões dotadas de efeito vinculante, proferidas em sede de controle abstrato de normas

Em 1992, surge importante precedente no Supremo Tribunal Federal alusivamente à questão do manejo da reclamação no controle concentrado de constitucionalidade. Trata-se da RclQMC 397-RJ, de relatoria do Min. Celso de Mello. [156] Em inovadora construção jurisprudencial, a Corte restou por alargar a legitimidade para propositura da reclamação ao a admitir sua utilização na hipótese de controle abstrato de constitucionalidade, porém unicamente no caso de o reclamante também figurar como legitimado para propositura da ação direta de inconstitucionalidade.

O entendimento de só se admitir reclamação, com base em ação direta de inconstitucionalidade, em favor das partes que nela atuam, fundou-se no caráter objetivo de seu processo o qual impediria a admissibilidade de ingresso nele de qualquer espécie de interessado, como assistente ou terceiro prejudicado. Conforme essa orientação, em se tratando de controle abstrato, não há interessados outros, exatamente pela sua natureza de processo objetivo, que não os legitimados a participarem dessa relação jurídica processual.

Por ocasião do julgamento da Reclamação n. 706-SC, na qual discutiu-se, especificamente, acerca das implicações processuais do efeito vinculante oriundo da decisão de mérito em ação direta de inconstitucionalidade, sensível foi a evolução da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. [157] Na oportunidade, por nova construção pretoriana, alargou-se ainda mais a legitimação para propositura da reclamação, entendendo-se que poderia ajuízá-la mesmo quem não havia figurado no processo objetivo, desde que atingidos por decisões contrárias ao entendimento firmado pelo Pretório Excelso.

Quanto ao julgado anota André Ramos Tavares que "Pode-se dizer que houve uma verdadeira ‘adaptação’ de um instituto, por falta de uma decente disciplina do tema da desobediência ao efeito vinculante". [158]

Tal alargamento da legitimação, alusivamente à propositura da legitimação, também foi explicitado quando do julgamento da Rcl 1.987-0 Distrito Federal, onde se firmou o entendimento de que até mesmo ofensa à exegese produzida quando do julgamento de ação em sede de controle abstrato de constitucionalidade - hipótese em que os motivos que embasaram a decisão transcendem a parte dispositiva do acórdão - enseja a propositura de reclamação. [159]

Pode-se entender, desse modo, que a expressão "parte interessada" constante nos artigos 13 da Lei n. 8038/90 e 156 do RISTF passa a abarcar todos que forem prejudicados em razão de contrariedade ou inobservância dos julgamentos da Corte, guardando relação de paridade com o alcance dos limites objetivos e subjetivos do julgado a ser preservado. [160]

3.3.2 Possibilidade de execução dos julgados de caráter abstrato

Contrasta essa nova linha de julgados com a antiga jurisprudência da Corte, promovendo uma ruptura do velho paradigma que preconizava a impossibilidade de execução de decisões em sede de controle abstrato de normas. [161]

Clara, nesse sentido, é a dicção de André Ramos Tavares, verbis:

O desenvolvimento inicial quanto à reclamação não reconhecia, no caso de processo objetivo, uma decisão que demandasse execução, não havendo como a parte interessada invocá-la e, a pretexto da falta de execução, vislumbrar uma hipótese de reclamação. Assim, a reclamação, em função do descumprimento de decisão do Supremo, só era admissível quando isso ocorresse em um caso concreto, não em tese. Também só era admissível no caso de haver a necessidade de execução da decisão do Supremo Tribunal Federal (e, como sabido, no controle abstrato não se pode lançar mão de execução do julgado). [162] (grifamos)

A decisão na reclamação, se procedente, sai sob o formato de ordem (mandado), o que, obviamente, elide a necessidade ou mesmo a possibilidade de ulterior processo de execução forçada. Trata-se, desse modo, de execução in natura. [163]

Não podemos deixar de destacar a originalidade da construção elaborada pelo Pretório Excelso. O manejo de ação com a finalidade de assegurar a vinculação decorrente do controle de constitucionalidade, não encontra par no direito comparado. [164] De fato, inexiste registro em outros países de efeito (mesmo vinculante) que viabilize o manejo de recurso ou ação perante a Corte Constitucional para que esta fulmine feitos em curso em instâncias inferiores, decisões emanadas de instâncias inferiores ou, até mesmo, atos de autoridades administrativas.

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Sobre o autor
Clóvis Andrade Goulart

Bacharel em Direito pela PUCRS

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOULART, Clóvis Andrade. A reclamação no Supremo Tribunal Federal e o efeito vinculante no controle abstrato de constitucionalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 747, 21 jul. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7053. Acesso em: 29 mar. 2024.

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