Aplicação da teoria da cegueira deliberada no crime de tráfico de drogas

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3 DO CRIME DE TRÁFICO DE DROGAS, ART. 33 DA LEI Nº 11.343/06

3.1 Fundamentos constitucionais

Em breve sinopse, cumpre advertir que a repressão da exploração indevida da droga, é, primordialmente, revestida de constitucionalidade, tendo em vista que as normas previstas na Carta Magna buscam manter a ordem estatal e assegurar os direitos fundamentais para a vida em sociedade.

Assim aludido no artigo 3º, inciso II da Constituição Federal (BRASIL, 1988), objetiva-se, primordialmente, a garantia do desenvolvimento nacional, o que se entende visar, dentre outros escopos, o combate ao enriquecimento ilícito e embaraços à ordem nacional, também resultantes do crime de tráfico de entorpecentes.

Partindo-se dos lemas, o repúdio ao narcotráfico está previsto no artigo 5º, inciso XLIII da Constituição Federal, ao ser considerado inafiançável e insuscetível de graça ou indulto, além de também sê-lo equiparado a crime hediondo e receber os rigores penais contidos no artigo 2º, caput, da Lei nº 8.072/90.

Ademais, nossa Carta Magna (BRASIL, 1988) prevê no artigo 144, § 1º, II que à Polícia Federal caberá “prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins [...]”, bem como no artigo 243, parágrafo único, esclarece que “todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e da exploração de trabalho escravo será confiscado e reverterá a fundo especial com destinação específica, na forma da lei” (BRASIL, 1988).

No mesmo sentido, consoante artigo 109, V, será também da competência federal os crimes previstos em tratados e convenções internacionais, isso porque, não só o Brasil, como também outras nações, lutam contra o tráfico ilícito de drogas, e mediante tratados e convenções, mais precisamente, a Convenção de Viena de 1969, unem-se pelos mesmos ideais.

Outrossim, propõe-se também, manter a ordem social, dentre esta, a saúde pública, em que contempla o artigo 196, caput,  sendo ela um “direito de todos e dever do Estado, garantindo mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução de doenças e de outros agravos [...]” (BRASIL, 1988). E, a família, que por seu turno, está prevista no artigo 226, sendo considerada a base da sociedade, e que também é desestruturada ante a prática do crime de tráfico de drogas.

Destarte, hodiernamente, nota-se a luta incessante para combater a exploração indevida de drogas, bem como a de outros crimes que por ela são desencadeados, expondo-se a risco demais bens jurídicos penalmente tutelados e essenciais à vida em sociedade.

3.2 Previsão legal

O crime de tráfico de drogas está previsto em Lei especial, de nº 11.343/06, na qual, o legislador conferiu maior relevo, tendo como uma de suas finalidades legais a repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas.

Tipifica o artigo 33, caput, da Lei nº 11.343 (BRASIL, 2006) como crime de tráfico de drogas, quem:

Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.

Inobstante não ostentar o artigo 33 a nomenclatura “tráfico de drogas”, “pode-se utilizar como subsídio a interpretação dada pela jurisprudência na vigência da Lei nº 6.368/76, que sempre entendeu que o tráfico abrangeria apenas as condutas dos artigos 12 e 13” (LIMA, 2014, p. 721). Hoje, compreendidos no artigo 33, caput e § 1º da nova Lei de Drogas.

 Visto isso, buscar-se-á elucidar o crime de tráfico de drogas, fazendo-se a sua classificação e discorrendo-se sobre os efeitos legais às condutas que se enquadram a este tipo penal.   

3.3 Classificação

Cuida-se de crime de perigo, “cuja consumação se dá com a exposição do valor protegido a uma situação de perigo, a uma probabilidade de dano” (ESTEFAM, 2010, p. 198), sendo esse abstrato ou presumido, pois o legislador previu a consumação antecipada, pelo simples fato de ser a ofensa ao bem jurídico presumida, sem depender da prova de que a conduta do agente tenha efetivamente produzido a situação de perigo prevista no tipo penal. Assim, a prática de um ou alguns dos verbos acima descritos importam na tipicidade formal.

É norma penal em branco heterogênea, dado que o artigo 2º da Lei nº 11.343 (BRASIL, 2006) considera “como drogas as substâncias ou os produtos capazes de causar dependência, assim especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União”.

Portanto, necessita de complementação normativa, onde a regulamentação advém da Portaria da Anvisa (1998), vinculada ao Poder Executivo, que em seu anexo I especifica quais são as drogas consideradas ilícitas, quando exploradas indevidamente. Importa salientar que, quaisquer dessas condutas praticadas, cujo objeto (droga) não estiver catalogado na referida portaria, não constituirá crime de tráfico de drogas, ainda que atestada a capacidade da substância de suscitar dependência física ou psíquica. Nesse caso (em análise concreta) poderia a conduta amoldar-se em outros tipos penais, de contrabando ou descaminho, previsto nos artigos 334 e 334-A do Código Penal, ou então, a outro tipo de tráfico, como no disposto no inciso I, que se analisará a seguir.

Do mesmo modo, por se tratar de norma penal em branco, se retirada uma substância da lista “que se dê através de uma pesquisa com a consequente de que a droga é inofensiva ao sistema nervoso central, tem efeito retroativo para descriminalizar aquela conduta, que anteriormente, era punida” (BALTAZAR, 2010, p. 660).

Trata-se de crime equiparado a hediondo, consoante previsão do artigo 2º da Lei nº 8.072/1990, sendo-lhe aplicados os rigores do referido artigo, tais como, a insuscetibilidade de fiança, graça e indulto e demais inflexibilidades quanto ao cumprimento da pena fixada (§§ 1º a 4º). O bem jurídico tutelado, por sua vez, é a saúde pública, portanto denomina-se crime vago, pois o sujeito passivo é a coletividade, isto porque atinge um número indeterminado de pessoas em sociedade.

Analisando os verbos núcleos do tipo (dezoito, ao todo), tem-se “importar”, que é trazer a droga para dentro do território nacional; “exportar”, levá-la para fora do território nacional; “remeter”, significa enviar para algum lugar ou alguém; “preparar”, consiste na combinação de elementos para a formação da droga; “produzir”, é criar, dar origem a algo inexistente; “fabricar”, é produzir em maior proporção, por meio industrial, ou seja, com auxílio de maquinários e demais instrumentos destinados à sua produção; “adquirir”, é obtê-la mediante troca, compra ou a título gratuito (doação); “vender”, alienar por determinado preço; “expor à venda”, exibir a droga à mercancia; “oferecer”, sugerir a alguém que se adquira ; “ter em depósito”, manter a coisa à sua disposição, em lugar reservado; “trazer consigo”, transportar junto ao corpo; “guardar”, custodiar, proteger; “prescrever”, receitar; “ministrar”, administrar; “entregar a consumo”, confiar a alguém para usar, gastar; “fornecer”, abastecer o estoque. Ademais, “todas as condutas passam a ter, em conjunto, o complemento ainda que gratuitamente, sem cobrança de qualquer preço ou valor. Logo é indiferente haver ou não o lucro, ou mesmo o intuito de lucro” (NUCCI, 2014, p. 329).

O elemento normativo das condutas consiste na expressão “sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar”, tipificando-se o delito caso o modus operandi do agente estiver em desacordo com as disposições legais e as regulamentares do Poder Público.

Tais condutas podem ser praticadas por qualquer pessoa, o que implica em crime comum. Exige-se somente o dolo (direto ou eventual), fazendo-se necessário à configuração do delito a vontade e consciência do agente em praticar ao menos um dos núcleos verbais constantes no artigo 33. A modalidade culposa, por sua vez, não constitui elemento apto à configuração do crime.

O presente delito é de ação múltipla ou conteúdo variado, ou seja, para a configuração penal basta a prática de qualquer um dos dezoito verbos nucleares da norma repressiva incriminadora, sendo que se realizada mais de uma conduta, prevalecerá a mais grave. Na lição de Capez (2013, p. 699), por se considerar tipo misto alternativo, a prática de duas ou mais condutas previstas no tipo, configurar-se-á crime único, ou então concurso material, dependendo das condições de tempo e espaço em que se consumar o delito.

A consumação do crime se dá quando realizada quaisquer das condutas tipificadas. A tentativa é perfeitamente possível em algumas modalidades instantâneas, quando não forem atos preparatórios de outras. Contudo, nas modalidades permanentes (expor à venda, ter em depósito, transportar, trazer consigo e guardar), a tentativa é de difícil configuração, ou até mesmo impossível, visto que antes destas, outras já se consumaram. Como por exemplo: o agente é surpreendido transportando cocaína, tentou fornecer a droga, mas antes já transportava o entorpecente, bastando este último, para a caracterização do delito.

Pode-se observar que o objetivo do legislador, ao mencionar as diversas modalidades previstas no tipo penal, foi de conferir maior proteção social, visando, com isso, o combate ao tráfico ilícito de drogas.

3.4 Formas equiparadas ao tráfico

Além do crime previsto no artigo 33, caput, outros lhe são equiparados no § 1º, incisos I, II e III do mesmo tipo penal, aos quais são atribuídas as mesmas penas mencionadas em outras modalidades (algumas repetidas do artigo 33), dependendo do objeto do crime.

3.4.1 Do tráfico de matéria-prima, insumo ou produto químico destinado à preparação de drogas

Segundo o § 1º do artigo 33 da Lei nº 11.343 (BRASIL, 2006) incorrerá nas mesmas penas do referido artigo quem:

Importa, exporta, remete, produz, fabrica, adquire, vende, expõe à venda, oferece, fornece, tem em depósito, transporta, traz consigo ou guarda, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, matéria prima, insumo ou produto químico destinado à preparação de drogas.

A figura típica em análise repete as mesmas condutas do caput, portanto possui as mesmas características (vide item 2.2), contudo, difere o objeto do crime, que nessa refere-se à matéria-prima (substância principal utilizada, ainda que eventualmente à produção ou extração de drogas), insumo (elemento participante, não indispensavelmente à produção de drogas), produto químico (substância química pura ou composta destinada à preparação da droga).

Não obstante serem mencionados os elementos destinados à produção, preparação ou composição de drogas, o tipo penal, por seu turno, não exige que tais substâncias sejam destinas exclusivamente a esta finalidade, mas também aquelas que, de forma casual, se prestem ao destino de elaboração de drogas. E neste caso, para comprovar a materialidade delitiva, mister se faz a realização do exame pericial do tóxico, para atestar que o produto retido era destinado, ainda que eventualmente, à preparação de drogas.

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Assim, exemplificando, o éter sulfúrico e a acetona “constituem matéria-prima indispensável à preparação de droga, sendo irrelevante constarem ou não na lista do Ministério da Saúde” (CAPEZ, 2013, p. 711).

Nos mesmos ditames, há quem sustente que se a matéria-prima destinada à produção da droga possuir, de per si, o princípio ativo, poderá enquadrar-se ao artigo 33, caput, e se efetivada a preparação do entorpecente, o crime atingirá o seu exaurimento, ao qual será utilizado nas circunstâncias judiciais, para agravar a pena base. Não nos parece adequada essa corrente, visto que como já dito anteriormente, pelo princípio da estrita legalidade, não sendo a droga regulamentada pela ANVISA, estar-se-á diante da atipicidade da conduta, e se esta prosperar em crime, caracterizar-se-á analogia in malam partem ao réu, o que não é admitido pelo direito penal pátrio.

Além do mais, para que se tenha a figura típica, é desnecessária a intenção do agente em destinar a matéria-prima, o insumo ou o produto químico à produção de droga, bastando, portanto, que este saiba terem eles capacidade para tal, pois ao contrário, estará diante da atipicidade do delito. Assim, basta que os elementos “tenham as condições e qualidades químicas necessárias para, mediante transformação, adição etc., resultarem em entorpecentes ou drogas análogas”. (GOMES, 2008, p. 189).

Já no tocante ao concurso de crimes ou continuidade delitiva, vale dizer que o agente que importa a droga propriamente dita, e faz o mesmo com a matéria-prima destinada à preparação de drogas, incorre nas formas do concurso de delitos, dependendo das condições de tempo e espaço.

3.4.2 Da semeadura, cultivo ou colheita de plantas que se constituam em matéria-prima para a preparação de drogas

O inciso II da Lei nº 11.343 (BRASIL, 2006), dispõe que incorrerá também nas mesmas penas do caput, quem “semeia, cultiva ou faz a colheita, sem autorização ou em desacordo com a determinação legal ou regulamentar, de plantas que se constituam em matéria-prima para a preparação de drogas”.

Quanto aos verbos mencionados nesse dispositivo, semear, é lançar sementes ao solo para germinarem; cultivar, é fertilizar a terra para prosperar a plantação; e colher, é retirar aquilo produzido pela planta. Todos vêm acompanhados do elemento normativo “sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar”, pois se em conformidade com os preceitos, haverá a atipicidade da conduta. A classificação deste crime consiste na mesma do artigo 33 (vide item 2.2). O objeto do crime, por sua vez, são as plantas que se constituam em matéria-prima para a preparação de drogas (já estudada no item 2.3.1). E da mesma maneira do inciso antecedente, para a caracterização do delito, pouco importa se as plantas possuem ou não o princípio ativo, bastando que sejam destinadas à preparação de drogas e que o agente saiba a sua potencialidade.

Assim, a prática de mais de uma conduta, constitui crime único. Lima (2014, p. 733) adverte que:

Na hipótese de o agente semear determinada área rural, cultivar as plantas e depois fazer sua colheita para a preparação de drogas, haverá crime único. No entanto, se as condutas forem praticadas em contextos distintos – por exemplo, após a colheita de certas plantas, o agente dá início a novo ciclo de plantio – o ideal é dizer que responderá por diversos crimes do art. 33, § 1º, inciso II, em continuidade delitiva.

Na vigência da lei anterior (Lei nº 6.368/76), muito se discutia sobre a tipificação da conduta daquele que cultivava, semeava ou colhia plantas destinadas à preparação de drogas de pequena quantidade. Postos diferentes entendimentos, para uns, a conduta era enquadrada ao crime de tráfico de drogas (artigo 12, caput, da antiga lei), por equiparação. Para outros, a conduta, utilizando-se da analogia in bonam partem, amoldava-se para o uso próprio (artigo 16, caput, da antiga lei). Entretanto, para uma terceira corrente, tratava-se de uma lacuna penal, pois o tráfico objetivava-se a mercancia, ao qual resultava na atipicidade do fato.

A nova Lei de Drogas findou essa discussão e, visando combater a exploração de drogas, distinguiu o usuário, do traficante. Portanto, o dispositivo passou a tipificar em seu artigo 28, § 1º, o cultivo e a colheita de plantas destinadas à preparação de drogas de pequena quantidade.

3.4.3 Da utilização de local ou bem para fins de tráfico

Nos termos do inciso III do artigo 33 da Lei nº 11.343 (BRASIL, 2006) equipara-se para todos os efeitos ao tráfico de drogas, incorrendo às mesmas penas, quem:

Utiliza local ou bem de qualquer natureza de que tem a propriedade, posse, administração, guarda ou vigilância, ou consente que outrem dele se utilize, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, para o tráfico ilícito de drogas.

O dispositivo prevê a utilização tanto de local (relacionado ao imóvel) como de bem de qualquer natureza (referente ao bem móvel), daquele que tem a propriedade (poderes de uso, gozo, disposição e reinvindicação), a posse (exercício de um ou alguns dos poderes inerentes à propriedade), administração (gestão), guarda (manter sob os cuidados) ou vigilância (tomar conta). Fogem do tipo os locais públicos de uso comum (como praças, praias, parques, etc.), pois é impossível exercer algum poder sobre o bem público.

Nada obstante não prever o inciso a detenção do agente sobre bem ou local, “não desnatura o delito a precariedade da posse ou detenção do agente sobre o local, bastando que possa dele se utilizar ou tenha condições de consentir que outro o utilize” (GOMES, 2008, p. 194). Assim, basta que a conduta do agente propicie a exploração de drogas.

 O legislador, também, tipifica a conduta daquele que consente que outra pessoa do bem ou local se utilize. Assim, se um locatário (de que tem a posse direta da casa), autorizar que terceiro a utilize para comercializar a droga, subsumirá ao tipo acima descrito. Sendo todas as condutas acompanhadas da expressão ainda que gratuitamente, é prescindível o lucro.

Os verbos núcleos do tipo mencionam utilizar, que indica permanência, isto é, a consumação se protrai no tempo, o que permite o flagrante delito, e consentir, que por sua vez é instantâneo, consuma-se no momento em que a pessoa autoriza a comercialização de drogas. No primeiro, a tentativa é de difícil configuração, ao passo que no segundo, a tentativa é perfeitamente possível. Não exigem a habitualidade.

 O delito em estudo é crime próprio, haja vista que só poderá ser cometido por aquele possuidor da qualidade descrita no inciso. Entretanto, não se enquadra ao tipo penal aquele que facilita a utilização do bem por terceiro, ao qual pratica o crime do § 2º, do artigo 33 (induzimento, instigação ou auxílio ao uso indevido de drogas).

Importa enfatizar que a utilização de bem ou local de quem tem a propriedade, posse, administração, guarda ou vigilância, ou consente para que outrem dele se utilize para uso indevido (previsto na lei antiga), não mais constitui crime, tendo se operado verdadeira abolitio criminis, “logo, a novel figura delituosa só restará tipificada se o local for utilizado ou cedido para o tráfico de drogas” (LIMA, 2014, p. 735). Nesse caso, a disponibilidade de local ou bem para o consumo da droga, poderá se subsumir no § 2º do artigo 33 (induzir, instigar ou auxiliar alguém ao uso indevido de droga).

3.5 Do tráfico privilegiado, artigo 33, § 4º

Com o advento da nova Lei de drogas nº 11.343/06, a figura do tráfico de drogas passou a compreender uma benesse, prevista no § 4º do artigo 33, dispondo o seguinte:

Nos delitos definidos no caput e no § 1º deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, vedada a conversão em penas restritivas de direito, desde que o agente seja primária, de bons antecedentes, não se dedique ás atividades criminosas nem integre organização criminosa. (BRASIL, 2006)

Cuida-se de novatio legis in mellius, isto é, benéfica ao réu, sendo passível de retrocesso, porém, sua aplicação limita-se aos ditames da súmula 501 do Superior Tribunal de Justiça (BRASIL, 2013), no sentido de ser vedado ao juiz fazer a combinação da lei antiga com a nova.

O privilégio aludido nada mais é que mera causa especial de diminuição de pena prevista no tipo penal, pois não houve alteração abstrata à pena (mínima e máxima), apenas previsão de diminuição da pena aplicada (de um sexto a dois terços) na terceira fase da dosimetria.

Além do mais, importante sublinhar que a expressão vedada conversão em penas restritivas de direitos não mais integra o tipo, pois foi suspensa pelo Senado Federal, mediante a Resolução nº 5 de 2012, que, passou a permitir a conversão das penas restritivas de direitos.

Os requisitos são cumulativos, ou seja, o agente para receber o decote do quantum da pena, deverá preencher os pressupostos de primariedade, bons antecedentes, não dedicação às atividades criminosas e não integração em organização criminosa. Assim, enquadrando-se o agente nos quesitos mencionados, resta obrigatório ao magistrado a aplicação da benesse, porém, a seu critério (desde que fundamentadamente) o quantum da fração da pena, seguindo os moldes do artigo 42 da Lei nº 11.343/06.

Em que pese incidir a benesse ao crime de tráfico de drogas, recentemente, mais precisamente em junho de 2016, o Supremo Tribunal Federal (BRASIL, 2016) no Habeas Corpus nº 118533 decidiu afastar a hediondez do artigo 33, § 4º. Logo, da imperiosa decisão, o traficante privilegiado não está mais sujeito aos rigores repressivos da Lei de Crimes Hediondos.

3.6 Questões relevantes no crime de tráfico de drogas

3.6.1 Do princípio da insignificância

O princípio da insignificância, extraindo-se do princípio penal da intervenção mínima, incide na atipicidade material do crime, em razão da mínima ofensividade ao bem jurídico tutelado, de modo a não ocupar o judiciário com bagatelas.

Atualmente crescem as decisões dos tribunais superiores no sentido de afastar a aplicabilidade do princípio da insignificância na conduta daquele que tem apreendida pequena quantidade de droga, visto que, por se tratar de crime de perigo abstrato, prescinde da comprovação de que a conduta do agente causou efetivo risco ao bem jurídico tutelado. Sendo assim, ainda que a droga represente em pequena quantidade, desde que tenha o princípio ativo alistado pelo Poder Executivo, configurará o crime de tráfico.

Em contrapartida, há quem sustente a inconstitucionalidade dos crimes de perigo abstrato em face do princípio insignificância, porém, é de se ater que, “a favor do perigo abstrato pesa o argumento de que o legislador não é obrigado a esperar que a conduta se transforme em uma situação de perigo concreto, real, para só então puni-la” (CAPEZ, 2013, p. 700), pois assim, estaria ignorando o começo de um futuro não distante de um tráfico significativo e extremamente nocivo à sociedade.

Nesse tecer, convém dizer que o perigo abstrato conferido pelo legislador ao crime de tráfico não viola o princípio da presunção de inocência, tendo em vista que o poder judiciário permite ao réu, diante da deflagração da ação penal, alegar toda matéria de defesa, garantindo o contraditório e a ampla defesa.

Com isso, é cristalina a inaplicabilidade do princípio da insignificância no narcotráfico, levando, portanto, a conduta do agente à configuração delitiva, ainda que o tóxico represente em pequena quantidade.

3.6.2 Do flagrante preparado

Seria este outro ponto polêmico à configuração do crime de tráfico de entorpecentes diante do flagrante preparado, no qual, o agente é incitado pela autoridade policial ou qualquer outra pessoa, a cometer o crime, incorrendo em flagrante delito.

A súmula 145 do Supremo Tribunal Federal (BRASIL, 1964) menciona que “não se pune a tentativa quando, por ineficácia absoluta do meio ou por absoluta improbidade do objeto, é impossível consumar-se o crime”. Nessa esfera jurisprudencial, vale dizer que à persecução penal do crime de tráfico não será o agente submetido, quando a sua conduta vier a ser estimulada para que se configure o crime.

Entretanto, por se tratar o tipo como misto alternativo, se o agente é flagrado cometendo uma das condutas permanentes (transportar, guardar, trazer consigo, ter em depósito, expor à venda), não prosperará a súmula 145, e restará caracterizado o crime, tendo em vista que por constituírem progressão das outras condutas, cujas são preexistentes, “a atuação policial estará legitimada à prisão em flagrante e à persecução penal, sem que se possa falar em flagrante forjado ou preparado” (LIMA, 2014, p. 729).

Dessa feita, é constitucional a restrição da liberdade do agente que é flagrado praticando uma das condutas descritas no artigo 33, caput e § 1º, se já houver condutas preexistentes àquelas.

3.7 Da competência para processar e julgar o crime de tráfico

Como regra, a competência para processar e julgar os crimes determina-se pelas circunstâncias referidas no artigo 69 do Código de Processo Penal.

Assim, diante da prática do crime de tráfico de drogas, para fixar-se a competência, deve-se observar as circunstâncias que se deram a infração penal, de modo a determinar qual organismo será competente para processar e julgar tal crime.

Conforme redação do artigo 70 da Lei nº 11.343 (BRASIL, 2006) “o processo e o julgamento dos crimes previstos nos arts. 33 a 37 desta lei, se caracterizado ilícito transnacional, são de competência da Justiça Federal.”

Neste sentido, comprovada a transnacionalidade do delito, a competência será da Justiça Federal, assim como regulamenta a súmula 528 do Superior Tribunal de Justiça (BRASIL, 2015) em que competirá “ao juiz federal do local da apreensão da droga remetida do exterior para via postal processar e julgar o crime de tráfico internacional”.

Por outro lado, quanto à competência estadual, como esta é considerada residual, firmar-se-á caso não configurado quaisquer indícios de transnacionalidade do crime de tráfico.

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Sobre os autores
Alessandro Dorigon

Mestre em direito pela UNIPAR. Especialista em direito e processo penal pela UEL. Especialista em docência e gestão do ensino superior pela UNIPAR. Especialista em direito militar pela Escola Mineira de Direito. Graduado em direito pela UNIPAR. Professor de direito e processo penal na UNIPAR. Advogado criminalista.

Mariana Previatti Dias

Graduada em direito pela UNIPAR

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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