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A função social da propriedade e as ocupações de terra por movimentos sociais

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07/08/2005 às 00:00
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I – À guisa de introdução

            O conflito pela terra em nosso território é manifesto e violento desde que o Brasil foi conquistado. Portugueses e indígenas travaram, já no ano de 1500, uma sangrenta luta pela posse e propriedade da terra brasilis. Os "mais civilizados", dessa feita, eram os invasores e, pela força de suas armas, saíram vitoriosos.

            Cinco séculos depois, a luta continua. Agora, os "mais civilizados" (grandes proprietários de terra) sentem-se agredidos pelas ocupações e, no conflito, têm saído "vitoriosos" pelo uso da força de suas armas e de seus direitos.

            O presente ensaio tem por mister, exatamente, questionar a força desses direitos, sob o pálio da Constituição Federal 1988 e dos princípios da Justiça Social.

            Perpassando pela compreensão das funções e das finalidades do Estado Democrático de Direito, instituído pela Lei Maior brasileira, e pelo estudo da aplicabilidade das normas que garantem a dignidade da pessoa humana e o respeito aos direitos sociais, analisar-se-á a (in)constitucionalidade do § 6º do art. 2º da Lei nº 8.629/93, que veda a atuação fiscalizadora do INCRA nos imóveis rurais objeto de esbulho possessório ou de invasão motivada por conflito agrário.

            Para tanto, por fins metodológicos, partir-se-á do estudo de um pronunciamento do Ministério Público Federal, na função de custus legis, em demanda na qual se discutia a aplicação ou não do dispositivo legal mencionado.

            Foram feitas, outrossim, visitas ao INCRA e ao acampamento do MST em São Lourenço da Mata/PE, com o fito de colher informações substanciais acerca dos efeitos práticos da vedação legal suso referida.

            Não se pense que se descuidou da interpretação jurisprudencial pertinente ao tema proposto. Ao revés, o pronunciamento da Corte Suprema será também objeto desse estudo, tomando-se a liberdade, todavia, de o criticar e contrapor ao texto constitucional.

            Ao fim, pretende-se ver desmistificado o instituto da propriedade privada como direito subjetivo absoluto e destacado o papel do Ministério Público como garante dos interesses sociais insculpidos na Constituição Federal de 1988, em especial, do real atendimento da função social das propriedades particulares, demonstrando-se a inconstitucionalidade do citado § 6º do art. 2º da Lei nº 8.629/93.


II – O direito de propriedade, o princípio da função social e a atuação do Estado brasileiro.

            "A propriedade atenderá à sua função social" (art. 5º, XXIII, CF/88). Não obstante já ter sido objeto de inúmeras obras jurídicas, tanto no campo do direito constitucional quanto na seara do direito privado, tendo em vista a sua recente codificação pela novel Lei Nº 10.406/02, o princípio da função social da propriedade parece ainda não ter sido compreendido, em toda sua plenitude, pela sociedade civil e por aqueles que a representam.

            É bastante comum ouvir, noutros termos, principalmente no interior do país, a seguinte frase: "em minha propriedade tudo posso, faço dela o que bem entender e tenho pena daqueles que a tentarem invadir; afinal, minhas riquezas vêm do meu suor e tenho o direito de defendê-las".

            Tais palavras, apesar de prolatadas sem conotações propriamente jurídicas, são fruto de uma cultura individualista, em que acima do interesse de todos estão os interesses pessoais. Essa cultura ou ideologia, difundida pelos princípios da Revolução Francesa e mantida pelos Estados Liberais, resultou e ainda resulta na exclusão dos que não têm fortuna e acesso ao capital, implicando necessariamente na manutenção de uma desigualdade insustentável, que naturalmente gera tensão e conflito social.

            No intuito de reduzir tais desigualdades, resguardando na medida do possível os direitos e garantias individuais, é que foi instituído o Estado Democrático de Direito em nosso país, tomando por base, dentre outros, os princípios da soberania popular e da dignidade da pessoa humana.

            São bastante claros, nesse sentido, o inciso III e o parágrafo único do artigo 1º e o preâmbulo da Carta Magna brasileira, que, apesar de este não ter um caráter normativo, servem de diretriz política, filosófica e ideológica aos aplicadores do texto constitucional, tornando-se relevantes ferramentas para a sua interpretação, in verbis:

            "Preâmbulo: Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL". (grifos apostos).

            "Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

            I – a soberania;

            II – a cidadania;

            III – a dignidade da pessoa humana

            (...)

            Parágrafo único. Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição."

            Nas palavras de José Afonso da Silva, o Estado Democrático de Direito é "um tipo de Estado que tende a realizar a síntese do processo contraditório do mundo contemporâneo, superando o Estado capitalista para configurar um Estado promotor de justiça social (...). A Constituição de 1988 não promete a transição para o socialismo com o Estado Democrático de Direito, apenas abre as perspectivas de realização social profunda pela prática dos direitos sociais, que ela inscreve, e pelo exercício dos instrumentos que oferece à cidadania e que possibilita concretizar as exigências de um Estado de justiça social, fundado na dignidade da pessoa humana".

            Destarte, diversamente do que ocorre nos Estados Liberais, em que se pregam a mínima intervenção estatal e a liberdade individual, como valores supremos, no tipo de Estado adotado por nossa Constituição há uma dilatação de suas atribuições e funções, deixando ele de exercer exclusivamente o Poder de Polícia e passando a se responsabilizar também pela prestação dos serviços essenciais à sociedade, tornando-se, como já destacado pelo festejado constitucionalista citado, verdadeiro "promotor de justiça social".

            A conseqüência direta e imediata da implementação de um Estado Democrático de Direito preocupado com o bem-estar da sociedade é a inversão de princípios, pelo que se passa a aceitar uma maior intervenção estatal na esfera privada e a se pregar a supremacia do interesse social sobre os interesses individuais. Dessa forma, inevitável é uma mitigação da clássica dicotomia entre o público e o privado, não sendo possível, nesse contexto, a subsistência de direitos individuais absolutos, tendo em vista a sua limitação pelo interesse social.

            A propriedade privada, nada obstante, é ainda por muitos compreendida como um direito individual exclusivo, perpétuo e absoluto. Absoluto, porque asseguraria ao proprietário a liberdade de dispor da coisa do modo que melhor lhe aprouvesse; exclusivo, porquanto seria imputado ao proprietário, e somente a ele, em princípio, caberia; perpétuo, pois não desapareceria com a vida do proprietário, passando a seus sucessores como herança, com duração ilimitada.

            À luz do Ordenamento Jurídico pátrio, todavia, o direito de propriedade não suporta tais caracteres, posto que sofre limitações de ordem formal e material. À guisa de exemplo, destaquem-se: as restrições às faculdades de uso, gozo e modificações impostas às edificações de grande valor histórico; as limitações impostas nos casos de perigo público iminente, em que o Poder Público pode utilizar-se de propriedades alheias; e as hipóteses legais de desapropriação por interesse social ou por utilidade pública, mediante o pagamento de justa e prévia indenização.

            Essas limitações referem-se ao direito do proprietário em si, divergindo da delimitação contenudística imposta pela adoção do princípio da função social da propriedade, em razão de este ser relativo à própria estrutura da instituição, ao seu regime jurídico.

            A compreensão plena do mencionado princípio exige, anteriormente, o entendimento da natureza jurídica da propriedade privada.

            Não é ela, diferentemente do que se pode pensar, de início, um instituto exclusivo do Direito Civil. Compreende, na verdade, um complexo de normas constitucionais, administrativas, ambientais, urbanísticas, empresariais e civis, sendo mais do que mera relação entre proprietário e coisa ou entre aquele e um sujeito passivo universal.

            A doutrina, considerando o tratamento constitucional dado à matéria, tem classificado o direito de propriedade como uma situação jurídica complexa. De um lado, envolveria uma ou várias relações civis, constituindo-se em direito subjetivo individual. De outro, envolveria as garantias de ordem econômica e social tuteladas pela Carta Maior, constituindo-se em direito da sociedade.

            Sob esse último aspecto é que a propriedade, como instituição, merece uma proteção especial, não se podendo deixá-la entregue simplesmente às vicissitudes das Leis Ordinárias. Por tal razão é que o constituinte de 1988 optou pela tutela constitucional da instituição, garantido-a sob o poder das cláusulas pétreas.

            Assim, de acordo com a clássica distinção proposta por Carl Schmitt entre direitos fundamentais e garantias institucionais, melhor se classificaria a propriedade privada entre estas últimas, consoante, inclusive, com os ensinamentos de Pontes de Miranda, segundo o qual a propriedade "é instituição, a que as Constituições dão o broquel da garantia institucional".

            De acordo com o texto constitucional, não se poderia considerar o direito de propriedade como Direito fundamental, porque os direitos assim classificados são aqueles incondicionados, típicos dos indivíduos e invioláveis pelo Estado, do que são exemplos os direitos à vida e à liberdade. Já as garantias institucionais compreendem, por seu turno, o reconhecimento constitucional de determinadas instituições jurídicas como fundamentais para o desenvolvimento pacífico das relações jurídicas de uma dada sociedade, submetida a uma determinada Constituição, do que são exemplos os sindicatos, a família e, portanto, a propriedade [01].

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            Isto posto, por fim, cumpre explicitar o que se entende por funcionalizar um instituto jurídico como a propriedade. Paulo Nalin, com quem concordamos, afirma que atribuir uma função social a um instituto jurídico "significa oxigenar as bases fundamentais do Direito com elementos externos à sua própria ciência, revelando-se instrumentos de análise do Direito em face de sua função, com o objetivo de atender às respostas da sociedade, em favor de uma ordem jurídica e social mais justa" [02].

            Desta feita, o princípio da função social da propriedade constitui-se em um parâmetro interpretativo de todo o ordenamento jurídico, impondo um freio social contra a liberdade do proprietário, sem, contudo, derrogá-la. Permite-se que o proprietário use, goze e disponha de seus bens, desde que o faça de maneira a realizar as expectativas mínimas da sociedade. Em especial, a função social da propriedade rural, centrada na dignidade da pessoa humana, revela-se no bem-estar da comunidade em que está inserida e se manifesta através do binômio posse-trabalho, na produtividade e na proteção ambiental, dando-se por cumprida com o aproveitamento racional e adequado dos recursos naturais.

            Do texto dos arts. 5º, XXII e XXIII, 170, II e III, 182 e 184 da CF/88, e pelo até aqui exposto, cumpre concluir, assim como Waldyr Grisard Filho, que apenas a propriedade que atenda à sua função social estará protegida pela Constituição. Cabe, portanto, aos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, bem como a todos os cidadãos, o dever de garantir o real cumprimento da Constituição e a fiscalização do atendimento da função social das propriedades.


III – Do caso a ser estudado

            Como alhures referido, o presente estudo pretende, metodologicamente, basear-se na análise acadêmica de um caso concreto levado ao Judiciário, tendo como referência ideológica o posicionamento do Ministério Público Federal – Procuradoria Regional da República 5ª região -, in casu, representado pelo eminente Procurador Luciano Mariz Maia.

            Trata-se de um mandado de segurança preventivo interposto em face do Instituto de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, com o intuito de impedir que o referido órgão fiscalizador vistorie um imóvel rural que, segundo os documentos dos autos atestam, foi objeto de conflito entre seu suposto proprietário e integrantes do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra – MST –, tendo, em decorrência do embate, havido lesões corporais de um lado e morte de trabalhador rural, do outro.

            O pedido liminar foi concedido e posteriormente confirmado por sentença, tendo sido, portanto, deferida a segurança, com fulcro na nova redação do §6º do art. 2º da Lei nº 8.629/93, conferida pela MP 2.183-56/01.

            O INCRA interpôs recurso voluntário, subindo os autos para o Eg. Tribunal Regional Federal 5ª Região e indo, em seguida, à mencionada Procuradoria Regional da República para pronunciamento de custus legis.

            O Parquet, por meio de seu ilustre representante, posicionou-se, de forma ousada, pelo provimento da apelação, sustentando para tanto que, apesar da manifestação do STF no sentido de validar a alteração legislativa suso especificada, "o Judiciário não pode acolher essa interpretação constitucional, que impede o Estado de agir sobre os conflitos agrários, para deixar que os particulares se confrontem diretamente(...). Também não pode consentir que proprietários, que se tornam objeto e sujeito de ações violentas, deixem de ser observados e fiscalizados pelo órgão do Estado encarregado de levar adiante um política de transformação do regime agrário, que possa trazer paz para o campo" [03].

            O processo aguarda julgamento pela 1ª Turma do Colendo TRF 5ª Região.

            Independente do pronunciamento jurisdicional final, o caso já suscita questões de grande relevo jurídico, porquanto, ao passo em que se vislumbra a inconstitucionalidade de uma lei federal, estar-se questionando a independência dos Tribunais inferiores em relação aos posicionamentos do STF e de igual forma o papel e a importância do Ministério Público Federal em semelhantes demandas.


IV – Dos fundamentos jurídicos para a declaração de inconstitucionalidade do §6º do art. 2º da Lei nº 8.629/93.

            Hans Kelsen em sua celebrada obra "Teoria Pura do Direito" já previa o que se convencionou chamar de princípio da supremacia das Constituições. Derivada direta da Grundnorm (Norma Fundamental), em que encontra seu pressuposto de validade, a Constituição de um Estado revela-se como sua Lei suprema e fundamental, estando no ápice ou no vértice da pirâmide hierárquica das leis do Ordenamento Jurídico, só nela se encontrando toda autoridade e somente a ela cabendo conferir poderes e competências governamentais, devendo, por conseguinte, todas as demais normas com ela, material e formalmente, serem compatíveis.

            Tal princípio foi claramente adotado pelo Estado brasileiro, conforme se aduz da simples leitura dos arts. 59 e 60 da CF/88. Serão inconstitucionais, destarte, todas as normas que, em razão de seu conteúdo ou em face do procedimento legislativo adotado, forem contrárias ao texto constitucional, às normas e princípios positivados pela Constituição Federal.

            Assim, por estar de acordo, tanto material quanto formalmente, com a Carta Magna de 1988, em especial com as diretrizes previstas em seu preâmbulo, é que o "Estatuto da Terra" (Lei nº 4.504/64) foi recepcionado pelo Ordenamento Jurídico nacional, em sua quase totalidade. Não obstante ter sido elaborado em uma conjuntura pouco favorável aos anseios sociais, num momento político de extremo conservadorismo e por um governo militar ditatorial, o mencionado diploma legal possui dispositivos de grande repercussão social, mormente no que se refere ao conflito pela terra, do que são exemplos os seus arts. 2º, §2º, e 15, que dispõem, in verbis:

            "Art. 2° É assegurada a todos a oportunidade de acesso à propriedade da terra, condicionada pela sua função social, na forma prevista nesta Lei.

            § 1° A propriedade da terra desempenha integralmente a sua função social quando, simultaneamente:

            a) favorece o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores que nela labutam, assim como de suas famílias;

            b) mantém níveis satisfatórios de produtividade;

            c) assegura a conservação dos recursos naturais;

            d) observa as disposições legais que regulam as justas relações de trabalho entre os que a possuem e a cultivem.

            § 2° É dever do Poder Público:

            a) promover e criar as condições de acesso do trabalhador rural à propriedade da terra economicamente útil, de preferencia nas regiões onde habita, ou, quando as circunstâncias regionais, o aconselhem em zonas previamente ajustadas na forma do disposto na regulamentação desta Lei;

            b) zelar para que a propriedade da terra desempenhe sua função social, estimulando planos para a sua racional utilização, promovendo a justa remuneração e o acesso do trabalhador aos benefícios do aumento da produtividade e ao bem-estar coletivo.

            Art.15.A implantação da Reforma Agrária em terras particulares será feita em caráter prioritário, quando se tratar de zonas críticas ou de tensão social".(grifos nossos)

            De tais dispositivos é possível deduzir que o legislador de 1964 teve sensibilidade suficiente para conferir ao Poder Público a função, em relação às tensões sociais ocasionadas pela luta pela posse e propriedade de terras agrárias, de não apenas atuar como Estado-polícia, mas, eminentemente, como Estado-social, priorizando exatamente essas zonas críticas de conflito.

            Percebe-se, dessa forma, que, em consonância com os princípios e objetivos fundamentais do Estado Democrático de Direito, insculpidos nos arts. 1º e 3º da Constituição Federal de 1988, o "Estatuto da Terra" já assegurava, desde aquela época, a todos a oportunidade de acesso à propriedade da terra, garantindo à sociedade brasileira o direito de ver atendida a função social das propriedades particulares e de ter priorizadas, para fins de Reforma Agrária, as áreas de tensão social.

            Esse direito da sociedade, de ver atendida a função social das propriedades particulares, recebeu ainda do constituinte de 1988 a proteção constitucional, mediante cláusula pétrea, de direito fundamental. Aliem-se a isto o direito social de moradia inserto no art. 6º da CF/88 e os direitos decorrentes da política agrícola e fundiária e da Reforma Agrária, e qualquer cidadão brasileiro terá argumentos suficientes para exigir do Estado a desapropriação das propriedades que não cumpram com sua função social.

            Ocorre que, nos últimos anos de governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, mais precisamente em 24 agosto de 2001, o Poder Executivo editou a Medida Provisória de nº 2.183-56/01, que alterou profundamente a forma como o Estado brasileiro passaria a lidar com os conflitos de terra e, especialmente, como passaria a tratar aqueles que, em razão do sistema capitalista excludente e reprodutor de desigualdades, não têm acesso à terra.

            Dentre as principais mudanças trazidas por aquela MP, destaca-se a perpetrada na Lei nº 8.629/93, em especial, no seu art. 2º, cuja redação original era a seguinte:

            "Art.

A propriedade rural que não cumprir a função social prevista no art. 9º é passível de desapropriação, nos termos desta Lei, respeitados os dispositivos constitucionais.

            § 1º Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social.

            § 2º Para fins deste artigo, fica a União, através do órgão federal competente, autorizada a ingressar no imóvel de propriedade particular, para levantamento de dados e informações, com prévia notificação".

            Pressionado pelo grupo dos grandes proprietários de terra, sempre presentes no Palácio do Planalto e com forte influência sobre nossos congressistas, o governo federal, ao arrepio dos princípios e objetivos do Estado brasileiro e contrariando diversas normas constitucionais, modificou o dispositivo acima transcrito, positivando sua ideologia neoliberal e prejudicando ainda mais a sociedade carente de terras.

            O prejuízo que ora se destaca e se guerreia vem ínsito no acréscimo do §6º ao referido art. 2º da Lei nº 8.629/93, que passou a vigorar com a seguinte redação:

             "Art.2º............................................................................................................................

            ........................

            § 2º - omissis;.

            § 3º - omissis;

            § 4º - omissis;

            § 5º - omissis;

            § 6º O imóvel rural de domínio público ou particular objeto de esbulho possessório ou invasão motivada por conflito agrário ou fundiário de caráter coletivo não será vistoriado, avaliado ou desapropriado nos dois anos seguintes à sua desocupação, ou no dobro desse prazo, em caso de reincidência; e deverá ser apurada a responsabilidade civil e administrativa de quem concorra com qualquer ato omissivo ou comissivo que propicie o descumprimento dessas vedações".

            Na Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI/MC nº 2213 - DF, proposta pelo Partido dos Trabalhadores – PT e pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura – CONTAG, em que se questionava a validade, dentre outras, da norma suso transcrita, o Supremo Tribunal Federal se posicionou favoravelmente à sua constitucionalidade, sustentando que:

            "(...) Não é lícito ao Estado aceitar, passivamente, a imposição, por qualquer entidade ou movimento social organizado, de uma agenda político-social, quando caracterizada por práticas ilegítimas de invasão de propriedades rurais, em desafio inaceitável à integridade e à autoridade da ordem jurídica. - O Supremo Tribunal Federal não pode validar comportamentos ilícitos. Não deve chancelar, jurisdicionalmente, agressões inconstitucionais ao direito de propriedade e à posse de terceiros. Não pode considerar, nem deve reconhecer, por isso mesmo, invasões ilegais da propriedade alheia ou atos de esbulho possessório como instrumentos de legitimação da expropriação estatal de bens particulares, cuja submissão, a qualquer programa de reforma agrária, supõe, para regularmente efetivar-se, o estrito cumprimento das formas e dos requisitos previstos nas leis e na Constituição da República. - As prescrições constantes da MP 2.027-38/2000, reeditada, pela última vez, como MP nº 2.183-56/2001, precisamente porque têm por finalidade neutralizar abusos e atos de violação possessória, praticados contra proprietários de imóveis rurais, não se mostram eivadas de inconstitucionalidade (ao menos em juízo de estrita delibação), pois visam, em última análise, a resguardar a integridade de valores protegidos pela própria Constituição da República". (grifos apostos).

            Da leitura perfunctória do texto do § 6º do art. 2º da Lei nº 8.629/93 e do posicionamento do Colendo STF, seria possível aduzir-se que a norma em debate visaria apenas "inibir abusos e atos de violação possessória", resguardando, em última análise "a integridade de valores protegidos pela própria Constituição da República".

            É de se questionar, todavia, quem são os verdadeiros prejudicados com os efeitos jurídicos do dispositivo legal e que valores estariam sendo por ela protegidos.

            Com um pouco mais de atenção, fácil é deduzir que não são os "invasores" ou os "malfeitores" os verdadeiros prejudicados com a proibição inserta no preceito legal em tela. Estes já são atingidos pelo parágrafo seguinte (§ 7º) que prevê:

            "§7º Será excluído do Programa de Reforma Agrária do Governo Federal quem, já estando beneficiado com lote em Projeto de Assentamento, ou sendo pretendente desse benefício na condição de inscrito em processo de cadastramento e seleção de candidatos ao acesso à terra, for efetivamente identificado como participante direto ou indireto em conflito fundiário que se caracterize por invasão ou esbulho de imóvel rural

(...)".

            Não são também a "entidade e/ou o movimento social" que, de qualquer forma, contribua para as "invasões" ou para os atos ilícitos praticados contra a propriedade particular os mais prejudicados. Estes já recebem a sanção prevista nos §§ 8º e 9º do art. 2º do diploma legal em questão:

            "§ 8º A entidade, a organização, a pessoa jurídica, o movimento ou a sociedade de fato que, de qualquer forma, direta ou indiretamente, auxiliar, colaborar, incentivar, incitar, induzir ou participar de invasão de imóveis rurais ou de bens públicos, ou em conflito agrário ou fundiário de caráter coletivo, não receberá, a qualquer título, recursos públicos.

            § 9º Se, na hipótese do § 8º, a transferência ou repasse dos recursos públicos já tiverem sido autorizados, assistirá ao Poder Público o direito de retenção, bem assim o de rescisão do contrato, convênio ou instrumento similar."

            Não há dúvidas de que os mais prejudicados e verdadeiros sancionados pela funesta norma ora atacada são os excluídos do acesso à terra que em nada concorrem para os atos de ocupação. São as crianças, os jovens, os idosos, pais e filhos de trabalhadores e trabalhadoras rurais que tentam heroicamente sobreviver às injustiças inerente ao sistema posto. Em última análise, é possível afirmar, outrossim, que toda a sociedade brasileira acaba sendo punida por atos facilmente inividualizáveis.

            Registre-se, por oportuno, que não estamos condenando ou vangloriando as ocupações de terra perpetradas por grupos ou entidades do movimento social. Este não é o cerne de nosso debate nem a pretensão deste ensaio. Estamos a questionar, isto sim, frise-se, a injusta e inconstitucional punição imposta à sociedade brasileira.

            É o direito da sociedade que está sendo vulnerado, porquanto ser ela a titular, como antedito, do interesse na vistoria dos imóveis rurais que supostamente não cumpram sua função social e na desapropriação daqueles em que se constatar tal descumprimento. Ao proibir que o INCRA fiscalize, vistorie e, eventualmente, desaproprie as propriedades privadas que não atendam à sua função social, a lei federal está manifestamente contrariando e afrontando dispositivos da Constituição Federal.

            Senão, vejamos.

            Primeiramente, na hipótese de o imóvel rural invadido ser efetivamente improdutivo, por exemplo, e, portanto, descumpridor de sua função social, tal vedação legal estará ferindo de morte o art. 5º, XXIII, da Carta Magna, uma vez que o Estado brasileiro, por meio de sua legislação infraconstitucional, estará protegendo, por longos dois anos, uma propriedade que não atende a sua função social, o que, pela compreensão holística do texto constitucional, não lhe é permitido.

            Além disso, são igualmente violados pelo mencionado § 6º do art. 2º da Lei nº 8.629/93 os arts. 3º e 6º da CF/88, porquanto estar o Estado brasileiro indo, com a consecução daquela norma, de encontro ao seu objetivo fundamental de redução das desigualdades e privando, por um biênio, parte da sociedade do seu direito à moradia e ao trabalho.

            Por derradeiro, tal norma federal ofende, ainda, o art. 184 da Constituição Federal de 1988, que estabelece competir "à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social". Ora, é clara, aliás, cristalina a contradição entre a norma inferior e a Constituição. Esta determina que o imóvel que não esteja cumprindo com sua função social seja desapropriado pela União. Aquela veda o Estado de fiscalizar as propriedades supostamente improdutivas e, mesmo que já se tenha constatado o não atendimento da função social de determinada propriedade, proíbe o Estado de desapropriá-la.

            Tal contradição é, por óbvio, insustentável e, como já exposto, no embate entre normas do sistema jurídico prevalecerá sempre a de nível constitucional.

            Como se não bastasse, a referida inconstitucionalidade é perceptível ainda na contrariedade aos princípios do Estado Democrático de Direito e da Justiça Social. Ao proibir que o INCRA fiscalize as terras objeto de conflito agrário, o infeliz preceito legal em comento está retirando o Estado-social das zonas de tensão, vetando-lhe a tentativa de solução pacífica e deixando apenas o Estado-polícia para reprimir a luta entre as partes envolvidas.

            Ora, o preâmbulo da Constituição Federal já dispunha que o Estado brasileiro está comprometido, "na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias". Todavia, conforme se aduz do caso concreto que serve de base ao presente estudo, a lei federal em debate retira o Estado-social das zonas de tensão agrária, do que resulta a violência e a desordem, o conflito direto entre proprietários e invasores e, muitas vezes, entre Estado-polícia e invasores, que a imprensa brasileira já se acostumou a noticiar.

            Vive-se, hoje, em clima de verdadeira guerra pela posse da terra, tendo o Estado, como visto, abstido-se de solucionar a questão pacificamente. Tal situação é jurídica e socialmente insustentável e essa é a razão primordial para se banir do Ordenamento Jurídico brasileiro tal maléfica norma.

            O movimento pela declaração de inconstitucionalidade já começou com o PT e a CONTAG, mediante o controle concentrado da constitucionalidade das normas. O Ministério Público Federal, como garante da Constituição Federal e dos interesses sociais, também já deu seu primeiro passo, ao questionar a validade e a aplicação do § 6º do art. 2º da Lei nº8.629/93, lançando mão do controle difuso de constitucionalidade. Cabe agora ao Poder Judiciário, como intérprete e aplicador máximo do Ordenamento Jurídico pátrio, harmoniza-lo à luz do texto constitucional, garantindo à sociedade o seu direito de acesso à terra e de ver atendida a função social das propriedades particulares, mormente a dos imóveis rurais.

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Sobre o autor
André Carneiro Leão

É Mestre em Direito Penal pela Universidade Federal de Pernambuco-UFPE. Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal. É Professor da Faculdade Damas de Instrução Cristã. Professor convidado do Instituto de Magistrados de Pernambuco-IMP. É Defensor Público Federal. Titular do 9ª Ofício Criminal da DPU/PE. Ex-chefe da Defensoria Pública da União em Pernambuco. Vice-Diretor da Escola Superior da Defensoria Pública da União (ESDPU). Coordenador Estadual do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais-IBCCRIM. Foi professor universitário de Direito Penal e Processual Penal da Faculdade de Direito de Olinda (AESO/BARROS MELO). Foi professor de cursos para concursos. Foi Professor e Coordenador da disciplina Direito Previdenciário da Escola Superior da Advocacia de Pernambuco (ESA/PE). Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco-UFPE.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LEÃO, André Carneiro. A função social da propriedade e as ocupações de terra por movimentos sociais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 764, 7 ago. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7089. Acesso em: 23 nov. 2024.

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