A precária prestação de serviços públicos de transporte de passageiros em Salvador-BA e o dever do poder público em garantir o cumprimento do CDC

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O transporte público de Salvador-BA é marcado por problemas crônicos. Esses fatores causam um transporte deficiente, sem locais para receber seus passageiros e sem espaço para transportá-los com qualidade e segurança.

RESUMO: O objeto de estudo do presente trabalho é o transporte público em Salvador-BA e seus graves problemas. Através de pesquisas com as empresas e com a população, se identificou que a frota de ônibus reduzida e sem estrutura para o transporte organizado gerou para os soteropolitanos a realização de um deslocamento urbano caótico. Em qualquer contrato público, é obrigatório se buscar os padrões que atendam a qualidade exigida, porque além de serem meios para o exercício de muitos direitos fundamentais, são aspectos preconizados pelos princípios que regem a Administração Pública. Além disto, estes serviços são remunerados e estão sobre a tutela do Código de Defesa do Consumidor, dando aos usuários proteções consumeristas. Com fulcro nesses argumentos, compreende-se que a lesão é configurada tanto pela omissão do Poder Público, frente as suas obrigações legais e constitucionais, como também as ações das empresas concessionárias. Como suporte a essa investigação, foram obtidos dados de relatórios de usuários, a percepção de cada usuário, o posicionamento das empresas concessionárias, as ações da prefeitura e as alternativas para alcançar um transporte público com mais qualidade e eficiência, de modo que a Administração Pública deve fiscalizar as empresas, para que estas obedeçam aos padrões de qualidade exigidos pelo CDC, não esperando só a atuação do Ministério Público, mas a própria Administração punir as empresas irregulares com as sanções previstas nos contratos firmados de modo a mudar esta realidade.

Palavras-chave: Transporte Público. Serviços Públicos. Código de Defesa do Consumidor.

ABSTRACT: The object of study is public transport in Salvador-Ba and its serious problems. Through researches with the companies and the population, it was identified that the reduced fleet and without structure for the organized transport lead to the soteropolitanos to a chaotic urban displacement. Any public contract is mandatory if it seeks the standards that meet the required quality, because in addition to being the means to exercise many fundamental rights are aspects advocated by the principles of Public Administration. In addition, these services are remunerated and are under the protection of the CDC giving users consumer protection. With the basis of these arguments, it is understood that the injury is configured both by the omission of the public power in front of its legal and constitutional obligations, as well as the actions of the concessionary companies. In support of this investigation, data were obtained from user reports, perception of each user, the positioning of the concessionaire companies, the actions of the city hall and the alternatives to reach a public transport with more quality and efficiency, so that the Public Administration must supervise the companies to obey the standards of quality demanded by the CDC, not expecting only the performance of the Public Prosecution Service, but the Administration itself punish irregular companies with the sanctions provided in the contracts signed in order to change this reality.

Keywords: Public transportation. Public services. Code of Consumer Protection.


INTRODUÇÃO:

Os serviços públicos são essenciais para o funcionamento da sociedade brasileira e o seu devido controle é vital para a proteção dos consumidores. Este artigo não se limita a discutir sobre a possibilidade de aplicação do Código de Defesa do Consumidor - CDC aos serviços públicos que recebem alguma remuneração, visto que essa polêmica já foi sanada pelo Superior Tribunal de Justiça - STJ, conforme trecho do REsp 1.062.975/RS transcrito a seguir: "na relação estabelecida entre o Poder concedente e a concessionária vige a normatização administrativa e na relação entre a concessionária e o usuário, o direito consumerista." Sendo possível, portanto,  a aplicação do código consumerista no transporte público.

A Lei 8.088/90 determina que deve se buscar os padrões de qualidade estabelecidos pelo Código Consumerista, porque além de serem meios para o exercício de muitos direitos sociais, são aspectos preconizados pelos princípios que controlam a Administração Pública.

A grande obscuridade, entretanto, reside no fato que, com tantas proteções jurídicas e políticas dadas ao cidadão, além de recursos para que reivindiquem a devida mudança, se continua nesse crônico problema.

Com fulcro nesses argumentos, compreende-se que a lesão aos direitos dos consumidores soteropolitanos é configurada tanto pela omissão do poder público frente as suas obrigações legais e constitucionais, como também as ações das empresas concessionárias. O Poder Público deve intervir haja vista a proteção aos consumidores e o dever de intervenção quando ocorre o desrespeito a determinados institutos, como apresentaremos a seguir.


2 O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR  

Iniciando a análise pelas leis, vamos nos atentar para a Lei nº 8.088/90[3], que rege as relações de consumo, a qual também incide sobre os serviços públicos. O Código de Defesa do Consumidor (CDC) foi criado para regulamentar as relações estabelecidas entre o vínculo estabelecido entre fornecedor e o que consome, ligados por um objeto que será necessariamente, um serviço ou um produto.[4]

Esses três requisitos devem coexistir, de modo que, na ausência de um deles, não se aplicaria esse código, e sim, as normas dispostas no Código Civil e legislações específicas. O Poder Público pode ser fornecedor e, normalmente, presta os serviços por meio de concessão, autorização, permissão. Quem paga tarifa ou preço público é consumidor, também existindo taxas que dizem respeito aos serviços públicos essenciais e podem suscitar a aplicação do CDC.

Para ser consumidor, é preciso ter destinação final, não pode ser o agente intermediário. A destinação final tem que ser fática e econômica.  A Lei nº 8.088/90 foi um grande marco na história da defesa do consumidor. A legislação prevê também padrões de conduta, prazos e penalidades em caso de desrespeito à regra. O CDC assegura outros direitos básicos, como a proteção à vida; à saúde; à segurança contra riscos provocados no fornecimento de produtos e serviços; proteção contra a publicidade enganosa e abusiva; e prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais. As disposições são claras quanto ao descumprimento das regras consumeristas, especialmente, porque se coadunam com as exigências de qualidade da Lei de Licitações[5], sendo o panorama atual mais grave ainda.

Hely Lopes Meirelles[6], assim escreve: O Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90) considera como direito básico a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral (art. 6º) e, em complemento, obriga o Poder Público ou os seus delegados a fornecer serviços adequados...dispondo sobre os meios para o cumprimento daquelas obrigações e a reparação dos danos (art. 22 e parágrafo único).

Os serviços públicos são de responsabilidade do Poder Público. Dispõe o art. 175: “Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviço públicos” (art. 21, XII, e art. 24 175 CF/88).

O repasse das atividades dá-se, em geral, através de contrato administrativo, onde estão presentes as chamadas cláusulas exorbitantes, que garantem à Administração Pública a manutenção de sua prevalência sobre o particular, podendo influir, unilateralmente, na execução do serviço, se o mesmo não estiver atendendo ao interesse público. Assim, pode, exemplificando, fiscalizar a execução, ou rescindir o contrato (art. 58, II e III, Lei nº 8.666/93). Resta claro, então, que cabe à Administração Pública a regulamentação e o controle dos serviços públicos, sejam eles prestados por ela diretamente, sejam executados por terceiros, com vistas a cumprir os princípios que regem tal tema, em especial os da eficiência, continuidade, regularidade e segurança.

Mas não é só a ela que cabe essa tarefa. Além desse controle administrativo, sujeitam-se também aos controles judicial (art. 5º, XXXV, CF/88) e legislativo, com o auxílio do Tribunal de Contas (art. 71 e 75, CF/88). O controle legislativo pode dar-se, entre outras formas, através de Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), pedido de informação, convocação de autoridades e fiscalização contábil, financeira e orçamentária.

Por sua vez, perante o Judiciário, o controle é comumente feito através de mandado de segurança, ação popular, ação civil pública, habeas data e mandado de injunção. Quanto aos serviços públicos sujeitos às regras de proteção ao consumidor, trazidas pela Lei nº 8.078/90, essa não é uma questão pacificada, não existe uma unidade de entendimento por parte da doutrina, conforme explica Sergio Cavalieri[7]:uma corrente defende a aplicação do CDC somente aos serviços remunerados por taxa (preço público)....Uma segunda corrente, menos ortodoxa, da qual são adeptos Cláudia Lima Marques e Adalberto Pasqualotto, entende que o CDC é aplicável indistintamente, a todos os serviços públicos, remunerados por tributo ou tarifa. (CAVALIERI, 2008, p. 68).

Como visto anteriormente, a doutrina consumerista diverge acerca de quando ou quais serviços estão sujeitos às regras do código consumerista, uma corrente defendendo piamente que somente os serviços públicos remunerados sofreriam a incidência do diploma, já a outra corrente defende que o CDC deva ser aplicado a todos os serviços públicos.

Durante algum tempo, o entendimento jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça esteve dividido acerca do tema. A 2ª turma do referido Tribunal, no julgamento do Recurso Especial 793422 (03/09/2006), decidiu o seguinte: O CDC somente se aplica aos serviços públicos remunerados por meio de tarifa ou preço público... (STJ, 2006, s/p.)

Desse modo, como o transporte público é acessado através do pagamento de tarifas ou preços públicos, sofrem a aplicação do Código de Defesa do Consumidor, devendo ser controlado tanto pelas normas consumeristas como pelos contratos administrativos. De acordo com o artigo 54 da Lei nº 8.666/93 (Lei de Licitações e Contratos Administrativos), os contratos administrativos são regidos por suas cláusulas, pelos preceitos de direito público e, supletivamente, pela teoria geral dos contratos e pelas disposições de direito privado.

Os efeitos do descumprimento dos contratos administrativos diferem-se, em muitos aspectos, do descumprimento dos contratos privados. De fato, se no âmbito dos contratos privados o não cumprimento das obrigações avençadas, seja ele voluntário ou não, com ou sem culpa, conduz à resolução do pacto, o descumprimento de obrigações no âmbito dos contratos administrativos pode ensejar, além da rescisão da avença, a aplicação de penalidades pelo ente público contratante. 

O Tribunal Regional Federal da 1ª Região - TRF1 também já decidiu que a Administração deve ser fiel ao princípio da vinculação ao instrumento convocatório (AC 199934000002288). O artigo 78 da Lei nº 8.666/93 contém um rol exemplificativo dos motivos que podem levar a Administração a rescindir unilateralmente os contratos administrativos. No entanto, como dito linhas acima, a rescisão do pacto não é a única consequência para o descumprimento contratual perpetrado pelo particular, que pode ensejar a aplicação das sanções previstas no art. 86 da lei de Licitações.  Conforme Jessé Torres Pereira Júnior[8] (2002) explicou ‘’Logo, se a suspensão ocorre perante a Administração, a empresa penalizada somente estará impedida de licitar e contratar perante o órgão que lhe aplicou a suspensão. Se a penalidade fosse a declaração de inidoneidade, de que cuida o art. 87, IV, os efeitos seriam mais amplos, porque devem ser observados perante a Administração Pública.’’(BRASIL, 1993, s/p.)

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Do mesmo modo, os agentes públicos devem ter seus atos contratuais controlados pelo Poder Judiciário para que respeitem a legalidade e não cometam excessos haja vista que Celso Antônio Bandeira de Melo[9] explica que ‘’Assim, os atos administrativos praticados sem a tempestiva e suficiente motivação são ilegítimos e invalidáveis pelo Poder Judiciário toda vez que sua fundamentação tardia, apresentada apenas depois de impugnados em juízo, não possa oferecer segurança...’’ A aplicação de penalidades não se restringe às hipóteses de inexecução total ou parcial do contrato, podendo abarcar também todo e qualquer ilícito que venha a ser perpetrado durante o procedimento licitatório e a execução do contrato.


3 A PRECARIEDADE NA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS DE TRANSPORTE DE PASSAGEIROS: PRINCIPAIS PROBLEMAS

O transporte público de Salvador-BA é marcado por problemas crônicos, como a quantidade insuficiente de veículos e linhas, além da carência de organização no sistema de transporte. Esses fatores causam um transporte deficiente, sem locais para receber seus passageiros e sem espaço para transportá-los com qualidade e segurança.

3.1 AUSÊNCIA DE PONTUALIDADE E DE URBANIDADE

Os serviços de transportes públicos apresentam evidentes irregularidades, como superlotação e falta de pontualidade. Diversos pontos de ônibus não possuem a mínima estrutura para acomodar dignamente seus passageiros e não oferece programação de horário dos veículos de modo a não terem previsões exatas que viabilize aos clientes se organizarem para seus compromissos, prejudicando toda a população. Os ônibus não acomodam com qualidade os cidadãos e nem oferece segurança para os tais. Dezenas de pessoas são transportadas espalhadas pelo veículo sem suporte de apoio e sem proteção para frenagens bruscas.

Confrontando com os artigos 4º, II (melhoria dos serviços públicos como princípio da Política Nacional das Relações de Consumo), 6º, X (prestação adequada dos serviços públicos como direito dos consumidores), e 22 (obrigação do Estado e de seus delegatórios pela prestação de serviços adequados), e com a Lei nº 8.987/1995 (Lei de Concessões e Permissões de Serviços Públicos), em seu art. 7º, caput, faz remissão genérica à aplicação do CDC aos usuários de serviços públicos. Logo, se elas estão irregulares perante as disposições consumeristas e legais, deveriam estar sendo reprimidas pelos órgãos de fiscalização e o poder judiciário.

É preciso reivindicar para os gestores públicos aplicarem o Código de Defesa do Consumidor, haja vista os deveres e responsabilidades do fornecedor dos serviços são expressos na Lei Consumerista e devem ser respeitados.

3.2 QUANTIDADES INSUFICIENTE DE VEÍCULOS E DE LINHAS

O Brasil apresenta uma grande concentração populacional e uma formação urbano-arquitetônica deficiente, o que permite inferir a racional e estrita necessidade de ser proporcionado uma frota compatível com a quantidade de pessoas dos municípios pelas empresas que assumiram os contratos licitatórios.

A realidade, entretanto, é diferente. As metrópoles brasileiras são marcadas por frotas insuficientes, frente a quantidade de pessoas e de acordo com os padrões de qualidade do CDC e da Lei de Licitação. É incabível transportar dignamente 200 pessoas em um veículo coletivo, o que leva a questionar e reivindicar a correção exigida pelo Poder Público.

A licitação é feita sobre a condição de serem assumidas e mantidas as cláusulas contratuais, sob pena de resolução contratual. Esse contrato viabilizará o exercício do direito fundamental ao transporte e possibilitará o funcionamento e mobilidade urbana. É inconcebível permitir que o inadimplemento em um acordo dessa natureza entre o particular e o Poder Público que aborde um direito tão imprescindível se permita que a condução de um número compatível de frotas seja desrespeitada.

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Sobre os autores
Clemens de Medeiros Vilas Boas

[Graduando em Direito pela Universidade Federal da Bahia.

Joseane Suzart Lopes da Silva

Graduada em Direito pela Universidade Federal da Bahia (1994). Especialista em Direito Público (2003). Mestre em Direito Privado pela Universidade Federal da Bahia (2007). Doutora em Direito pela Universidade Federal da Bahia (2014). Membro do Ministério Público da Bahia, desde 1995, titularizando a 5ª Promotoria de Justiça do Consumidor da Capital. Professora de Direito das Relações de Consumo da Universidade Federal da Bahia.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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