A precária prestação de serviços públicos de transporte de passageiros em Salvador-BA e o dever do poder público em garantir o cumprimento do CDC

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4 A NECESSÁRIA EFETIVIDADE DA INTERVENÇÃO DO PODER PÚBLICO

O Poder Público intervém de muitas maneiras na sociedade. Entretanto, raras são as ações que melhoram efetivamente a realidade do cidadão no transporte público. Os órgãos competentes recebem as reclamações, registram, apresentam para a mídia. O Ministério Público ingressa com ação civil pública, mas os efeitos dessas ações não são substanciais se a Administração Pública não colaborar e fiscalizar conjuntamente. É preciso que a contratante, amparada pelos princípios da Administração Pública, se posicione como defensora do interesse público e não alheia aos problemas locais.

4.1 O PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO ESTATAL NO CDC (ART. 4o)

A Política Nacional das Relações de Consumo conferiu poderes ao Estado para desenvolver e promover padrões de qualidade e de segurança adequados, garantindo a durabilidade e desempenho do produto ou serviço. Uma relação contratual no sistema tradicional poderia causar ao consumidor frustações e prejuízos, posto que o fornecedor é quem elabora o contrato unilateralmente, podendo este redigi-lo da forma mais benéfica à ele.

As normas do Código de Defesa do Consumidor têm o condão de proteger e garantir essa confiança do consumidor no vínculo contratual, principalmente na execução contratual, se este atingiu a destinação pretendida pelo consumidor, bem como a segurança do produto ou serviço. Conforme se observa no artigo 4º do CDC:

A Política Nacional das Relações de Consumo  preza pelo  respeito à  dignidade, saúde e segurança, além de buscar a  transparência e harmonia das relações de consumo conforme diz a lei Lei 8.088/90 nos incisos transcritos:’’ incentivo à criação pelos fornecedores de meios eficientes de controle de qualidade e segurança de produtos e serviços, assim como de mecanismos alternativos de solução de conflitos de consumo; racionalização e melhoria dos serviços públicos’’

O artigo 4º da Lei 8.088/90 preza pela proteção efetiva do consumidor, de modo a viabilizar o melhor serviço possível e buscar a constante racionalização e melhoria do transporte público.

4.2 DA NECESSÁRIA ATUAÇÃO PROATIVA DO PODER PÚBLICO.

A aplicação do CDC não é absoluta, tendo em vista que essas atividades públicas não são atividades econômicas comuns, sujeitas à liberdade de empresa e desconectadas da preocupação de manutenção de um sistema coletivo. Essa estrutura ratifica o Estado Democrático de Direito, que preza pela dignidade da pessoa humana, através da atividade do Estado em prol do cidadão e do dirigismo estatal.

Mais importante que a denúncia e a instauração do inquérito civil pelo Ministério Público do Estado, são as reais correções das irregularidades. Infelizmente, pouco se percebe a aplicação do CDC nas concessionárias, permissionárias e autorizadas. Além dessa omissão jurídica e legislativa, é notável que o Poder público não se manifesta de maneira adequada haja vista as contínuas e evidentes ilegalidades manifestas.

É preciso tornar eficaz e eficiente a denúncia, a investigação, a devida responsabilização e a real mudança. Mudança essa que deve ser divulgada pelas empresas envolvidas, órgãos fiscais e o cidadão. Coaduna-se com essa postura, o estimado jurista, Bruno Miragem, através do recorte abaixo da entrevista feita pelo O Globo[10]:’’Mas, qual é caminho para o brasileiro se tornar um cidadão-consumidor? Segundo os especialistas, dois pontos são fundamentais: informação e mobilização. ‘’

É evidente que existem limitações estruturais na sociedade brasileira. É uma nação emergente com graves problemas sociais, refletidos pela desigualdade social e concentração de renda. É um país que sofreu uma urbanização desordenada, marcada por fenômenos como a “macrocefalia urbana” e “favelização”, o que dificulta mais ainda a prestação de serviços e transportes públicos como ocorrem em países desenvolvidos os quais tem uma fiscalização cidadã de maneira consciente e eficaz.

O grande problema não reside na ausência de realização dos serviços e transportes públicos. Todavia, na forma em que são prestados esses serviços, deve se atender aos critérios de qualidade e eficiência, respeitar as regras e serem submetidas às penalidades do CDC como se ocorresse com uma empresa privada. Esse panorama nacional, entretanto, não exime as empresas comprometidas com o Poder público de atender aos indispensáveis critérios de qualidade assumidos.

Mesmo nos contextos mais complexos, deve a empresa se adequar à situação e servir da melhor maneira. A Teoria do Risco já doutrinava essas possibilidades, o que se torna um ônus que deve ser assumido pela empresa. Existe a responsabilidade do Estado e a responsabilidade da empresa. O Estado falha na fiscalização e exigência das empresas, já as empresas falham na execução do que foi estabelecido pela licitação e exigido pelo CDC.

Observando-se os seguintes julgados, percebe-se a jurisprudência tendenciosa na aplicação do CDC nesses julgados[11]:

RECURSO ESPECIAL N° 263229/SP (2000/0058972-1) EMENTA: ADMINISTRATIVO. EMPRESA CONCESSIONÁRIA DE FORNECIMENTO DE ÁGUA. RELAÇÃO DE CONSUMO. APLICAÇÃO DOS ARTS. 2o E 42, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR.

1. Há relação de consumo no fornecimento de água por entidade concessionária desse serviço público a empresa que comercializa com pescados. 2. A empresa utiliza o produto como consumidora final. 3. Conceituação de relação de consumo assentada pelo art. 2º, do Código de Defesa do Consumidor. 4. Tarifas cobradas a mais. Devolução em dobro. Aplicação do art. 42, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor. 5. Recurso provido.

Conforme pronunciamento do STJ no Recurso Especial acima, existe uma relação de consumo nos serviços públicos no qual existe tarifação haja vista os elementos apresentados no Código Consumerista no artigo 2º. Desse mesmo modo, deve ocorrer o mesmo com o transporte público, levando a aplicação dos direitos do consumidor, adotando os padrões de qualidade impostos aos serviços fornecidos pelas empresas concessionárias.

1. Embora a fatura de abastecimento de água esteja em nome de terceiro (avô da autora e já falecido), comprovando a parte autora que residia no imóvel desde a sua infância, incluindo a demanda a discussão a respeito da suspensão do fornecimento de água por débito pretérito, na qualidade de usuária do serviço essencial, possui a autora legitimidade ativa para postular o restabelecimento e a manutenção do serviço público essencial, mediante o adimplemento das faturas de consumo regulares mensais e atuais.

2.Independentemente da responsabilidade pelo consumo de água não pago, assiste ao consumidor o direito de não ter interrompido o fornecimento do serviço público essencial, pois se trata de débito antigo e consolidado, cumprindo à concessionária buscar a cobrança por intermédio das vias ordinárias.

(Agravo de Instrumento Nº 70031257546, Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Irineu Mariani, Julgado em 21/07/2009.)

Os serviços públicos têm aplicação contínua dos direitos consumeristas, conforme jurisprudência colacionada acima. É preciso seguir o padrão de proteção ao consumidor nas relações de consumo, de modo a fiscalizar as empresas que infringem tais proteções e puni-las com parâmetros previstos na Lei de Licitações e no Código de Defesa do Consumidor.

4.3 A LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DA INTERVENÇÃO

 Há uma polêmica, também, acerca do problema federativo na aplicação genérica do CDC aos casos em que envolver um Estado ou Município. Nessa hipótese, estar-se-ia diante de uma lei da União, se sobrepondo as leis dos outros entes federativos, as quais dispõem sobre os seus próprios serviços públicos. Essa discussão, entretanto, não deve servir de legitimação para a inércia estatal, haja vista que o artigo 34, nos incisos VI e VII, dispõe expressamente que é permitido a intervenção da União nos outros entes, se houver a desobediência à lei federal ou a inobservância dos direitos da pessoa humana.

Entende-se que se nos casos citados é permitida uma intervenção mais direta da União, seria legítima aplicação da lei federal na má prestação de serviços públicos, visto que são direitos constitucionais expressos no artigo 6º, na CF/1988, como o transporte e a segurança. Além de o CDC ser uma lei Federal, com vigência em todo o território nacional. 

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Por outro lado, a repartição vertical, de acordo com o art. 24 da CR/88, estabelece a competência legislativa concorrente, na qual um ente estabelecerá as normas gerais e o outro as normas suplementares. Eventuais conflitos entre essas normas são resolvidos de acordo com a competência do ente federado para o tratamento da matéria, e não pelo critério hierárquico. Contudo, ressalte-se que, não obstante não haver hierarquia entre as leis de cada um dos entes federativos, há relação hierárquica, respectivamente, entre a Constituição Federal, a Constituição do Estado, equiparada a ela, a Lei Orgânica do Distrito Federal e a Lei Orgânica do Município.

Os direitos dos consumidores são amparados pela CF/88, especialmente no que tange a eficiência, que é reflexo de normas constitucionais, como o princípio da eficiência, contido no artigo 37, da Lei Maior.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os serviços públicos são regidos por um regime jurídico próprio. Porém, já é pacificado na jurisprudência do STJ a aplicação do CDC nesses serviços quando remunerados. Embora não seja o principal córtex epistemológico desse artigo, o seu objeto investigativo foi amparado no argumento de que esses serviços devem ocorrer respeitando os critérios consumeristas, além de deverem ser fiscalizados e corrigidos com base nos parâmetros estabelecidos na Lei nº 8.088/90.

O artigo 22 do estatuto consumerista disciplina que “os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos”. Bem como dispõe o artigo 5º, inciso XXXII, da Constituição Federal: “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”. Dessa forma, deve a Administração Pública garantir a devida execução desses serviços sob pena de sofrer responsabilização pelos erros.

Por fim, o Código de Defesa do Consumidor não se deteve tão somente a estabelecer critérios de qualidade, avançando para prever para o consumidor a prestação de um serviço adequado e eficaz e dita que os controles de natureza legal, administrativa e judicial seriam, indubitavelmente, relevantes para a proteção dos contratantes mais frágeis, especialmente, os consumidores. O transporte público em Salvador - BA afeta a todos de modo direto e indireto e deve ser tratado com responsabilidade política, de maneira que os agentes públicos fiscalizem este serviço e não permitam que os cidadãos tenham seu direito fundamental ao transporte suprimido.

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Sobre os autores
Clemens de Medeiros Vilas Boas

[Graduando em Direito pela Universidade Federal da Bahia.

Joseane Suzart Lopes da Silva

Graduada em Direito pela Universidade Federal da Bahia (1994). Especialista em Direito Público (2003). Mestre em Direito Privado pela Universidade Federal da Bahia (2007). Doutora em Direito pela Universidade Federal da Bahia (2014). Membro do Ministério Público da Bahia, desde 1995, titularizando a 5ª Promotoria de Justiça do Consumidor da Capital. Professora de Direito das Relações de Consumo da Universidade Federal da Bahia.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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