"Um texto, depois de ter sido separado do seu emissor e das circunstâncias concretas da sua emissão, flutua no vácuo de um espaço infinito de interpretações possíveis. Por consequência, nenhum texto pode ser interpretado de acordo com a utopia de um sentido autorizado definido, original e final. A linguagem diz sempre algo mais do que o seu inacessível sentido literal, que já se perdeu desde o início da emissão textual” - UMBERTO ECO [1].
A interpretação sistemática do ordenamento jurídico permite concluir que, mesmo após a chamada “reforma trabalhista”, ainda são devidas horas in itinere ao trabalhador que labore em local de difícil acesso ou não servido por transporte público regular em horário compatível com sua jornada de trabalho, sobretudo no meio rural, pois a aplicação literal do art. 58, §2o, da CLT, com a nova redação imposta pela Lei 13.467/2017, não se sustenta diante do confronto com os demais preceitos e princípios que integram o sistema normativo.
A realidade cotidiana, revelada em milhares de processos trabalhistas, indica que, com frequência, sobretudo no meio rural, os trabalhadores dedicam várias horas do seu dia nesse deslocamento para o trabalho (há casos em que esse período chega a ser de mais de 4 horas diárias), razão pela qual, além de ser antijurídico, como se demonstrará a seguir, também parece ser injusto e pouco razoável não se remunerar esse tempo despendido em longas viagens, mesmo porque, em regra, o empregador só fornece a condução em interesse próprio, na medida em que, se não fosse o transporte fornecido pela empresa, não haveria mão-de-obra disponível para laborar em locais ermos ou de difícil acesso e a produção ficaria prejudicada. Em muitos casos, nem mesmo haveria outra forma de o empregado se deslocar para o trabalho, como, por exemplo, os trabalhadores rurícolas que, em cada dia, trabalham em uma fazenda diferente, a centenas de quilômetros de distância de suas residências.
Vejamos, então, quais são as premissas jurídicas que conduzem a esse silogismo, começando por algumas noções elementares da hermenêutica forense e, depois, passando para a análise sistemática do direito às horas in itinere no contexto do ordenamento trabalhista.
1. NOÇÕES ELEMENTARES DE HERMENÊUTICA
INTERPRETAÇÃO LITERAL X INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA
Antes de adentrar no tema propriamente dito, cabe abrir um parêntese para relembrar que a interpretação literal de um único artigo, dissociado do sistema normativo em que está inserido, é a mais pobre e frágil técnica de hermenêutica forense, como bem ressaltou o Supremo Tribunal Federal, em acórdão relatado pelo Ministro Joaquim Barbosa: “consabido que a interpretação literal é a mais pobre, presa ao tempo em que os vocábulos guardavam sentido místico e se revestiam de invólucro sacramental, como destaca a melhor doutrina, não há como endossá-la diante das peculiaridades do caso concreto, a impor a prevalência dos métodos sistemático e teleológico de interpretação, atentos aos princípios norteadores do sistema jurídico em que se insere a norma, para dela extrair significado consentâneo com os valores que busca proteger” (...)[2]
Dois erros são muito recorrentes quando se sobrevaloriza à interpretação literal em detrimento de outras formas de compreensão do texto. O primeiro, que pode recair sobre qualquer análise literária (incluindo a jurídica), é o SOLIPSISMO exegético, a tendência natural de o ser humano acreditar que a única realidade possível é aquela que ele compreende, ignorando que outras pessoas podem ter compreensões completamente distintas e, às vezes, diametralmente opostas às suas, mas sem que deixem de ser igualmente válidas ou não menos “verdadeiras”. De uma forma bem simples, significa dizer que, a rigor, uma “leitura literal” nunca será totalmente “objetiva” ou isenta de “ideologia”, pois a compreensão de um determinado texto será sempre essencialmente subjetiva, variando o sentido de um indivíduo para outro. O significado de um texto não se aperfeiçoa na mão de quem o escreve, mas sim no olhar de quem o lê, com todas as suas suscetibilidades e idiossincrasias. É um processo bilateral e alográfico[3]. Logo, dizer que uma interpretação gramatical é mais isenta ou menos ideológica do que as demais é uma mera falácia para tentar inibir pensamentos divergentes e impor um discurso monolítico.
Daí a célebre frase do poeta e psicólogo chileno Alejandro Jorodowsky, realçando as deficiências da literalidade: “Entre o que eu penso, o que quero dizer, o que digo e o que você ouve, o que você quer ouvir e o que você acha que entendeu, há um abismo”.
O segundo grave erro daqueles que se apegam a uma interpretação gramatical, muito comum na análise de textos jurídicos, consiste em isolar o preceito a ser interpretado do sistema normativo que o informa, com prejuízo para a HARMONIA, a INTEGRIDADE e a COERÊNCIA INTRÍNSECA, pressupostos imprescindíveis para a coesão de qualquer ordenamento jurídico consistente. Em uma linguagem bem simplificada, esse vício da DESCONTEXTUALIZAÇÃO equivale àquele conhecido provérbio: “um texto, quando retirado do seu contexto, torna-se mero pretexto”.
Nesse diapasão ressoa a lição de Paulo de Barros Carvalho, que chama à atenção para o vício oculto na interpretação literal:
“Daí a atenção de cortar o problema, ofertando soluções simplistas e descomprometidas, como ocorre, por exemplo, com a canhestra “interpretação literal” das formulações normativas, que leva consigo a doce ilusão de que as regras do direito podem ser isoladas do sistema e, analisadas na sua compostura frásica, desde logo “compreendidas”. Advém daí que, muitas vezes, um único artigo não seja suficiente para a compreensão da norma, em sua integridade existencial. Vê-se o leitor, então, na contingência de consultar outros preceitos do mesmo diploma e, até, a sair dele, fazendo incursões pelo sistema.” [4]
O risco de isolamento de um preceito, quando interpretado de forma literal, fora do sistema normativo do qual é derivado, é inerente a esse método primitivo de exegese, desconsiderando uma lei fundamental da hermenêutica, a de que todo ordenamento jurídico tem como pressuposto básico a UNIDADE. Para Tercio Sampaio Ferraz Jr. “quando se enfrentam as questões de compatibilidade num todo estrutural, fala-se em interpretação sistemática ”. Cabe ao intérprete observar o sistema jurídico como um todo, devendo retirar o significado da norma analisando-se as regras de hierarquia (subordinação) e a conexão (coordenação) de normas do ordenamento que culmina e principia na Constituição. [5]
Deveras, a amplitude e o sentido da norma só podem ser compreendidos a partir de outros elementos de interpretação integrados, sobretudo o elemento sistêmico, que a analisa em confronto com todo o sistema do qual faz parte.
Para Carlos Maximiliano, o patriarca da hermenêutica brasileira, “o Processo Sistemático consiste em comparar o dispositivo sujeito a exegese, com outros do mesmo repositório ou de leis diversas, mas referentes ao mesmo objeto”. Assim, cabe ao intérprete analisar as várias normas jurídicas para conhecer-lhes o espírito. Tenta-se conciliar as antecedentes com as consequentes, e da análise das regras em conjunto deduzir o sentido de cada uma das normas. [6]
Mais adiante, MAXIMILIANO acrescenta: “Confronta-se a prescrição positiva com outra de que proveio, ou que da mesma dimanaram, verifica-se o nexo entre a regra e a exceção, entre o geral e o particular, e deste modo se obtém esclarecimentos preciosos. O preceito, assim submetido a exame, longe de perder a própria individualidade, adquire realce maior, talvez inesperado. Com esse trabalho de síntese é mais bem- compreendido”[7].
Não por acaso um dos precursores da GESTALT, o psicólogo Kurt Koffka, já ensinava que “para compreender as partes é preciso, antes, compreender o todo. O todo é diferente (ou independente) da soma das partes, no sentindo de que o todo tem existência própria”[8]. Transpondo essa concepção para a exegese jurídica, significa dizer que, para compreendermos bem o significado de um determinado preceito, precisamos, antes, estudar todo o sistema normativo que o precede, investigando os nexos de conexão e intertextualidade.
Em síntese, a interpretação literal, sem a devida contextualização hermenêutica, conduz à ruptura sistêmica, comprometendo a harmonia, a integridade e a coerência, atributos indispensáveis à higidez de qualquer ordenamento normativo.
O antídoto para esse veneno leguleio consiste na interpretação sistemática, técnica exegética que examina a validade e o sentido da norma dentro do sistema normativo no qual ela está inserida, ou seja, a análise não é feita de forma gramatical e isolada, mas sim de modo integrado e holístico, comparando um determinado artigo com outros preceitos, regras e princípios que formam o arcabouço jurídico.
2. A SUBSISTÊNCIA DO DIREITO ÀS HORAS “IN ITINERE”
UMA INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DA LEGISLAÇÃO TRABALHISTA
Partindo das premissas acima assentadas, podemos inferir que o art. 58, § 2o, da CLT, em sua redação atual, não resiste a uma interpretação sistemática do ordenamento jurídico trabalhista.
Importa observar que, antes da reforma, o texto original desse preceito estabelecia que “o tempo despendido pelo empregado até o local de trabalho e para o seu retorno, por qualquer meio de transporte, não será computado na jornada de trabalho, salvo quando, tratando-se de local de difícil acesso ou não servido por transporte público, o empregador fornecer a condução”, ratificando a Súmula 90/TST.
Após o advento da lei 13.467/2017, com o aparente propósito de suprimir o direito às horas in itinere, o art. 58, §2o, da CLT, passou a determinar que: “o tempo despendido pelo empregado desde a sua residência até a efetiva ocupação do posto de trabalho e para o seu retorno, caminhando ou por qualquer meio de transporte, inclusive o fornecido pelo empregador, não será computado na jornada de trabalho, por não ser tempo à disposição do empregador.”
Portanto, à primeira vista, em uma exegese açodada e literal, a conclusão óbvia seria que não existe mais direito às horas in itinere em nenhuma hipótese, pouco importando a distância até o local de trabalho ou a quantidade de horas despendidas nesse deslocamento.
Todavia, em uma análise sistemática, veremos que não é bem assim e que há inúmeros outros fundamentos para se reconhecer o tempo de transporte como tempo à disposição do empregador, superando a literalidade do art. 58, §o 2o, da CLT, norma que ficou isolada – e descontextualizada - dentro do sistema normativo que regula a duração da jornada de trabalho e sua respectiva retribuição.
Comecemos pelo princípio, com perdão do pleonasmo. O atual art. 4o da CLT, em seu “caput”, expressamente estatui que “considera-se como de serviço efetivo o período em que o empregado esteja à disposição do empregador, aguardando ou executando ordens, salvo disposição especial expressamente consignada”.
Trata-se de uma norma introdutória – o quarto artigo do Diploma Consolidado - que disciplina um dos elementos essenciais do contrato de trabalho (o tempo à disposição do empregador) e, que, portanto, deve servir de parâmetro para todos os preceitos subsequentes.
No parágrafo segundo, o art. 4o da CLT excepciona as hipóteses em que o tempo gasto pelo empregado não deve ser considerado como à disposição do empregador, enumerando-as de forma taxativa: “I- práticas religiosas; II- descanso; III – lazer; IV – estudo; V-alimentação; VI; atividades de relacionamento social; VII – higiene pessoal e VIII – troca de roupa ou uniforme, quando não houver obrigatoriedade de realizar a troca na empresa”.
Como se vê, nesse rol de exceções não há qualquer menção ao tempo gasto com transporte ou deslocamento da residência para o trabalho, de modo que temos aí a primeira contradição e incompatibilidade sistêmica, na medida em que o art. 4o. da CLT (norma que estabelece uma regra geral) não dialoga com o art. 58,§2o, a CLT (norma específica e mais restrita). Logo, se fôssemos aplicar a mesma técnica de exegese gramatical daqueles que defendem a aplicação literal do art. 58, §o, da CLT, poderíamos sustentar que o art. 4/CLT, ao não excluir o tempo gasto com transporte em seu parágrafo segundo, está reconhecendo que o período de deslocamento integra o contrato de trabalho e deve ser considerado como à disposição do empregador, conforme diz o seu “caput”. Em resumo, se não excluiu, é porque integrou, ou seja, prevalece a regra geral quando não há exceção explícita - “ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus”.
O Ministro MAURÍCIO GODINHO DELGADO, em obra conjunta com Gabriela Novaes Delgado, obtempera que “ a eliminação das horas in itinere do ordenamento jurídico não afeta, entretanto, o conceito de tempo à disposição no ambiente de trabalho do empregador e, por consequência, de duração do trabalho. Embora a má redação do novo texto do § 2º do art. 58 da CLT eventualmente induza à compreensão de que a jornada de trabalho somente se inicia no instante em que o trabalhador concretiza a efetiva ocupação do posto de trabalho dentro do estabelecimento empresarial, tal interpretação gramatical e literal conduziria ao absurdo - não podendo, desse modo, prevalecer” [9]
Convém enfatizar que os seis primeiros artigos da CLT (não por acaso integrantes do Título I, denominado de “Introdução”) definem os elementos essenciais do contrato de trabalho e estabelecem os parâmetros para a compreensão de todos os demais preceitos do Diploma Consolidado, estabelecendo, por exemplo, os conceitos de empregador (art.2o/CLT), empregado (art. 3o/CLT), tempo à disposição (art. 4o/CLT), igualdade salarial (art. 5o) e local de trabalho (art. 6o/CLT). Portanto, até mesmo em uma interpretação topológica (pelo lugar que a norma está inserida dentro de um determinado código), é inevitável concluir que o art. 58, §2o, da CLT jamais poderia contrariar os conceitos elementares definidos nos arts. 2o e 4o da CLT.
Em decisão exemplar, partindo dessa exegese sistemática, o Eg. TRT da 23a. Região reconheceu que “a nova regra trazida no art. 58, §2o, CLT não revogou a diretriz da alteridade inerente aos contratos de emprego prevista no art. 2º da CLT, que define empregador como sendo"a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço. Ora, denota-se do comparativo entre a redação nova e a anterior do art. 58, §2o, CLT, que o fato de ser o local de difícil acesso ou não servido por transporte público não foi tratado explicitamente porque quando verificado, no caso concreto, que o transporte é essencial e condição para que o trabalhador chegue ao serviço, este tempo deverá sine qua non ser computado na jornada de trabalho, uma vez que inerente ao risco do empreendimento na forma do art.2o da CLT.” [10]
Se já não fosse o bastante, há diversos outros preceitos incompatíveis com a nova redação do art. 58, §2o, da CLT. O art. 238, “caput”, da CLT ressalta que “será computado como de trabalho efetivo todo em que o empregado estiver à disposição da estrada”, sendo que sempre foi pacífico o entendimento de que “o §1o, do art.238 da CLT não excepciona o regime das horas itinerantes porque trata de assunto diverso, isto é, do tempo gasto pelo ferroviário no deslocamento pela própria ferrovia, em viagens do local ou para o local de término e início da prestação de serviços, e não do percurso entre sua residência até o local de trabalho”. Portanto, a jurisprudência consolidada sempre entendeu que o art.238, “caput”, da CLT também era outro preceito permitia o pagamento de horas “in itinere”[11].
Por sua vez, o artigo 238, §3o, da CLT preceitua que “§ 3º No caso das turmas de conservação da via permanente, o tempo efetivo do trabalho será contado desde a hora da saída da casa da turma até a hora em que cessar o serviço em qualquer ponto compreendido centro dos limites da respectiva turma. Quando o empregado trabalhar fora dos limites da sua turma, ser-lhe-á tambem computado como de trabalho efetivo o tempo gasto no percurso da volta a esses limites.”
O art. 294/CLT, que não foi revogado e disciplina o trabalho em minas de solo, vai além e também reconhece o direito desses trabalhadores ao período de deslocamento, inclusive dentro do próprio estabelecimento patronal, ao dizer que “- O tempo despendido pelo empregado da boca da mina ao local do trabalho e vice-versa será computado para o efeito de pagamento do salário. “
Antes que se diga que se trata de legislação antiga, o art. 25 da Lei 13.475/2017 (Nova Lei dos Aeronautas), promulgada em 28.08.2017, ou seja, pouco mais de 01 (um) mês após a Lei 13.467, de 13 de julho de 2017, embora não estabeleça o pagamento direto do período de percurso, determina que esse “tempo de deslocamento..será computado na jornada de trabalho”, de modo que, em caso de excesso da jornada laboral, haverá pagamento como hora extra.
Vejamos o que diz o art.25, §1o, da Lei 13.475/2017:
25.Será fornecido pelo empregador transporte gratuito aos tripulantes de voo e de cabine sempre que se iniciar ou finalizar uma programação de voo em aeroporto situado a mais de 50 (cinquenta) quilômetros de distância do aeroporto definido como base contratual.
- 1oO tempo de deslocamento entre o aeroporto definido como base contratual e o aeroporto designado para o início do voo será computado na jornada de trabalho e não será remunerado
Em que pesem as peculiaridades do trabalho do Aeronauta, o relevante, para uma interpretação sistemática do ordenamento jurídico, é que se trata de mais uma norma (até posterior à lei 13.467/2017) reconhecendo que o tempo de deslocamento integra a jornada de trabalho, ou seja, trata-se de tempo à disposição do empregador.
Aliás, trata-se de entendimento que era pacífico, na jurisprudência, mesmo sob a égide da lei anterior (lei 7.183/84), como podemos constatar no seguinte acórdão, do Eg. TRT da1a. Região:
“Aeronauta. Recurso Ordinário. Tempo de deslocamento. Inclui-se na duração do trabalho do aeronauta o tempo de voo ou retornar à base após o voo, como tripulante extra, assim considerado aquele em que se desloca para assumir voo, embora necessariamente não exerça funções nesse deslocamento. Dessa forma, esse tempo de deslocamento entre o domicílio e a base da prestação de serviços deve ser quitado ao aeronauta como horas de voo” [12]
Entrementes, não é só na legislação trabalhista que encontramos preceitos colidentes com o atual art. 58, §2o, CLT. Na legislação previdenciária, o art. 21, inciso IV, “d”, da Lei nº 8.213/1991 (Lei de Benefícios da Previdência Social) prevê que os acidentes ocorridos no percurso da residência para o local de trabalho ou deste para aquela, qualquer que seja o meio de locomoção, inclusive veículo de propriedade do segurado, serão considerados acidentes do trabalho por equiparação, de modo que, mais uma vez, vemos que o legislador optou por considerar que o período de deslocamento integra o contrato de trabalho, inclusive para fins de proteção acidentária, expondo mais uma contradição.
Art. 21. Equiparam-se também ao acidente do trabalho, para efeitos desta Lei:
IV - o acidente sofrido pelo segurado ainda que fora do local e horário de trabalho:
(...)
d) no percurso da residência para o local de trabalho ou deste para aquela, qualquer que seja o meio de locomoção, inclusive veículo de propriedade do segurado.
Contudo, a interpretação sistemática não se limita ao confronto com outros preceitos que integram o mesmo sistema normativo, devendo, também, passar pela análise da compatibilidade principiológica, cotejando-se a norma a ser interpretada tanto com outros dispositivos de lei quanto com os princípios que os antecedem.
Nesse contexto, outro fundamento relevante para se afastar a nova redação do art. 58, §2o, CLT reside no princípio constitucional da VEDAÇÃO DO RETROCESSO SOCIAL, que impede a supressão dos direitos sociais sem a correspondente contrapartida, como foi o caso da eliminação das horas in itinere pela Lei 13.467/2017, em prejuízo exclusivo do trabalhador. O fundamento normativo repousaria no art. 5o, parágrafo segundo, e no art. 7o, “caput”, ambos da Carta Magna, que atraem a incidência do art. 26 do Pacto San José da Costa Rica.
Tanto a doutrina quanto jurisprudência do Supremo Tribunal Federal reconhecem que se trata de um princípio implícito na Constituição da República. De acordo com o magistério de INGO W.SARLET, o princípio da proibição de retrocesso social significaria uma “forma de proteção de direitos fundamentais em face de medidas do poder público, com destaque para o legislador e o administrador, que tenham por escopo a supressão ou mesmo restrição de direitos fundamentais (sejam eles sociais, ou não)” [13]. Podemos considerá-lo, portanto, como um direito constitucional de resistência que se opõe à margem de conformação do legislador quanto à reversibilidade de leis concessivas de benefícios sociais.
SARLET leciona que o princípio constitucional do não retrocesso está implícito na Constituição Federal de 1988 e constitui mero corolário de outras garantias constitucionais, decorrendo do princípio do Estado democrático e social de direito, do princípio da dignidade da pessoa humana, do princípio da máxima eficácia e da efetividade das normas definidoras de direitos fundamentais.[14]
No mesmo diapasão ressoa a voz de Lênio STRECK, que também considera a vedação de retrocesso social como uma cláusula implícita do texto constitucional brasileiro:
“Neste ponto adquire fundamental importância a cláusula implícita de proibição de retrocesso social, que deve servir de piso hermenêutico para novas conquistas. Mais e além de todos os limites materiais, implícitos ou explícitos, esse princípio deve regular qualquer processo de reforma da constituição. Nenhuma emenda constitucional, por mais que formalmente lícita, pode ocasionar retrocesso social. Essa cláusula paira sobre o Estado Democrático de Direito como garantidora de conquistas. Ou seja, a Constituição, além de apontar para o futuro, assegura as conquistas já estabelecidas. Por ser um princípio, tem aplicação na totalidade do processo aplicativo do Direito[15]
O Supremo Tribunal Federal também firmou o entendimento de que a proibição de retrocesso social constitui princípio implícito na Carta Magna, tratando-se, portanto, de garantia constitucional:
[…] A PROIBIÇÃO DO RETROCESSO SOCIAL COMO OBSTÁCULO CONSTITUCIONAL À FRUSTAÇÃO E AO INADIMPLEMENTO, PELO PODER PÚBLICO, DE DIREITOS PRESTACIONAIS. – O princípio da proibição do retrocesso impede, em tema de direitos fundamentais de caráter social, que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive. – A cláusula que veda o retrocesso em matéria de direitos a prestações positivas do Estado (como o direito à educação, o direito à saúde ou o direito à segurança pública, v.g.) traduz, no processo de efetivação desses direitos fundamentais individuais ou coletivos, obstáculos a que os níveis de concretização de tais prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser ulteriormente reduzidos ou suprimidos pelo Estado. Doutrina. Em consequência desse princípio, o Estado, após haver reconhecido os direitos prestacionais, assume o dever não só de terná-los efetivos, mas, também, se obriga, sob pena de transgressão ao texto constitucional, a preservá-los, abstendo-se de frustrar – mediante supressão total ou parcial – os direitos sociais já concretizados.- “[16]
A propósito, seria possível sustentar que nem sequer se trata de um princípio “implícito”, haja vista que o legislador constituinte o reconheceu de forma explícita no art. 216-A, §1o, inciso XII, da Lex Legum, norma que consagra não apenas a vedação de retrocesso, mas também a “progressividade” na destinação de recursos para a área de cultura, estabelecendo, portanto, um novo paradigma constitucional que se estenderia para todos os direitos sociais. Veja-se que esse preceito nem mesmo fala em “vedação de retrocesso”, ou seja, não andar para trás, mas vai além, estabelecendo a “progressividade”, ou seja, a obrigação de andar para frente, o que leva se cogitar de um princípio da não estagnação social, ou seja, não se trata apenas de não perder o que já foi conquistado, mas em se assegurar novas conquistas de forma progressiva e sustentável. Seja como for, o que se tem como certo é que a não regressividade dos direitos sociais é uma garantia constitucional reconhecida pela doutrina e pela jurisprudência, não restando nenhuma dúvida a respeito.
De qualquer modo, ainda que, por absurdo, fosse negada a existência desse princípio na Constituição, mesmo assim ele estaria incorporado ao nosso sistema jurídico por força do art.26 do Pacto de San José da Costa Rica, norma que, de acordo com a Súmula Vinculante no. 25 do STF, goza de caráter supralegal (portanto, acima, de todas as outras normas infraconstitucionais).
Esse princípio que impede o retrocesso social está consagrado na Convenção Americana Sobre Direitos Humanos, mais conhecida como Pacto São José da Costa Rica, de 22 de novembro de 1969, tratado internacional que passou a integrar o ordenamento jurídico brasileiro a partir da publicação do Decreto Presidencial nº 678, de 6 de novembro de 1992. O art. 26 do Anexo contempla, de modo expresso, o princípio da vedação à estagnação social. Confira-se, in verbis:
[...]Capítulo III
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS, E CULTURAIS
Artigo 26
Desenvolvimento progressivo
Os Estados-Partes comprometem-se a adotar providências, tanto no âmbito interno como mediante cooperação internacional, especialmente econômica e técnica, a fim de conseguir progressivamente a plena efetividade dos direitos que decorrem das normas econômicas, sociais e sobre educação, ciência e cultura, constantes da Carta da Organização dos Estados Americanos, reformada pelo Procolo de Buenos Aires, na medida dos recursos disponíveis, por via legislativa ou por outros meios apropriados...
A Suprema Corte já reconheceu, de forma expressa, que a vedação de retrocesso social se estende aos direitos trabalhistas. Tanto é assim que, no julgamento do Recurso Extraordinário 658.312, no âmbito do qual se discutia a recepção do art. 384 da CLT após a sobrevinda da Constituição de 1988, o Ministro CELSO DE MELLO voltou a sustentar o alto teor normativo da cláusula de vedação do retrocesso, e disse: “Como se sabe, o princípio da proibição do retrocesso impede, em tema de direitos fundamentais de caráter social, que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive, consoante adverte autorizado magistério doutrinário [17] (….) .” Mais adiante, ao concluir essa parte da sua fundamentação, o decano do Pretório Excelso sustentou que: “na realidade, a cláusula que proíbe o retrocesso em matéria social traduz, no processo de sua concretização, verdadeira dimensão negativa pertinente aos direitos sociais de natureza prestacional, impedindo, em consequência, que os níveis de concretização dessas prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser reduzidos ou suprimidos.”
Ressaltamos que, no julgamento do AIRR 0000184-47.2014.5.24.0106, em acórdão que teve como relatora a Ministra KÁTIA MAGALHÃES ARRUDA, o Colendo TST reconheceu que o direito as horas in itinere está protegido pela garantia de vedação do retrocesso social, uma vez que a remuneração pelo tempo à disposição do empregador faz parte do mínimo existencial do trabalhador. Na fundamentação do voto condutor, ficou assentado que “o art.7o, caput, da CF/88 prevê o direito fundamental à melhoria da condição social dos trabalhadores urbanos e rurais, positivação do princípio da proteção (núcleo essencial do Direito do Trabalho), do qual é desdobramento o princípio do não retrocesso. Sobre o conteúdo normativo do art.7o, caput, da CF/88, destaca o Ministro Augusto César Leite de Carvalho:
(...) o art.7o. da Constituição Federal revela-se como uma centelha de proteção ao trabalhador a deflagrar um programa ascendente, sempre ascendente, de afirmação dos direitos fundamentais. Quando o caput do mencionado preceito constitucional enuncia que irá detalhar o conteúdo indisponível de uma relação de emprego, e de logo põe a salvo" outros direitos que visem à melhoria de sua condição social ", atende a um postulado imanente aos direitos fundamentais: a proibição de retrocesso.
E ainda do mesmo autor:
(...) A partir de tal preceito, todo o sistema jurídico-trabalhista, seja no plano constitucional ou mesmo legal, dispõe sobre o conteúdo mínimo do contrato de emprego, reservando a outras normas ou mesmo cláusulas contratuais a tarefa de alargar a proteção do trabalhador subordinado. À sociedade, por meio da atuação legislativa ou de outros centros de positivação jurídica, cabe estabelecer os limites que suportará na consecução desse propósito de expandir a tutela. A pretensão expansionista, no sentido da proteção sempre maior, importa, em contraface e por definição, a vedação do retrocesso –
(…) - grifo nosso.
A nova redação do art. 58,§o 2o, da CLT, que exclui o direito às horas in itinere, também contraria, frontalmente, o disposto no art. 3o, alínea “c”, da Convenção no. 155 da OIT, a qual foi devidamente aprovada pelo Congresso Nacional e ratificada pelo governo brasileiro, gozando, portanto, de caráter SUPRALEGAL, ou seja, está acima de qualquer lei ordinária, como é o caso da Lei 13.467/2017, sendo que, quando do julgamento que levou à edição da Súmula Vinculante no. 25/STF,o Pretório Excelso reconheceu que os Tratados Internacionais sobre Direitos Humanos (que, por óbvio, incluem as Convenções da OIT) estão inseridos, no nosso ordenamento jurídico, acima de toda a legislação infraconstitucional. Logo, quando uma mera lei ordinária (por exemplo, a lei 13.467/2017) contraria um tratado internacional, ratificado pelo Brasil, ela deixa de ter eficácia normativa.
Basta ver que o art.3o, alínea “c”, da Convenção no. 155 da OIT estabelece que “ a expressão "local de trabalho" abrange todos os lugares onde os trabalhadores devem permanecer ou onde têm que comparecer, e que esteja sob o controle, direto ou indireto, do empregador; “, ou seja, quando o empregado está na condução que o levará ao local de trabalho, ele já se encontra à disposição do empregador, de modo que se trata de tempo efetivamente laborado.
Diante do princípio que veda o retrocesso social e com fundamento no art. 3o, alínea “c”, da Convenção no. 155 da OIT, foi aprovado o Enunciado 16 da 2ª Jornada de Direito Material e Processual do Trabalho realizada pela Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra):
"16. HORAS DE TRAJETO:
Hipóteses de cômputo da jornada após a Lei 13.467/2017.
1.A estrutura normativa matriz do art. 4º da CLT contempla a lógica do tempo à disposição, não eliminada a condição de cômputo quando se verificar concretamente que o transporte era condição e/ou necessidade irrefutável, e não de escolha própria do empregado, para possibilitar o trabalho no horário e local designados pelo empregador, mantendo-se o parâmetro desenvolvido pela súmula 90 do TST, caso em que fará jus o trabalhador à contagem, como tempo de trabalho, do tempo de deslocamento gasto em trecho de difícil acesso ou sem transporte público por meio fornecido pelo empregador, na ida ou retorno para o trabalho. inteligência do artigo 3º, alínea “c”, da convenção 155 da OIT.
2. Inaplicabilidade do §2º do art. 58 da lei 13.467/2017 ao trabalho executado na atividade rural."
Nem se ouse alegar que a duração da jornada de trabalho não seria um “direito humano fundamental”, pois a própria Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 destaca no artigo XXIV: "Todo homem tem direito ao repouso e ao lazer, inclusive a limitação razoável das horas de trabalho e as férias remuneradas periódicas" (sublinhamos), o que, certamente, será letra morta se o tempo gasto no deslocamento da residência para o trabalho ou deste para aquela não for mais considerado como à disposição do empregador, violando a noção mais elementar de dignidade da pessoa humana.
Outrossim, no que se refere, especificamente, ao TRABALHO RURAL, há de se lembrar que o art.7o, alínea “b”, da CLT ressalva, de forma expressa, que o Diploma Consolidado não se aplica ao rurícola, de modo que para este ainda prevalecem a Lei 5.889/73 e o Decreto no. 73.626/74, que não excluem o pagamento de horas in itinere. Extrai-se daí a ilação de que o art. 58, §2o, CLT jamais seria aplicável ao trabalhador rural, pois, na pior das hipóteses, mesmo que, por absurdo, fosse desconsiderada toda a argumentação aqui expendida, esse preceito somente regularia o deslocamento do trabalhador urbano.
Essa foi a “ratio decidendi” (fundamento determinante) que conduziu ao enciclopédico acórdão do TRT da 15a. Região, que teve como relator o Desembargador LORIVAL FERREIRA DOS SANTOS:
“HORAS IN ITINERE - TRABALHADOR RURAL APÓS A LEI 13.467.17. Por força do que dispõe o artigo 7º, alínea "b" da CLT, essa norma não seria aplicável ao trabalhador rural. É bem verdade que a Constituição Federal de 05 de outubro de 1988 no art. 7º e seus incisos, estabeleceu direitos aos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem melhoria de sua condição social, porém não mencionou dentre tais direitos as horas de percurso. Por outro lado, é aplicável ao trabalhador rural a Lei 5.889/73, regulamentada pelo Decreto nº 73.626, de 12 de fevereiro de 1974, que em seu artigo 4º manda aplicar alguns dos regramentos da CLT ao rurícula, porém, não manda aplicar a esses trabalhadores a regra do artigo 58, da CLT em face as especificidades de horários do campo, a exemplo do retireiro, horário noturno etc. Logo, nos parece que a revogação das horas "in itinere" não alcança os trabalhadores rurais. Aliás, o próprio Governo, autor da Reforma Trabalhista, através do órgão do Ministério do Trabalho e Emprego, editou a Portaria nº 1.087, de 28 de setembro de 2017, que em seu 3º considerando, diz expressamente que as alterações trazidas pela Lei 13.467/2017, "por força de seu Art. 7º, deixou de fora de seu objeto as importantes categorias dos empregados rurais, dos empregados domésticos, dos servidores públicos e de autarquias paraestatais, - entre outros -, todos regidos por legislação própria;". Assim, restando comprovado nos autos se tratar de caso em que o local de trabalho é de difícil acesso ou não servido por transporte público regular, continua devido o pagamento das horas "in itinere", até porque, o deslocamento se deu para atender a exclusivo interesse do empregador. Além disso, não se pode ignorar na análise desse tema a previsão do art. 4º., da CLT, que considera como de serviço efetivo o período em que o empregado esteja à disposição do empregador, aguardando ou executando ordens. De sorte que, o tempo de trajeto à disposição do empregador é perfeitamente aplicável, in casu, os termos do inciso I, da Súmula 90, do TST: Recurso não provido.” [18]
A propósito, sobre as peculiaridades do deslocamento no TRABALHO RURAL, merece especial atenção o alerta feito pelo procurador-chefe do ofício do Ministério Público do Trabalho em Araraquara, Dr. Rafael de Araújo Gomes, ao comentar a razão de ter proposto a ação civil pública no. 0010509-53.2018.5.15.0015:
“O transporte concedido não corresponde a uma liberalidade ou comodidade fornecida pelo empregador, mas a um meio de produção, sem o qual a empresa não conseguiria desenvolver sua atividade, pois se veria absolutamente privada de mão de obra. O transporte é fornecido por estrita necessidade de serviço, pois do contrário os trabalhadores rurais jamais teriam condições de comparecer às fazendas nas quais as atividades de corte, plantio e trato cultural da cana são desenvolvidas, localizadas longe das cidades, em locais não atendidos por transporte coletivo. Nem mesmo o comparecimento à sua sede, onde está localizada a planta industrial, seria viabilizado, já que ela se situa a uma hora de caminhada do ponto de ônibus mais próximo, sendo que o transporte coletivo fornece poucos horários de ônibus, que são incompatíveis com os horários de trabalho praticados pela empresa. [19]“
A tentativa de desconstrução do direito fundamental às horas in itinere como parte da duração da jornada de trabalho também ignora a jurisprudência sedimentada ao longo das últimas quatro décadas, fruto de um longo processo de pacificação dos conflitos entre o capital e o trabalho com vista a preservar a harmonia social. As horas itinerárias foram consagradas pela jurisprudência a partir do início de 1978 (portanto, há mais de 40 anos!), quando foi editado o Enunciado 90 do TST, atual Súmula 90, sendo que o assunto também foi tratado no Enunciado 320 - Resolução 12 de 1993 Enunciado 324– Resolução 16 de 1993 e Enunciado 325, disposições que foram, posteriormente, canceladas porque incorporadas na atual súmula 90 do TST, em revisão de 2005. Será possível que, de uma hora para outra, sem um mínimo de debate com a sociedade, tenha sido desconstruída a jurisprudência erigida ao longo de mais de 04 (quatro) décadas pelas mais diferentes composições do Tribunal Superior do Trabalho?
Por falar em jurisprudência, decisão recente do Eg. TRT da 3ª Região permite afirmar que, mesmo no caso do trabalho urbano, as horas in itinere devem continuar sendo pagas naqueles contratos que já estavam em curso antes da reforma trabalhista, inclusive no período a partir de 11.11.2017 (quando entrou em vigor a Lei 13.467/2017), invocando como raciocínio analógico o entendimento que prevaleceu quando da interpretação da mudança na base de cálculo do adicional de periculosidade dos eletricitários, conforme Súmula 191, inciso III, do C.TST. Vejamos o que diz a eloquente fundamentação:
“No tocante ao direito intertemporal, não há dúvidas de que, quando a relação jurídica findou e produziu todos os resultados sob a vigência da norma anterior, esta deve ser observada (inteligência do artigo 6º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro e artigo 5º, inciso XXXVI, da CF). No mesmo sentido, os contratos vigentes no momento em que editada nova legislação de direito material contam com a proteção da estabilidade das situações jurídicas consolidadas, a fim de preservar o direito adquirido já integrado ao patrimônio jurídico do empregado, a exemplo da interpretação acerca da alteração da base de cálculo do adicional de periculosidade enunciada na Súmula 191, III, do TST, sendo assentado o entendimento de que "a alteração da base de cálculo do adicional de periculosidade do eletricitário promovida pela Lei nº 12.740/2012 atinge somente contrato de trabalho firmado a partir de sua vigência, de modo que, nesse caso, o cálculo será realizado exclusivamente sobre o salário básico, conforme determina o § 1º do art. 193 da CLT" (grifei), em franca proteção ao direito adquirido do empregado admitido antes da lei nova. Assim, a Lei 13.467/17, que suprime o direito às horas "in itinere", não alcança os contratos em curso no momento de início de sua vigência (11/11/2017), tendo em conta o direito adquirido dos empregados de continuar a fruir o direito garantido pela lei anterior.” [20]
Nossa proposta, porém, vai além dos acórdãos supracitados, pois, a partir das premissas acima assentadas, defendemos que, em se tratando de tempo à disposição do empregador, as horas in itinere devem continuar sendo pagas para todos os trabalhadores (principalmente para os rurais, mas sem excluir os urbanos) que laborem em local de difícil acesso ou não servido por transporte público regular em horário compatível com sua jornada de trabalho, mesmo para aqueles contratados a partir de 11.11.2017.
Por tudo quanto exposto, concluímos que, mesmo após a edição da Lei 13.467/2017, continuam sendo devidas horas in itinere a todo trabalhador, urbano ou rural, que: (1) labore em local de difícil acesso ou não servido por transporte público regular em horário compatível com sua jornada de trabalho e (2)utilize condução fornecida pelo empregador, haja vista que a aplicação literal do art. 58, §2o, da CLT não se sustenta diante de uma interpretação sistemática do ordenamento jurídico trabalhista, considerando os artigos 4o, 238, “caput” e §3o, e 294 da CLT, art. 21, inciso IV, “d”, da Lei nº 8.213/1991, artigo 3o, alínea “c”, da Convenção no. 155 da OIT, artigo XXIV da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 e, principalmente, o princípio que veda o retrocesso social.