Em janeiro/2018, o Ministério Público do Trabalho (MPT) interferiu em ato administrativo do Ministro do Trabalho para impedir que uma pessoa sem vínculo com a Administração Federal fosse nomeada para cargo em comissão na Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT). O fundamento para a interferência é um dispositivo do Regimento Interno da SIT que reserva os cargos em comissão e as funções comissionadas do órgão exclusivamente aos auditores-fiscais do trabalho. A intromissão é ilegal porque invade competência do Ministério Público Federal (MPF). Além disso, a regra do regimento interno viola a Constituição Federal e a lei.
Em meio à celeuma política e jurídica que cercou a nomeação da deputada federal Cristiane Brasil (PTB/RJ) para o cargo de ministra do Trabalho[1], outra nomeação no Ministério do Trabalho que envolveu pessoa sem vínculo com a Administração para cargo em comissão da SIT suscita questionamentos jurídicos também. Embora essa nomeação interna tenha ficado submersa em meio à polêmica do caso da dep. fed. Cristiane Brasil, ela também mostra aquilo que Ruy Samuel Espíndola chamou de deficit de compreensão e concretização da Constituição Federal quando analisou a questão envolvendo a nomeação da deputada federal em artigo publicado na Revista Eletrônica Conjur[2]. Mas o caso analisado revela também o deficit de compreensão das competências do MPT por parte de seu chefe. Contemos a história.
Em 03/01/2018, Ronaldo Curado Fleury, procurador-geral do Trabalho, e Heloisa Siqueira de Jesus, vice-procuradora chefe da Procuradoria Regional do Trabalho da 10ª Região, expediram Notificação Recomendatória ao então ministro do Trabalho Helton Yomura para que ele “exonere a Sra. Géssika Tessarolo Balbino do cargo em comissão de Assessora da Secretaria de Inspeção do Trabalho”. Ela fora nomeada em 29/12/2017 para o cargo em comissão de assessora da SIT, cargo correspondente ao DAS 102.4. A Notificação também recomendou que o ministro “abstenha-se de nomear, para qualquer cargo de natureza técnica da Secretaria de Inspeção do Trabalho, pessoa que não seja servidor público efetivo, ocupante da carreira de Auditor-Fiscal do Trabalho” (rectius, ocupante de cargo efetivo de Auditor-Fiscal do Trabalho, pois ninguém ocupa uma carreira). Portanto, é uma medida para o futuro também,
Para o procurador-geral do Trabalho e a vice-procuradora chefe, como a sra. Géssika Balbino não é auditora-fiscal do trabalho, a sua nomeação viola a regra estatuída pelo art. 4º do Regimento Interno da Secretaria de Inspeção do Trabalhoii. Segundo esse dispositivo, “os cargos e funções comissionadas na estrutura da Secretaria de Inspeção do Trabalho serão providos, exclusivamente, por servidores integrantes da carreira de Auditoria-Fiscal do Trabalho, exceto os relativos às áreas de apoio administrativo.”
Sustentam ainda os membros do MPT que o cargo de Assessor da SIT é eminentemente técnico e que seu ocupante tem acesso a “informações sigilosas importantes e estratégicas para o sistema de inspeção do trabalho.” Outro argumento é que há “necessidade de se preservar o sistema de inspeção do trabalho, atividade de Estado, que não pode ser confundida com qualquer atuação política.” Também é invocado o art. 6º da Convenção 81 da Organização Internacional do Trabalho, que preconiza que “o pessoal da Inspeção do Trabalho será composto por servidores públicos cujo estatuto e condições de serviço lhe assegurem a estabilidade nos seus empregos e os tornem independentes de qualquer mudança de governo ou de qualquer influência externa indevida.”
Helton Yomura, indicado pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e afilhado político da dep. fed. Cristiane Brasil, cedeu à pressão. Ele exonerou a senhora Géssika Balbino do cargo comissionado de Assessora da SIT e a nomeou para outro cargo comissionado no Gabinete do Ministro.
Como foi argumentado em outro artigo[3], o art. 4º do Regimento Interno da SIT viola o inciso V do art. 37 da Constituição Federal e o § 1º do art. 2º da Lei 13.346/2016. E disso os membros do MPT não se aperceberam.
Mas a questão central do presente artigo é a nulidade da Notificação Recomendatória emitida pelos membros do MPT. O Parquet laboral não tem competência para policiar o funcionamento de órgãos públicos federais ou para tutelar relações jurídico-estatutárias.
A relação jurídico-estatutária que cerca as nomeações de pessoas para cargos ou funções no Poder Executivo federal revela a incompetência do MPT. A atuação funcional dos servidores públicos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios é regida por regime jurídico próprio, conforme art. 39, caput, da Constituição Federal. Na situação exposta, a nomeação combatida pelo MPT é objeto do inciso II do art. 9º da Lei 8.112/90, que estatui o Regime Jurídico dos Servidores Públicos Civis da União. Regime jurídico estatutário é próprio do Direito Administrativo e estranho ao Direito do Trabalho. Por essa razão que no julgamento da Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.395, o Supremo Tribunal Federal (STF) afastou qualquer interpretação do inciso I do art. 114 da CF que inclua na competência da Justiça do Trabalho a apreciação de causas que sejam instauradas entre o Poder Público e seus servidores, a ele vinculados por típica relação estatutária ou de caráter jurídico-administrativo. Menciona-se a ADI 3.395 não pelos seus efeitos vinculantes ao caso concreto da nomeação, mas sim pelo efeito persuasivo dos seus argumentos acerca do alcance das competências da Justiça especializada.
A própria Justiça do Trabalho tem precedente que reconhece a sua incompetência para processar e julgar ação civil pública ajuizada pelo MPT para impor medidas administrativas no âmbito da Inspeção do Trabalho, tema que já foi objeto de artigo[4].
Por essa perspectiva jurídica, se a nomeação da srª Géssika Balbino ameaçava os serviços da Inspeção do Trabalho com prejuízo para os cidadãos, incide a competência funcional do MPF prevista no inciso I do art. 39 da Lei Complementar 75/93. Portanto, o MPT, no caso concreto, teria usurpado as competências do Parquet federal.
As competências do MPT estão limitadas ao âmbito do Direito do Trabalho (Lei Complementar 75/1993, art. 83), e sua atuação institucional restringe-se à Justiça do Trabalho. No caso específico da Inspeção, a única prerrogativa que a Lei Complementar confere ao MPT é “requisitar à autoridade administrativa federal competente, dos órgãos de proteção ao trabalho, a instauração de procedimentos administrativos, podendo acompanhá-los e produzir provas” (LC 75/93, art. 84, inc. III). Também se reconhece a competência do MPT para propor a nulidade de atos administrativos de poder de polícia emanados de auditores-fiscais do trabalho ou de autoridades do Ministério do Trabalho em desfavor de um empregador.
Todavia, não cabe a qualquer membro do MPT se imiscuir em assuntos internos da Inspeção do Trabalho, tais como sua organização administrativa ou funcional, suas normas internas, sobre deveres funcionais de auditores-fiscais do trabalho, que são regidos por normas de natureza jurídico-estatutárias.
Sob esse mesmo prisma argumentativo, cabe dizer que a Constituição Federal, em seu art. 129, inciso VII, estabelece que entre as funções institucionais do Ministério Público está a de “exercer o controle externo da atividade policial, na forma da lei complementar (...).” A LC 75/93 principia por atribuir ao Ministério Público da União (MPU) a função institucional de exercer esse controle, conforme o caput do art. 3º. Mas esse artigo está inserido no Título I, sobre as disposições gerais. Entretanto, é no Título II, sobre os ramos do MPU, que a LC restringe o controle externo da atividade policial ao MPF (art. 38, IV). E quando a LC cuida das funções institucionais do MPT (Título II, Capítulo II, artigos 83 e 84), não há qualquer referência a algo sequer semelhante ao controle externo da Inspeção do Trabalho.
A nomeação de pessoa sem vínculo com a Administração tem amparo na Constituição, art. 37, V, e na Lei 13.346/2016. E a C. 81 não adota o risco de quebra de sigilo como critério para aferição de influências indevidas na Inspeção do Trabalho. A bem da verdade, é o próprio MPT quem interfere indevidamente na Inspeção do Trabalho. De fato, se o ordenamento jurídico nacional não lhe confere atribuições para atuar em matérias de natureza jurídico-administrativa, conclui-se que o MPT interfere indevidamente na Inspeção do Trabalho, violando regra internacional convencionada.
O que causa estranheza é a facilidade com que o MPT se arvora em competências que são próprias do MPF sem reprimendas. Cabe à procuradora-geral da República Raquel Dodge pôr ordem no MPU e garantir o bom e regular funcionamento das instituições republicanas, coibindo abusos e excessos como forma de preservar a ordem jurídica. Conforme decidiu o STF nas ações civis ordinárias 924 e 1394, compete ao procurador-geral da República dirimir conflitos de atribuições entre órgãos do Ministério Público, por se tratar de questão administrativa, e não jurisdicional.
A atuação ilegal do MPT chama a atenção por outra circunstância. Será que um servidor do MPT lê diariamente a Seção 2 do Diário Oficial da União para esquadrinhar as nomeações para o Ministério do Trabalho? Não parece ser o caso. O que se cogita é que diante da nomeação aqui tratada, alguém da SIT tenha “denunciado” o fato ao MPT, como se estivesse a pedir socorro para que não se consumasse o ato administrativo combatido. Isso seria mais um demérito: autoridade da SIT clamando por uma interferência indevida na Inspeção do Trabalho, em clara violação da C. 81 da OIT. Não seria a primeira vez.
De fato, em 12/04/2016, a delegada sindical do Sinait em Santa Catarina, auditora-fiscal do trabalho Lilian Carlota Rezende, encaminhou denúncia à Procuradoria Regional do Trabalho no Estado. Ela reclamava das condições da frota de veículos da superintendência regional do trabalho em Santa Catarina, narrando que havia pedido ao superintendente dados sobre os veículos (quilometragem, condições de uso, localização) para que a Delegacia Sindical “pudesse, ciente das informações, sugerir alterações para uma logística que melhor atendesse às necessidades da fiscalização.” Relatou ainda a dirigente sindical que as informações não foram prestadas. Também apontou falta de transparência nas emissões das ordens de serviço expedidas aos auditores-fiscais do trabalho, entre outras contingências que geraram inclusive quebra das regras de urbanidade entre a dirigente sindical e as chefias da Inspeção do Trabalho em Santa Catarina.
Em face desse quadro, a senhora Lilian Carlota pediu ao MPT que “exija da Superintendência” informações sobre os veículos, que “exija que a Superintendência do MTPS faça uma comissão, composta com representante do sindicato da categoria Sinait [ela própria, com certeza], para manter o controle mensal dos veículos”, e, entre outros pedidos dessa natureza, que “as tratativas ocorram com a interveniência do MPT já que algumas regras de urbanidade têm sido esquecidas atualmente no trato entre chefias e chefiados no MTPS SC, além das dificuldades em se estabelecer um trabalho construído democraticamente.” A auditora-fiscal Lilian Carlota Rezende desconhece o fato de que membros do MPT não podem “exigir” nada de qualquer autoridade pública.
Pelo exemplo do caso do regimento interno da SIT, em que autoridades da Secretaria de Inspeção do Trabalho menosprezaram a vontade do Poder Legislativo em negar a exclusividade de nomeação de auditores-fiscais para cargos em comissão e funções de confiança da Inspeção do Trabalho, é possível antever como é “um trabalho construído democraticamente” pelo Sinait. E no presente caso em Santa Catarina, a tal “comissão” proposta pela auditora sindicalista Lilian Carlota é o exemplo de algo assemelhado aos velhos sovietes do regime comunista, que eram conselhos de operários que organizavam a produção de um território ou mesmo indústria[5]. Conselhos esses subordinados ao Partido Comunista, certamente.
Na superintendência regional do Trabalho em Santa Catarina, a sindicalista Lilian Carlota Rezende pretendia implantar uma espécie de soviete do Sinait na Inspeção do Trabalho para organizar o seu funcionamento no Estado catarinense, pretendo, inclusive, exercer o controle sobre atividades administrativas de apoio às fiscalizações. E para esse intento esperava contar com a ajuda do MPT, inclusive como que para controlar os chefes de fiscalização que se opunham a esse papel, digamos, “progressista” da delegada sindical. E mais do que isso: o MPT assumiria o papel de babá de auditores-fiscais do trabalho que não têm modos de urbanidade.
A procuradora do Trabalho Quézia de Araújo Duarte Nieves Gonzales, em despacho de 24/05/2016, rechaçou esse papel e indeferiu o pedido de instauração de inquérito civil[6]. E foi bem objetiva:
“Ocorre, no entanto, que os servidores da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego, vinculada ao Ministério do Trabalho e Emprego, possuem regime estatutário, e não celetista, razão pela qual não detém, o Ministério Público do Trabalho, atribuição para atuar neste caso específico e sim, salvo melhor juízo, o Ministério Público Federal.”
Decidiu também encaminhar a representação da delegada do Sinait ao MPF, “para o que entender conveniente.” Há dois anos ela já estava alinhada à legalidade e já tinha uma compreensão diametralmente oposta à do procurador-geral do Trabalho Ronaldo Fleury. Ela não se prestou ao papel de socorrista de querelas administrativas internas de órgão do Ministério do Trabalho.
Em conclusão: quando o MPT se propõe a controlar atos internos do Ministério do Trabalho e quando sindicalistas se propõem a controlar a gestão das unidades do ministério, algo não vai bem na República. Via de regra, interesses corporativistas andam divorciados dos interesses públicos.
E o MPT deve se manter fiel às suas atribuições institucionais, abstendo-se de atuar como socorrista de auditores-fiscais do trabalho descontentes com a Administração do Ministério do Trabalho. Melhor dizendo, com o Ministério da Economia, do qual a Inspeção do Trabalho agora faz parte[7].
Resta saber se o procurador-geral do Trabalho Ronaldo Fleury irá contestar a nomeação do Gestor de Políticas Públicas Bruno Silva Dalcolmo para o cargo em comissão de Secretário de Inspeção do Trabalho, conforme Portaria n.º 143, de 04/01/2019, do Ministro Chefe da Casa Civil da Presidência da República.
Notas
[1] Disponível em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2018-02/b-decreto-anula-nomeacao-de-cristiane-brasil-para-o-ministerio-do-trabalho.
[2] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-jan-09/ruy-espindola-constituicao-serio-deficit-compreensao.
[3] Disponível em: https://jus.com.br/artigos/71167/inspecao-do-trabalho-e-o-ativismo-sindical-administrativo
[4] SILVA, José Adelar Cuty da. Impossibilidade jurídica de sentença mandamental da Justiça Trabalhista para adequar condutas funcionais de autoridades da Inspeção do Trabalho e do Ministério do Trabalho. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5029, 8 abr. 2017. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/56979>. Acesso em: 5 jan. 2019.
[5] Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Conselhos_oper%C3%A1rios
[6] Procuradoria Regional do Trabalho da 12ª Região. Noticia de Fato n.º 000444.2016.12.000/2.
[7] BRASIL. Decreto n.º 9.679, de 02/01/2019, Anexo I, art. 1º, incisos XXXIII e XXXVI, e art. 2º, inciso II, alínea b, item 2.1.