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Aids e discriminação:

violação dos direitos humanos

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05/08/2005 às 00:00
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CAPÍTULO III

DISCRIMINAÇÃO, DIREITOS HUMANOS E AIDS

3.1 A discriminação e a AIDS

Desde que existem notícias da existência do homem, há também notícias de crueldades e bondades, do mal e do bem, do egoísmo e da solidariedade, da vida e da morte. Assim é o ser humano: ambíguo, imprevisível, surpreendente, mutável. Infelizmente o pior aspecto da natureza humana é o que se sobressai e fica em evidência quase como uma rotina. Povos e comunidades se matam por crença, ódio, orgulho e intolerância; guerras e atentados terroristas que matam crianças e idosos. O mal é generalizado, escancarado para quem quiser assistir.

Mas não se pode negar a evolução do ser humano, com seus gestos de amor e seus exemplos de solidariedade. Sua história social, cultural e política justifica a dimensão ética e solidária existente na atualidade. Entretanto, sempre houve disputas por poder e glória. Os detentores do poder agiam em detrimento dos mais fracos, que eram manipulados e orientados sobre o que era certo e o que era errado, de acordo com as conveniências dos dominadores. Também o reflexo dessa manipulação está nos preconceitos e nas indiferenças existentes, na atualidade, contra aqueles que ousaram não seguir os padrões preestabelecidos.

O preconceito é um dos ingredientes na fórmula da discriminação. Consiste em julgar ou conceituar alguém com base em uma generalização, uma banalização ou uma mistificação (AIEXE, 2000). Por sua vez, a discriminação é um dos atos mais cruéis contra o ser humano. Para Arns (2000, p. 13), "discriminar é negar cidadanias e a própria democracia". É portanto, diferenciar algo a partir de características externas ou internas, é excluir moralmente. Ao discriminar alguém, retira-se seu direito de ser respeitado, impede-se seu acesso à dignidade, enfim, subtrai-se sua qualidade de ser humano. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, em um de seus documentos, assim se pronuncia:

Exclusão moral é o que fazemos quando colocamos pessoas ou grupos fora das exigências básicas da justiça, sem que isso nos incomode muito. É como se achássemos que essas pessoas não merecem viver. Não são consideradas vítimas, são vistas como culpadas, subumanas, desumanas – e com isso nos sentimos desobrigados de nos importar com o que acontece com elas. Simplesmente ‘desligamos’ a nossa sensibilidade moral em tais casos (ARNS, 2000, p. 21).

A AIDS trouxe consigo o estigma e o preconceito, agravando a existência da discriminação na sociedade. Surgiu associada ao que se afirmava como sendo comportamentos sexuais reprováveis frente à sociedade: o homossexualismo, a prostituição e o uso de drogas (BOLETIM AÇÃO ANTI-AIDS, 2004).

Para que se possa entender melhor o comportamento de consideráveis segmentos da sociedade brasileira em relação à AIDS, deve-se salientar o contexto histórico em que ela surgiu. A esse respeito, Daniel; Parker (1991, p. 26) afirmam: "A epidemia começou a se desenvolver, precisamente, ao mesmo tempo em que a sociedade brasileira tentava dar seus primeiros passos em direção ao restabelecimento de uma democracia participativa, após duas décadas de regime autoritário".

Após mais de vinte anos em que o país viveu sob um regime autoritário de governo, onde a cidadania era restrita, não era de se esperar que a resposta à epidemia da AIDS fosse solidária e efetivamente compreensiva. A luta por direitos se reiniciava lentamente e com mais ênfase por aqueles afetados pelo vírus de forma direta (DANIEL; PARKER, 1991). Velhos preconceitos vieram à tona. O medo e a dúvida sobre as teorias científicas elaboradas inicialmente a respeito do vírus HIV mesclavam-se, impedindo sua distinção, influenciando profundamente as maneiras pelas quais a sociedade brasileira tem respondido à epidemia (DANIEL; PARKER, 1991).

O vírus foi inicialmente detectado em homossexuais. Foi imediatamente relacionado à opção sexual dessas pessoas, mais precisamente ao comportamento promíscuo atribuído a esse grupo. Com isso, a AIDS foi vista, na concepção popular, como conseqüência de comportamentos imorais. Por extensão, a doença foi associada a qualquer grupo que se caracterizava por ter um comportamento sexual diferenciado, como as prostitutas e grupos que possuíssem comportamentos condenáveis, como os usuários de drogas e prisioneiros. Estes se somaram aos homossexuais dentro das imagens estigmatizadas pela simples menção à AIDS e tornaram-se parte de uma visão, cada vez maior, de marginalidade e de perigo (DANIEL; PARKER, 1991).

Portanto, no Brasil, a AIDS surgiu associada a comportamentos promíscuos e contrários à "moral"; a comportamentos condenáveis que marcavam seus agentes e os diferenciavam dos demais cidadãos, restringindo seus direitos mais básicos, como a dignidade da pessoa humana. Segundo Ferreira (1999), era "um verdadeiro coquetel de sexo e morte, quase beirando o ‘pornô’, sem assumi-lo". Como resultado desse estigma, a mistificação da AIDS contribuiu enfaticamente para a discriminação de seus portadores, e a doença foi transformada em mito, em um enigma a ser desvendado:

No entanto, não há algo a ser desvendado, não há coisa oculta atrás da AIDS. Há exatamente a complexidade de um "vazio" de onde se pode criar, inventar tudo, aquele conjunto de infinitas dimensões sociais de onde parte a fundação imaginária da sociedade: ali onde não há determinação nem acaso, liberdade nem opressão, porque dali saem todas as forças trágicas da possibilidade de inventar (DANIEL; PARKER, 1991, p. 83).

Declarações feitas por alguns líderes religiosos também contribuíram para o aumento da discriminação e da estigmatização referente a AIDS. Por exemplo, Dom Eugenio Sales, à época Cardeal- Arcebispo do Rio de Janeiro, disse o seguinte a respeito da AIDS:

E cai, como um raio, na humanidade, o perigo da AIDS (...) Surge como imposição que atinge, em cheio, a inversão sexual, a troca de parceiros, uma interminável lista de assuntos condenados pela legislação divina... Esse clima revela a decadência dos costumes com as conseqüências de um comportamento humano quando contraria o destino para o qual fomos criados...

Os flagelos sociais servem de instrumento para despertar a consciência, explorar a imoralidade reinante, fazer o homem retornar aos caminhos de Deus.

Analisando esse entendimento firmado por uma das maiores autoridades da Igreja, no país, à época em que foi proferido, anota Ferreira (1999): "A partir deste tipo de colocação, criou-se o preconceito de que todo doente de AIDS homossexual mereceu de alguma forma este destino. A morte por AIDS seria um castigo por sua vida (homo) sexual". No mesmo sentido é o posicionamento de Susan Sontag apud RUDNICKI (2004): "Nada é mais punitivo do que atribuir um significado a uma doença quando esse significado é invariavelmente moralista. Qualquer moléstia importante cuja causa é obscura e cujo tratamento é ineficaz tende a ser sobrecarregada de significação".

No momento de sua descoberta, a AIDS possuía todos os requisitos para se tornar mistério e provocar o medo. Contudo, ela nada mais é do que uma doença, grave, transmissível e mortal. Não é um enigma, mas um desafio a ser vencido, tanto pela comunidade científica, como principalmente pela sociedade, que aprenderá, através da AIDS, a ser solidária e compreensiva. Sobre essa problemática, afirma Daniel (1991, p. 82):

O fato de ser uma doença sexualmente transmissível, de estar atingindo inicialmente grupos estigmatizados, de estar sendo exponencialmente diagnosticada ano após ano e num numero cada vez maior de países, de se prever que pode atingir o conjunto da população como um todo, ligando de forma direta, assustadora, clinica e mórbida o sexo à morte, torna a epidemia especialmente envolvida com tabus e estigmas.

Além dessa associação com o sexo e comportamentos condenáveis, a AIDS tem uma ligação estreita com a morte, criando medo e isolando o portador do vírus, pelo perigo do contágio:

Diferentemente do que acontece com outras enfermidades, tem sido repetidamente enfatizado que a AIDS não oferece às suas vítimas nenhuma esperança de cura e sua incurabilidade tornou-se um ponto central em praticamente todas as concepções populares mais básicas da doença como um todo. Desse modo, quanto mais a discussão sobre a epidemia é dominada pelas conseqüências finais de uma morte definitiva, cada vez menos atenção é dada àquilo que podemos descrever como a qualidade de vida das pessoas com AIDS (DANIEL; PARKER, 1991, p. 20).

É comum identificar-se o portador do HIV por "aidético". Essa denominação carrega consigo significações que denotam fatalidade, morte e estigmas que rotulam o portador como uma espécie apartada do ser humano. Para Valentim (2003, p. 91), "há uma associação da enfermidade com idéias negativas, que, muitas vezes, justifica a exclusão, o isolamento, a rejeição, o preconceito".

A AIDS é uma doença como outra qualquer, pode atingir qualquer ser humano a qualquer tempo, seja por sua negligência, seja por acidente. A sociedade deve permitir ao individuo com AIDS a possibilidade de se assumir como portador de uma enfermidade e não decretar a sua morte civil devido a essa condição (RUDNICKI, 2004).

3.2 Violação dos direitos humanos e suas conseqüências para o portador do HIV

A AIDS trouxe consigo uma gama de reações que, pela falta de informação e pelas teorias mistificadoras associadas a ela, provocou grandes violações aos direitos humanos. Sua natureza contagiosa, sua incurabilidade e as conseqüências mortais para aqueles que a contraem, tomadas em conjunto, firmaram uma definição em relação à doença. Apesar de tais características referirem-se a dados científicos, os preconceitos criados em torno dele levaram a graves violações dos direitos humanos (DANIEL; PARKER, 1991).

A AIDS revela-se como um grande desafio, na era moderna dos direitos humanos. Sua presença levou a uma maior atenção às suas regras e princípios, notadamente no que diz respeito à saúde publica, à dignidade da pessoa humana e à não-discriminação. A doença tem características peculiares: objetivas, do ponto de vista prático, como o tratamento direto pelos médicos, o perigo de contaminação e a higiene adequada; subjetivas, do ponto de vista da situação frágil e sensível, que assume o portador, por saber da incurabilidade da doença, dos preconceitos e da iminência da morte. O portador do vírus deve ser tratado com especial atenção e ter sua cidadania preservada, não sofrendo discriminações e sendo respeitado, principalmente pelos órgãos de saúde.

A saúde pública sempre foi um grande problema no Brasil e, com o advento da AIDS, só tendeu a piorar. Quase todas as medidas de controle de doenças transmissíveis tem implicações para os direitos humanos. No caso da AIDS, pode-se identificar os portadores do vírus para isolá-los e submetê-los a uma quarentena. "No decorre dos séculos, a saúde pública evoluiu com base na coerção, compulsão e restrição e, portanto, não se ajusta facilmente às exigências de respeito aos direitos humanos" (MANN; TARANTOLA; NETTER, 1993, p.243):

Pessoas portadoras do vírus HIV foram despejadas de suas casas, abandonadas por seus familiares e amigos, proibidas de freqüentar escolas; perderam seus empregos, tiveram seu acesso a hospitais e clínicas vetados, bem como médicos recusaram-se a prestar-lhes auxílio e tratamento; foram, enfim, excluídas do convívio social e da vida integrada à comunidade. Algumas pessoas chegaram até a pensar em construir campos para concentrar os indivíduos portadores do vírus. Por mais paradoxal que seja, isso aconteceu numa época em que, de modo nunca antes visto, a humanidade primava por defender e assegurar, nas ordens jurídicas nacionais e internacionais, os direitos humanos (VALENTIM, 2003, p. 13).

Vários exemplos podem ser apontados como violações dos direitos humanos, como o direito de ir e vir, que sofreu severas restrições. Os Estados Unidos da América, por exemplo, em sua legislação, proibia a entrada de portadores do vírus HIV no país. Essa atitude fez com que a VIII Conferência Internacional sobre AIDS fosse transferida de Boston para Amsterdã. No interior de Minas Gerais, um jovem que voltou para casa depois de ter contraído o vírus da AIDS no Rio de Janeiro, foi apedrejado e expulso de sua cidade (DANIEL; PARKER, 1991).

Outro direito violado é o direito à saúde, que deve ser assegurado a todo cidadão. Mas foi brutalmente retirado do portador do vírus HIV, não só pelo tratamento dispensado pelos hospitais e profissionais de saúde, como pela falta inicial de tratamento adequado e de atenção ao problema 3 (VALENTIM, 2003).

Os próprios profissionais da saúde rejeitavam pacientes, pelo simples fato de "aparentarem" ser portadores do vírus HIV. As prostitutas, travestis, homossexuais ou qualquer outra pessoa que tivesse uma aparência duvidosa, não tinham atendimento médico. Mesmo quando recebiam atendimento, eram bombardeados com questionamentos agressivos por parte de diversos profissionais, sem nem mesmo terem feito qualquer exame. Como resultado da associação da AIDS com a promiscuidade, diversos profissionais de saúde negaram-se a fazer atendimentos e procedimentos cirúrgicos simples. Segundo registram Daniel; Parker (1991), muitas pessoas abandonavam o local de atendimento médico desesperadas, sem receber nenhuma orientação, e acabavam morrendo sozinhas em suas casas, sem nenhum atendimento médico. Os citados autores acrescentam:

Em grandes cidades, como Rio ou São Paulo, pacientes com AIDS foram recusados em hospitais locais e foram deixados, às vezes, deitados nas entradas de emergência durante horas, enquanto seus parentes tentavam arranjar permissão para que fossem atendidos. Choferes de ambulâncias recusaram-se a dar transporte a pacientes suspeitos de estarem com AIDS e até mesmo pessoal médico altamente especializado foi algumas vezes responsável pela disseminação de informações imprecisas e incorretas sobre a natureza da AIDS (DANIEL; PARKER, 19914, p. 21).

O direito ao trabalho também foi violado. Determinados grupos defendiam a limitação a até a negação desse direito à pessoa portadora do vírus HIV, sob a alegação de que existia o risco de transmissão do vírus para os outros trabalhadores no local de trabalho. Contudo, é fato que o convívio em ambiente socialmente receptivo, onde o portador do vírus não se sinta discriminado, é fator importante no tratamento da doença. Logo, trabalhar e sentir-se integrado, respeitado e produtivo contribui para o seu tratamento, aumentando sua auto-estima e, conseqüentemente, preservando seu estado de saúde (VALENTIM, 2003).

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Um dos princípios de maior importância para a existência do ser humano – a dignidade da pessoa humana - foi e ainda é, como conseqüência das associações e estigmas relacionados à AIDS, um dos mais violados. Isso acarretou maiores e mais drásticas conseqüências para pandemia da AIDS e para o portador do vírus HIV. Com a violação desse princípio, pode-se dizer que todos os outros foram violados, pois todo ser humano é digno de direitos, de ser tratado com respeito. A discriminação e o preconceito foram os meios mais perversos e os mais utilizados para ferir o direito à dignidade do portador do vírus. Os relatos acima transcritos sobre os direitos que foram violados são conseqüência direta da discriminação e do preconceito.

Existe uma estreita ligação entre a AIDS e a discriminação. A discriminação prejudica o trabalho de prevenção, informação e educação sobre a AIDS, criando um ambiente social que cria obstáculos para os programas com essa finalidade. "Ameaças e coerções às pessoas infectadas pelo HIV acabam por afastar as pessoas (...) dos serviços sociais e de saúde criados para ajudar a prevenir a transmissão do HIV. Portanto do ponto de vista prático, a discriminação foi considerada uma ameaça à saúde pública" (MANN; TARANTOLA; NETTER, 1993, p. 244):

Pessoas que estão envolvidas em práticas ou comportamentos que as coloquem em risco devem, portanto, optar entre viver com a incerteza de nunca terem sido testadas ou, o que percebem ser um risco ainda maior, serem testadas em condições que não protejam sua confidencialidade e seus direitos humanos básicos (DANIEL; PARKER, 1991, p. 25).

O medo da discriminação fez com que as pessoas se afastassem dos programas de prevenção. Para muitos, era preferível ficar com a dúvida que correr o risco de saberem que possuíam o vírus e serem tachados pelos estigmas que acompanham a doença. Preferiam não enfrentar os olhares e as reações das pessoas:

O estigma é uma barreira impedindo que as pessoas com HIV revelem sua condição e consigam os serviços de apoio e assistência disponíveis, prejudicando também a prevenção do HIV, que estimula as pessoas a adotarem um comportamento mais seguro. A associação do HIV com o "mau" comportamento e a morte faz com que as pessoas desistam de descobrir se são soropositivas ou de revelar sua condição quando sabem que são (BOLETIM AÇÃO ANTI-AIDS, 2004).

Conforme anota Ferreira (1999), durante todos esses anos, desde o descobrimento da existência da AIDS aos dias de hoje, ficou demonstrada a clara relação entre a discriminação e a marginalização social, e como conseqüência, a facilitação da exposição ao HIV. Apesar de ter sido associada inicialmente a homossexuais, jovens e ricos, atualmente observa-se uma grande socialização e pauperização da AIDS. Pessoas com desníveis sociais, ou seja, pessoas carentes e, conseqüentemente, desassistidas são as principais vítimas da AIDS. Sem educação e sem condições de obter tratamento e informações sobre a doença, essas pessoas ficam vulneráveis à epidemia e ao desenvolvimento da AIDS, por falta de acompanhamento adequado:

Estamos num país onde a maioria da população é carente e desassistida. É inevitável que esta população seja fonte do maior contingente de doentes de AIDS, principalmente porque não possui recursos – nem materiais, nem simbólicos; se faltam hospitais, faltam também educação e informação para enfrentar a doença (DANIEL; PARKER, 1991, p. 45).

O efeito negativo da discriminação frente à AIDS é mundialmente reconhecida. De acordo com as normas internacionais de direitos humanos e HIV/AIDS previstas nas Diretrizes Internacionais das Nações Unidas, a não-discriminação e a igualdade devem ser aplicadas especificamente ante a epidemia de HIV/AIDS:

La normativa internacional de derechos humanos garantiza el derecho a la igualdad ante la ley y a la no discriminación, sin distinción alguna de raza, color, sexo, idioma, religión, opinión política o de cualquier otra índole, origen nacional o social, posición económica, nacimiento o cualquier otra condición social. La discriminación por cualquiera de estos motivos no solo es injusta en sí sino que crea y mantiene condiciones que conducen a la vulnerabilidad social a la infección por VIH (SEGUNDA CONSULTA INTERNACIONAL SOBRE EL VIH/SIDA Y LOS DERECHOS HUMANOS, 1996, p. 48)4.

O Programa das Nações Unidas para a AIDS (UNAIDS) destaca a importância do respeito aos direitos humanos, argumentando que, se a discriminação não fosse evitada, a saúde pública sairia prejudicada. Num outro aspecto, a indiferença e a discriminação podem acarretar sérios problemas para a saúde. A partir do momento em que não há o reconhecimento e a assistência necessária às pessoas soropositivas, estas, sentindo-se marginalizadas, podem desenvolver atitudes desesperadas e destrutivas para si próprias e contra os outros (FERREIRA, 2004).

A referida autora, em sua dissertação de Mestrado em Saúde Pública, ao abordar a AIDS e a violência, entrevistou portadores do vírus HIV. Um dos entrevistados reflete bem os estigmas relacionados a quem possui o vírus, ao dar o seguinte depoimento:

Mas o governo em si devia fazer um trabalho em cima dessas pessoas miseráveis. Eles é que estão se contaminando entre si, e eles estão se preocupando com a classe média e da alta pra cima (...). Nossa Senhora, ele já é pobre, é discriminado por ser miserável e ainda doente. (...) Quando chega um paciente que tenha um poder aquisitivo, às vezes até mesmo pessoas de boa aparência (...), então esses aí são bem tratados. Mas esses que são coitados, no final da vida, se descobrirem que é um portador, aí então o tratamento fica pior ainda (...). Porque geralmente a sociedade em geral, ela vê o portador como um depravado. Ela não vê o lado social da coisa, a questão de ter um parceiro, de poder transar, pegar a doença e for conseqüência deste acontecido, ele não vê por esse lado. Pra ele o aidético é tudo depravado, é drogado, é pobre, vive na vida mundana, né? Só vê a coisa por esse lado, e às vezes não é por aí e acaba por deprimir ainda mais o paciente. (...) Eles não estão preparados. Não sei se é por falta de verbas, de falta de conhecimento, eles não estão preparados para esse tipo de coisa. E a AIDS já tem mais de 10 anos.

Portanto, o estigma e o preconceito afastam as pessoas dos programas de ajuda. E, para agravar, o silêncio, como sempre ocorre no que diz respeito aos direitos humanos, permite a continuidade evidente das violações (MANN; TARANTOLA; NETTER, 1993). Numa análise sobre o desenvolvimento da AIDS no contexto brasileiro, é fácil perceber-se que a violação dos direitos humanos sempre foi o pano de fundo de sua história social. O desrespeito aos direitos humanos básicos marcou o surgimento e o desenvolvimento da doença. Lamentavelmente, não houve um avanço no que se refere à discriminação e ao preconceito:

(...) ficou claro que a discriminação social, em todas as suas manifestações, gerou uma maior vulnerabilidade à infecção pelo HIV. Portanto, os esforços no sentido de proteger os direitos humanos e promover a dignidade humana são extremamente importantes para a proteção da saúde pública na pandemia de HIV/AIDS (MANN; TARANTOLA; NETTER, 1993, p. 242).

Um dos documentos que marcou a luta pelos direitos dos portadores do HIV/AIDS e pelo fim da discriminação e do preconceito foi a Declaração dos Direitos Fundamentais da Pessoa Portadora do Vírus da AIDS (2004), idealizada pelo escritor Herbert Daniel, divulgada em 1989 em Porto Alegre. O documento considera a solidariedade essencial no combate ao preconceito e à discriminação. Proclama que todo portador do vírus da AIDS tem direito à participação, em todos os aspectos, da vida social e que toda ação que venha a recusar aos portadores do vírus um emprego, um alojamento, uma assistência ou privá-los disso deverá ser condenada.

Assim, qualquer comportamento que tenda a restringir a participação do portador do vírus HIV nas atividades coletivas, escolares e militares, deve ser considerado discriminatório e ser punido por lei. O documento diz ainda que todo portador do vírus tem direito a preservar sua vida civil, profissional, sexual e afetiva. Portanto, nenhuma ação poderá restringir seus direitos à cidadania.

3.3 AIDS e direitos humanos

No decorrer da história do homem e de sua existência, seu convívio coletivo sempre exigiu regras. Desde suas origens o homem sempre foi marcado por suas diferenças, sejam sociais, biológicas ou culturais. Apesar dessas diferenças, tem em comum a capacidade de amar e de pensar. "É o reconhecimento universal de que, em razão dessa radical igualdade, ninguém – nenhum indivíduo, gênero, etnia, classe social, grupo religioso ou nação – pode afirmar-se superior aos demais" (COMPARATO, 2004, p. 1).

Das próprias características que definem o ser humano e sua essência provém o seu direito à dignidade e ao respeito. Contudo, apesar de sua capacidade de amar, o ser humano, no decorrer de sua existência, é tocado por sentimentos negativos e destrutivos, como o ódio e o egoísmo. Contraditoriamente, esses sentimentos negativos fazem surgir a necessidade de proteger a dignidade e o respeito ao homem:

A compreensão da dignidade suprema da pessoa humana e de seus direitos, no curso da historia, tem sido, em grande parte, o fruto da dor física e do sofrimento moral. A cada grande surto de violência, os homens recuam, horrorizados, à vista da ignomínia que afinal se abre claramente diante de seus olhos; e o remorso pelas torturas, as mutilações em massa, os massacres coletivos e as explorações aviltantes fazem nascer nas consciências, agora purificadas, a exigência de novas regras de uma vida mais digna para todos (COMPARATO, 2004, p. 37).

As violações dos direitos humanos, praticadas durante toda a história da humanidade, repetem-se com o surgimento da AIDS. Essa violação ocorreu, principalmente, contra aqueles que possuem menos condições de reivindicar e proteger seus direitos. Essas pessoas tornaram-se o alvo de medidas restritivas e compulsórias de controle da AIDS, gerando uma urgente necessidade de associar a AIDS a um amplo trabalho sobre direitos humanos (MANN; TARANTOLA; NETTER, 1993):

Surgiram novos problemas no contexto da pandemia de HIV/AIDS: o medo do contágio foi usado para discriminar pessoas soropositivas (ou que supostamente o seriam) e os indivíduos associados a elas, gerando assim novas justificativas para discriminação – a possibilidade de estar infectado – e a conseqüente necessidade de garantia do respeito aos direitos humanos (MANN; TARANTOLA; NETTER, 1993, p. 246).

A proteção da dignidade do homem se efetiva através dos direitos humanos, ou seja, direitos que garantem uma existência digna e de respeito. A AIDS é um problema mundial, e não pode ser analisada apenas em seus aspectos clínicos. Herbert Daniel apud RUDNICKI (2004), atribui à ciência o papel de descobrir soluções médicas e afirma que com isso não estariam solucionando nenhum grande enigma. O desafio que a AIDS nos impõe é o das reações sociais, das discriminações e restrições feitas ao portador do vírus:

Na cerimônia de abertura (XIII Conferência Internacional de AIDS – Durban), Aung San Suu Kyi, premiada com o Nobel, falou sobre compaixão e disse que a questão do HIV não era puramente médica, nem mesmo, como alguns gostariam de pensar, moral. Ela seria uma questão social, uma questão humana, pois lida com relações humanas. A palestrante acrescentou que os únicos direitos humanos que têm real significado e efeito são aqueles baseados na compaixão (DUROVNI, 2004).

As violações dos direitos humanos são constantes e, por isso, sempre houve necessidade da positivação desses direitos para que houvesse sua efetiva proteção. Atualmente, existem pactos e convenções internacionais protegendo e tutelando esses direitos, e cada Estado possui sua legislação para promovê-los. Como conseqüência das violações dos direitos humanos, atos normativos visando à proteção de direitos e liberdades individuais foram editados em âmbito nacional e internacional. Porém, internacionalmente só houve uma resposta à crise da AIDS, em 1985, quando começaram a aparecer indícios de que a doença era um problema global:

A necessidade de respeitar os direitos humanos na resposta ao HIV/AIDS foi ratificada primeiro pelo Conselho da Europa, depois pela Assembléia de Saúde Mundial, depois pela Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas e sua Subcomissão para Prevenção da Discriminação e Proteção das Minorias. Essas declarações e posições sobre políticas foram seguidas por um grande número de organizações, intergovernamentais e não-governamentais, internacionais e nacionais, que adotaram políticas ou diretrizes sobre os aspectos da AIDS relacionados aos direitos humanos (MANN; TARANTOLA; NETTER, 1993, p. 268).

Desde o surgimento da AIDS no Brasil, muito se avançou no que diz respeito às ações governamentais. Entretanto, no início da descoberta do vírus, o Brasil implementou apenas ações de cunho publicitário e informativo. Nesse sentido, em 1985, uma Portaria Ministerial editou diretrizes para um programa de controle da AIDS, que passou a supervisionar as demais coordenações nacionais e a responder pelos programas de prevenção. Contudo, somente em 1993, com base em um acordo feito entre o governo brasileiro e o Banco Mundial (BIRD), a política nacional de prevenção e controle da AIDS começou a ser efetiva. A partir desse acordo, houve investimentos pesados na difusão de informações e educação, com campanhas de orientação e distribuição de preservativos (PRADO; CUNHA, 2002).

Os direitos humanos devem ser preservados e garantidos pelos três Poderes que compõem a República Federativa do Brasil: o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Devem estar presentes também na atuação de organizações não-governamentais. No âmbito do Poder Executivo, alguns Ministérios implantaram planos de ações para a prevenção e o controle do HIV/AIDS. Particularmente, através do Ministério da Saúde, foram desenvolvidas políticas públicas e ações referentes ao combate à AIDS:

A política desenvolvida pelo Ministério da Saúde tem três grandes objetivos, que norteiam suas ações: 1) redução da incidência da infecção pelo HIV/AIDS e outras DST; 2) ampliação do acesso ao diagnóstico, ao tratamento e à assistência; 3) fortalecimento das instituições públicas e privadas, responsáveis pelo controle das DST/AIDS. Esses objetivos desdobram-se em outros, a saber: (...); 2) promover a garantia dos direitos fundamentais das pessoas atingidas, direta ou indiretamente, pelo HIV/AIDS; (...); 4) promover o acesso das pessoas com infecção pelo HIV (...) à assistência de qualidade (VALENTIM, 2003, p. 220-221).

O Ministério da Justiça, em 1996, após as pressões e denúncias internacionais sobre a violação de direitos humanos, instituiu o Programa Nacional de Direitos Humanos – PNDH (Decreto nº 1.904, de 13/05/1996). O programa destacava que os direitos humanos não eram apenas um conjunto de princípios morais, devendo estabelecer obrigações jurídicas concretas aos Estados (FERREIRA, 2004).

O Decreto nº 1.904/96 foi revogado, e o Programa Nacional de Direitos Humanos passou a ser regido pelo Decreto nº 4.229, de 13/05/2002. Dentre suas propostas para a proteção dos direitos humanos das pessoas portadoras do HIV/AIDS, destacam-se as seguintes:

Apoiar a participação dos portadores de doenças sexualmente transmissíveis – DST e de pessoas com HIV/AIDS e suas organizações na formulação e na implementação de políticas e programas de combate e prevenção das DST e do HIV/AIDS; incentivar campanhas de informação sobre DST e HIV/AIDS, visando esclarecer a população sobre os comportamentos que facilitem ou dificultem a sua transmissão; apoiar a melhoria da qualidade do tratamento e da assistência das pessoas com HIV/AIDS, incluindo a ampliação da acessibilidade e a redução de custos; assegurar atenção às especificidades e à diversidade cultural das populações, às questões de gênero, raça e orientação sexual nas políticas e nos programas de combate e prevenção das DST e HIV/AIDS, nas campanhas de informação e nas ações de tratamento e assistência; incentivar a realização de estudos e pesquisas sobre DST e HIV/AIDS nas diversas áreas do conhecimento, atentando para princípios éticos de pesquisa (VALENTIM, 2003, p. 223-224).

O Poder Legislativo aprovou leis que beneficiam e protegem os portadores do vírus HIV. A Lei Federal nº 7.670/88 incluiu a AIDS no rol de doenças que justificam benefícios previdenciários, como o auxílio-doença, aposentadoria ou auxílio-reclusão, assim como o saque dos valores correspondentes ao Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), independentemente de rescisão do contrato de trabalho.

Segundo Valentim (2003), é importante ressaltar que os direitos concedidos por essa lei não devem ser usados para excluir o portador do HIV do trabalho, numa forma disfarçada de discriminação. Um empregado portador do vírus HIV, mas ainda capaz para o trabalho, pode ser incentivado a se beneficiar desses benefícios, para que não permaneça no ambiente de trabalho em contato com os demais trabalhadores e clientes. O ideal é que, enquanto a doença não impossibilite o trabalhador de realizar suas tarefas, este continue a trabalhar, de preferência com o apoio, o conforto e a compreensão dos colegas de trabalho.

Outras leis foram editadas beneficiando o portador do HIV/AIDS, visando à prevenção e ao controle da doença, destacando-se: Lei nº 7.713/88, que isenta o portador do vírus HIV do pagamento do imposto de renda sobre seus proventos de aposentadoria; Lei nº 7.649/88, que torna obrigatório o cadastramento de todos os doadores de sangue e a realização de exames laboratoriais para testar sua qualidade, incluindo o teste anti-HIV; Lei nº 8.213/91, que concede ao portador do HIV/AIDS a inexigência de carência para a concessão de benefícios previdenciários (VALENTIM, 2003).

Nos diversos ramos do direito, foram adotadas normas que permitem ao portador ser tratado de forma igualitária, sem discriminações. No direito civil, destacam-se: as ações por danos morais; o direito ao sigilo quanto à sua situação de portador do HIV, especialmente dos profissionais de saúde; o direito a alimentos, podendo ser requerida pensão não só aos pais, como também a qualquer parente que tenha condições para suprir as necessidades do portador; o direito à saúde; o direito sucessório, que tem jurisprudência consolidada no que diz respeito à sucessão de companheiros, independentemente da opção sexual (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2000).

A Lei Federal nº 9.313/96 garante ao portador do HIV/AIDS a distribuição gratuita da medicação necessária ao tratamento pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Cabe ressaltar a rapidez com que foi elaborada e aprovada esta lei, fruto da pressão das ONG´s:

Na sessão "Fortalecimento, Defesa e Ativismo" (XIII Conferência Internacional de AIDS – Durban), foram discutidas formas de pressionar os governos para que invistam mais no tratamento dos pacientes com HIV/AIDS. O exemplo do Brasil foi lembrado para demonstrar que o ativismo pode fazer com que o governo garanta o fornecimento de medicamentos para todos os indivíduos em tratamento (DUROVNI, 2004).

Após a promulgação da lei de distribuição gratuita de medicamentos para o tratamento da AIDS, a etapa seguinte foi a definição de uma política de tratamento médico e a produção de medicamentos genéricos em laboratórios públicos, como política de barateamento dos custos dos medicamentos. Com essa política de barateamento dos medicamentos, o Brasil reduziu em 70% o preço final, em média, em comparação ao valor cobrado pelos laboratórios norte-americanos. Desde a implantação dessa política, o número de óbitos causados pela AIDS vem sendo reduzido gradualmente (VALENTIM, 2003).

A política de distribuição gratuita de medicamentos para o tratamento da AIDS rendeu ao Brasil elogios e o tornou referência nesse campo. De acordo com o Relatório Mundial sobre a epidemia da doença, divulgado pelo Programa de AIDS das Nações Unidas-UNAIDS, em 2004, a melhor situação em relação ao tratamento está nos países em desenvolvimento, especialmente na América Latina. O continente é responsável pelo maior acesso aos medicamentos para AIDS e grande parte desse acesso é atribuída ao Brasil. O relatório ressalta que o Brasil ainda é o único país a garantir o acesso aos anti-retrovirais para um grande número de pessoas, destacando também a boa infra-estrutura da rede de saúde como um todo.

O relatório apresenta o Brasil como um líder na área de cooperação entre países em desenvolvimento. Desde 2002, o governo brasileiro mantém o Projeto de Cooperação Internacional – PCI, que garante tratamento a cem pessoas com AIDS em quatorze países da África e da América Latina. Além do acesso aos medicamentos, o projeto prevê a formação de profissionais de saúde e o apoio à construção de sistemas logísticos de distribuição e de controle de estoque dos anti-retrovirais. Os tratamentos são garantidos com medicamentos genéricos produzidos no Brasil. O projeto como um todo conta com o apoio de agências internacionais de países desenvolvidos, como Inglaterra e Alemanha.

Parker (1994) propôs, há dez anos, como política de prevenção à AIDS, o direcionamento das campanhas para populações mais específicas. A idéia era que mudanças de atitudes e comportamentos resultantes de atividades de educação sobre a AIDS no Brasil pudessem se desenvolver. Naquela época, houve um aumento de 6% para 27% no uso de preservativos, como forma de redução de risco do contágio do vírus HIV. Afirmava o autor, em 1994, que no futuro dever-se-ia reduzir o preconceito e a discriminação relacionados à AIDS e conceder um melhor direcionamento das políticas de prevenção a comunidades específicas.

O atual relatório UNAIDS constata o sucesso das sugestões de Richard Parker. Segundo ele, o Brasil tem alcançado bons resultados no que diz respeito à prevenção de novas infecções. O principal destaque se refere à integração das ações, que prevê estratégias para toda a população e intervenções com populações específicas, como a redução de danos para usuários de drogas injetáveis e os projetos de mudança de comportamento entre homossexuais e profissionais do sexo, passando pela promoção do diagnóstico precoce. É ressaltado, ainda, o aumento do uso de preservativos no país, que foi da ordem de 62% entre 1996 e 2000:

Juntamente com atividades de outras organizações mais genéricas que trabalham com AIDS, como o GAPA e a ABIA, o surgimento de atividades educacionais específicas enraizadas em comunidades locais constituiu provavelmente o avanço mais significativo no campo da educação sobre AIDS no Brasil (PARKER, 1994, p. 108).

Apesar do exemplo do Brasil em relação ao tratamento, falta ainda muito, no que diz respeito ao cumprimento das leis de proteção ao portador do HIV/AIDS e às próprias leis que não abrangem todos os aspectos que envolvem a doença:

Em nosso país, um dos campeões mundiais em desigualdades e discriminações, sob o ponto de vista do vírus, é possível afirmar que a AIDS vai bem, muito obrigado! E aqui é importante reconhecer que o problema não é somente do "governo", mas de todo e qualquer cidadão, portador do HIV ou não, porque os indicadores apontam para uma epidemia com crescimento rápido e constante (COORDENAÇÃO NACIONAL DE DST E AIDS, 1998, p. 15).

O Poder Judiciário é de extrema importância na proteção dos direitos do portador do HIV/AIDS. Ao aplicar a lei aos casos concretos, o Judiciário possibilita a efetividade dos direitos humanos. Em análise dos julgados dos tribunais brasileiros, nota-se um grande avanço no reconhecimento da doença, no deferimento de direitos aos portadores do HIV e no cuidado da prevenção e do tratamento (COORDENAÇÃO NACIONAL DE DST E AIDS, 1998).

Desde o início da epidemia, houve questionamentos que impulsionaram a formação de grupos na luta contra a AIDS e a onda de preconceitos que a acompanhava. Esses grupos formaram as ONGs. Sobre elas Leilah Landim apud GALVÃO (1994, p. 344), esclarece: "ONGs são entidades que se apresentam como estando ‘a serviço’ de determinados ‘movimentos sociais’ de camadas de população ‘oprimidas’, ou ‘exploradas’, ou ‘excluídas’, dentro de perspectivas de transformação social".

Segundo Prado (2002) as ONGs desenvolveram um importante papel, com trabalhos de prevenção e assistência, na defesa dos direitos dos portadores do HIV. Essa atuação foi uma reação às demonstrações de discriminação e preconceito a às violações de direitos humanos, conforme esclarecem Daniel; Parker (1991, p. 27):

Realmente, o que talvez seja surpreendente seja o fato de que, gradualmente, no decorrer dos últimos anos, essa síndrome de preconceitos – e a violação de direitos humanos fundamentais e da dignidade humana que tão freqüentemente produziu – tenha sido questionada por pessoas e grupos que se formaram para lutar contra ela.

Várias ONGs foram criadas em defesa do portador do HIV/AIDS no Brasil, destacando-se as seguintes: GAPA/SP – Grupo de Apoio à Prevenção à AIDS, a primeira entidade brasileira notoriamente dedicada a apoiar pessoas com AIDS; ABIA – Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS, que pautou sua atuação na busca do profissionalismo e pela contundente crítica à política governamental brasileira em relação à epidemia de HIV/AIDS; Grupo pela VIDDA – Grupo pela Valorização, Integração e Dignidade do Doente de AIDS. É preciso registrar que a entrada dessa organização no cenário nacional mudou a qualidade do discurso até então apresentado pelas outras. Com Herbert Daniel, a negação dos direitos das pessoas portadoras do HIV/AIDS ganha a definição de "morte civil", passando o tratamento contra a discriminação e o preconceito a ser feito através da solidariedade (GALVÃO, 1994).

Com a formação desses grupos, um importante problema da epidemia foi atacado: a luta pelo fim da discriminação e do preconceito. Nessa luta, a solidariedade foi considerada a única resposta eficiente contra a epidemia da AIDS:

Durante os últimos anos então, esses diversos grupos e organizações começaram gradualmente a abrir um novo campo na luta contra a AIDS no Brasil – criar o que pode ser descrito como uma política de AIDS destinada a combater não apenas a epidemia da infecção pelo HIV, mas também a terceira epidemia de preconceito e discriminação. Estiveram na frente de batalha na denuncia da discriminação contra pessoas com AIDS, bem como de pessoas consideradas em maior risco, e centralizaram seu combate, acima de tudo, talvez, nos efeitos da estigmatização e da marginalização. Em última instância, ofereceram, em oposição a isso, a noção de solidariedade como a única resposta realmente aceitável contra a AIDS (DANIEL; PARKER, 1993, p. 28).

Não basta apenas o conhecimento, pelo portador do HIV/AIDS, das leis que garantem seus direitos. É preciso que essas normas sejam aplicadas e respeitadas, independentemente da atuação do Poder Judiciário, para que a dignidade do portador do HIV/AIDS seja reconhecida (GAPA/RS, 2001). Nessa luta contra a AIDS, enquanto não houver uma resposta solidária e compreensiva da sociedade em todos os seus aspectos, os direitos humanos surgem como garantia de que os direitos básicos do portador do HIV/AIDS serão respeitados e aplicados.

Para que se possa combater as violações dos direitos humanos praticadas contra os portadores do vírus HIV/AIDS, é necessário um amplo trabalho de informação, de modo que a sociedade compreenda o que é a AIDS, suas formas de transmissão, a atuação do vírus no corpo humano e seu tratamento. Essas informações são necessárias e devem ser transmitidas de forma clara, sem que provoquem dúbias interpretações. Se a doença for inteiramente compreendida, será mais fácil trabalhar na conscientização contra a discriminação e o preconceito.

O envolvimento da comunidade com a questão dos direitos humanos dos portadores do HIV/AIDS, através da intervenção da mídia, poderá contribuir para uma mudança significativa no comportamento da população (COORDENAÇÃO NACIONAL DE DST E AIDS, 1998).

Com relação às ações de educação sobre a AIDS, cabe ressaltar que, apesar da concentração dessas ações na redução de risco de infecção pelo HIV, é necessário abordar outras questões como as associadas ao que foi descrito como "a terceira epidemia":

Na verdade, talvez baste enfrentar a questão da redução do risco, na medida em que essa série de questões sociais é abordada pela discussão da AIDS, e tanto a conscientização da AIDS de forma mais genérica quanto as questões específicas do preconceito e da discriminação devem ser abordadas, juntamente com a redução do risco, como questões-chave que também precisam ser consideradas na avaliação do impacto dos programas educacionais sobre a AIDS (PARKER, 1994, p. 109).

Para tanto, é necessário que se implante uma programação de ações para a prevenção do HIV/AIDS e de conscientização sobre os perigos da discriminação e do preconceito em relação à epidemia de AIDS. A sociedade deve ficar consciente da não existência de grupo de riscos e do fato de que a AIDS pode fazer-se presente na vida de qualquer um.

A epidemia da AIDS deve ser vista como um perigo a toda a sociedade não apenas para grupos de risco. A doença deve ser motivo de preocupação de todas as pessoas, independentemente de sua condição social, de idade, sexo ou conduta sexual. Afinal, o grupo de risco é a própria sociedade (SOUZA, 1994).

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Sobre a autora
Tatyane Guimarães Oliveira

advogada em João Pessoa (PB)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Tatyane Guimarães. Aids e discriminação:: violação dos direitos humanos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 762, 5 ago. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7126. Acesso em: 4 mai. 2024.

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