5. Negócios processuais que limitam o poder instrutório do juiz no CPC/2015
5.1. O CPC/2015: novas premissas
O CPC/2015 tem premissas absolutamente diversas das que vigoraram sob a égide do CPC/1973. A cláusula geral da atipicidade de negócios processuais, o princípio do respeito ao autorregramento da vontade das partes e a eficácia jurídica dos precedentes judiciais são apenas algumas das novidades que romperam com o sistema do CPC/1973.
Por isso, revela-se essencial que o intérprete altere suas premissas, sob pena de esvaziar o potencial e o alcance dessa nova sistemática, o que resultaria em interpretação claramente contra legem 66.
No novo modelo processual, onde convivem harmonicamente o publicismo e o privatismo, a eficácia jurídica prevista das convenções processuais independe de homologação judicial, exceto nos casos em que a lei expressamente exigir o prévio controle ou participação do juiz67.
Exigir a homologação da convenção pelo juiz é insistir no antigo modelo publicista, no qual todo e qualquer tipo de ato é controlado integralmente pelo magistrado.
Nesse contexto, ao interpretar o princípio do autorregramento da vontade das partes, aplica-se a teoria da eficácia externa das normas preconizada por Humberto Ávila68, para quem as normas jurídicas não atuam somente sobre a compreensão de outras normas. Elas atuam sobre a compreensão dos próprios fatos e provas.
Sempre que se aplica uma norma jurídica é preciso decidir, dentre todos os fatos ocorridos, quais deles são pertinentes (exame da pertinência) e, dentre todos os pontos de vista, quais deles são os adequados para interpretar os fatos (exame da valoração).
Neste ponto, Humberto Ávila destaca a noção da eficácia externa, pois as normas jurídicas são decisivas para a interpretação dos próprios fatos. Seguindo o entendimento do autor, não se interpreta a norma e depois o fato, mas o fato de acordo com a norma e a norma de acordo com o fato, simultaneamente70.
O mais importante cinge-se à eficácia externa que os princípios têm: como eles estabelecem indiretamente um valor pelo estabelecimento de um estado ideal de coisas a ser buscado, indiretamente eles fornecem um parâmetro para o exame da pertinência e da valoração71.
Aplicando-se, pois, o princípio do autorregramento da vontade das partes depreende-se que o 72
Não se concebe, entretanto, poderes ilimitados às partes no autorregramento de suas vontades, pois as regras de ordem pública representam obstáculo à autonomia da vontade das partes em todos os ramos do direito, inclusive no processo.
Sem dúvidas, os contratos processuais são vedados se violarem os princípios do devido processo legal, porquanto acarreta na previsibilidade do procedimento alcançando a segurança jurídica, contraditório e ampla defesa, busca da verdade, juiz natural, celeridade.
As convenções processuais que regulam os prazos e alteram o cronograma procedimental devem atentar para o interesse público de duração razoável do processo73.
No Estado Democrático de Direito, verifica-se a conjugação das peculiaridades do processo liberal e do processo social a partir de um modelo, no qual o juiz há de dialogar com as partes, sempre com base no critério participativo.
O equilíbrio da posição e funções das partes e do juiz decorre do modelo colaborativo ou comparticipativo de organização do processo.
O modelo colaborativo comparticipativo de organização do processo, próprio do Estado Democrático de Direito, decorre de uma concepção conjunta entre o juiz e as partes74.
A colaboração no processo decorre do Estado Constitucional Democrático, que constitui a resposta à necessidade de participação equilibrada do juiz e das partes no processo civil75.
No processo civil, o juiz se encontra a todo tempo em pé de igualdade com as partes, sem, todavia, ignorar a imperatividade da jurisdição e a necessidade de submissão da parte ao seu comando à vista da assimetria inerente à atuação estatal76.
Paula Costa e Silva77 entende a colaboração no processo civil como um princípio (previsto no art. 266/1 do Código de Processo Civil Português), salientando que este princípio vem a refletir-se na imputação de situações jurídicas aos diversos intervenientes processuais, que visam uma actuação colaborante ao longo do processo78.
Como princípio, o fim da colaboração está em servir de elemento para organização de processo justo idôneo a alcançar, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva, consoante preconiza o art. 6.º do CPC/2015.
Observa-se, pois, o diálogo como instrumento essencial para condução do processo, apurar a verdade das alegações das partes, com o escopo de bem aplicar o direito e empregar as técnicas executivas adequadas para a realização dos direitos.
A colaboração no processo civil, no contexto de Estado Constitucional, não é uma colaboração entre as partes. É uma colaboração do juiz para com as partes79.
Pode ocorrer de uma das partes ter de cooperar com o juízo a fim de que este colabore com a outra. Isto, contudo, não autoriza que se defenda existir colaboração entre as partes.
É a própria estrutura adversarial ínsita ao processo contencioso que repele a ideia de colaboração entre as partes80.
Assim, por força do contraditório, o juiz está obrigado ao debate, ao diálogo Judiciário, devendo dirigir o processo isonomicamente, a partir do dever de cooperação, dever este que, por sua vez, se desdobra em múltiplos outros deveres: (i) pedir esclarecimento; (ii) prevenção; (iii) auxílio; (iv) consultar81.
Pelo dever de pedir esclarecimentos, consoante sublinha Paula Costa e Silva, o tribunal pode ouvir as partes, convidando-as a prestar esclarecimentos sobre a matéria de facto ou de direito que afigurem pertinentes.
Entretanto, há diferença o entre o poder de convidar a parte a prestar esclarecimentos e o dever de indicar um caminho adequado à parte. Através da prestação destes esclarecimentos, a parte pode lograr convencer o tribunal de que a sua perspectiva quanto à matéria de direito é a adequada. Pelo que o pedido deduzido se revelará também correto82.
Pelo dever de prevenção, o julgador se vê compelido a prevenir as partes sobre eventuais deficiências ou insuficiências das suas alegações ou pedidos (no direito português, chamado de “convite ao aperfeiçoamento”)83.
O dever de prevenção não foi consagrado como cláusula geral, tendo sido previsto para uma situação específica: a complementação ou clarificação na exposição da matéria de fato84. Por este dever, compete ao juiz advertir as partes do perigo de o êxito de seus pedidos ser frustrado pelo uso inadequado do processo.
Por dever de auxílio, o juiz deve auxiliar as partes na superação de determinadas dificuldades que impeçam o exercício de direitos e prerrogativas ou que inviabilizem o cumprimento de seus ônus e deveres processuais.
Observa-se, assim, que os poderes do juiz são aumentados (a partir do necessário caráter constitucional conferido ao processo), impondo-se ao julgador, por conseqüência, o dever de informar as partes as iniciativas que pretende exercer, de modo a permitir-lhes espaço ao debate, ao contraditório, como bem assinalado por Hermes Zaneti Jr. no item 1 deste estudo.
A partir dessas premissas, pode-se construir uma idéia de que para alcançar os escopos da jurisdição, todos os sujeitos do processo devem colaborar com o desenvolvimento do processo85.
O modelo cooperativo de estrutura do processo pode ser visualizado por diversos ângulos em todo o procedimento. Quando analisado pelo ângulo do direito probatório, o modelo cooperativo impõe uma nova divisão de trabalho entre os sujeitos processuais86.
Não se verifica mais aquela rigidez na divisão de um juiz mais passivo e inerte e as partes, necessariamente, mais ativas. Ocorre agora um nivelamento, pelo qual todos passam a ter que atuar em conjunto, de maneira ativa87.
5.2. Limitação aos amplos poderes instrutórios do juiz
O tema dos amplos poderes instrutórios do juiz 88 no processo civil navega em águas turbulentas entre a teoria do ativismo judicial e a teoria do garantismo processual89.
No centro do debate ativismo versus garantismo, orbitam enfoques sobre (i) os aspectos ideológicos do processo civil; (ii) o sistema dispositivo, no qual cabe às partes a iniciativa probatória e o sistema inquisitivo, no qual o juiz detém amplos poderes na atividade instrutória; (iii) a participação ativa das partes e do juiz no processo; (iv) a dimensão constitucional da jurisdição; (v) o conteúdo e significado do devido processo legal; (iv) a garantia constitucional da defesa e contraditório, dentre outros90.
Entretanto, no atual modelo de processo compatível com o Estado Constitucional Democrático, no qual o princípio do autorregramento da vontade das partes sobreleva-se, assumindo feição principiológica peculiar, a celebração de acordo entre as partes interfere na esfera dos poderes instrutórios do julgador.
Pensar diversamente é não dialogar harmonicamente com o novo modelo processual introduzido pelo CPC/2015, no qual se vislumbra nitidamente o retorno ao respeito à autonomia das partes, coexistindo com a autoridade judicial, com fortes impactos e conseqüências em tema de ingerência da prova no processo91.
O juiz como único destinatário da prova, seu convencimento acerca da verdade dos fatos controvertidos e a motivação do julgado foram fundamentos para os defensores da teoria da prova determinada ex officio 92.
Atualmente, entretanto, o juiz está vinculado ao quanto negociado pelas partes, em regra, salvo se macular as garantias constitucionais já aqui abordadas. Também, em regra, independe da adesão do magistrado, em razão do direito fundamental à prova titularizado pelas partes.
Humberto Theodoro Jr, Dierle Nunes, Alexandre Melo Franco Bahia e Flavio QuinaudPedron93, examinando o §2.º do art. 357. do CPC/201594, identificam uma faceta da autonomia privada lastreada pela boa-fé objetiva, dentro do perfil comparticipativo do CPC, ao permitir aos litigantes a apresentação ao juiz de uma delimitação consensual das questões de fato e de direito (pontos controvertidos) a serem elucidadas processualmente, sendo que tal delimitação, se homologada, vincula as partes e o julgador95.
O dispositivo analisado acompanha a tendência de valorização das negociações processuais (arts. 190. e 191, clausula geral de negociação processual e calendarização).
Fredie Didier Jr., Paula Sarno Braga e Rafael Alexandria Oliveira97 defendem ser possível através de convenção das partes, impor-se a um ato jurídico (sentido amplo) uma forma específica, advogando a tese de que o poder instrutório do juiz tem limitação.
A fundamentação reside na intelecção que fazem do art. 109. do Código Civil98 ao estatuir que no negócio jurídico celebrado com a cláusula de não valer sem instrumento público, este é da substancia do ato.Desse modo, quando o instrumento público é forma imposta por convenção das partes, somente ele poderá ser utilizado como prova, afastando-se todos os outros meios99.
Com razão, sustentam os autores que se as partes acordarem no sentido de não ser produzida prova pericial, o juiz não pode determinar a produção desse meio de prova.
Elencam ainda outras hipóteses de limitação ao poder instrutório do juiz: se a parte renunciar a certo testemunho, o juiz não pode determinar a sua produção; se houver convenção sobre o ônus da prova (art. 373, §§3º e 4º) o juiz não pode decidir contra o que foi convencionado100.
Em suma, são limites aos poderes instrutórios do juiz: (i) vedação de determinação de produção de meios de prova cuja fonte não tenha sido revelada por algum elemento da ação; (ii) ausência do dever de provar cabalmente a ocorrência ou não de um fato afirmado, esgotando as fontes de provas, mas apenas o dever de conhecer os fatos alegados pelo autor ou réu (constitutivos, modificativos, extintivos ou impeditivos), haja vista o modelo de constatação de verossimilhança ou preponderância de provas, inerentes ao processo civil101.
O negócio jurídico celebrado em tema de prova é a concretização do pleno exercício do autorregramento da vontade das partes, disciplinando ex voluntate os efeitos decorrentes de sua prática.
Trata-se de negócio processual porque regulado por norma de natureza processual, produzindo efeitos dentro de um procedimento jurisdicional, com manifestações de vontade coincidentes sobre o objeto, in casu, um determinado meio, ou atividade probatória.
Conquanto o art. 370. do CPC/2015 102 tenha conteúdo similar ao disposto no art. 130. do CPC/1973103, não se pode interpretá-los igualmente, como se fazia à época do código pretérito, pois o exercício da atividade instrutória pelo juiz além de subsidiária à conferida às partes, deve, ainda, submeter-se às normas fundamentais do novo processo civil, com destaque especial para aquelas disciplinadas nos arts. 6º, 7º, 9º, 10º e 11, sendo inegável que a celebração de negócios probatórios pelas partes afetará a atividade do juiz, em maior ou menor medida104.
Ademais, os poderes instrutórios do juiz não são absolutos, sendo limitados por 4 (quatro) aspectos: (i) elementos objetivos da demanda (causa de pedir e pedido), já que o princípio da congruência (da correlação, da adstrição ou do dispositivo) entre pedido e sentença impede que o juiz busque provas relativas a fatos não submetidos ao contraditório; (ii) elementos dos autos, pois somente os dados e elementos existentes nos autos devem ser determinantes para a conclusão no sentido da realização de demanda diligência instrutória; (iii) submissão da providência realizada, ao contraditório (art. 5º, LV, CRFB105); (iv) necessidade de fundamentação da decisão judicial que conclui pela produção da prova (art. 93, IX, CRFB106)107.
Os poderes instrutórios do juiz têm um papel subsidiário e complementar às atividades das partes, por isso os negócios processuais probatórios afetam os poderes instrutórios do juiz. Caso contrário, reduziria-sesignificativamente a esfera de incidência dos negócios processuais, deixando-o a critério de um ato de vontade do estado-juiz108.
Todavia, essa não é a essência do novo modelo processual introduzido pelo CPC/2015. A admissão de acordos probatórios revela a concretização de um processo efetivamente participativo e democrático, respeitando-se a liberdade e a autonomia das partes109.