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O interrogatório do réu e seu direito ao silêncio

21/01/2019 às 14:50
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A advertência do juiz ao réu, no interrogatório, de que o seu silêncio pode ser interpretado negativamente, continua a ser, debaixo da nova ordem constitucional, legítima, louvável e necessária.

I. Entre os direitos do preso, reconhece a Constituição Federal o de permanecer calado (art. 5º, nº LXIII), não só na fase do inquérito senão ainda em juízo, onde o magistrado, primeiro que o interrogue, observa-lhe que não está obrigado a responder às suas perguntas (art. 186 do Cód. Proc. Penal).

Não deve, porém, esse direito entender-se por solene e formal convite ao silêncio; ao revés, para que o acusado não se obstine a trazer um cadeado na boca, o juiz — dispunha o art. 186 do Cód. Proc. Penal (1941) — adverte-o gravemente de que “o seu silêncio pode ser interpretado em prejuízo da própria defesa” [1]. Ao réu, mais do que prestigiar o direito ao silêncio, importa-lhe defender-se [2].

Quem se cala, é certo, não confessa a autoria de fato criminoso…; mas também não a nega. É o que basta para não se fazer a apologia do silêncio no interrogatório do réu, notadamente em juízo.

II. Perante o juiz, raríssimos são os casos em que o acusado se recusou a falar, e quando isto ocorreu foi-lhe causa determinante a falta de higidez (física ou mental) ou a coação irresistível.

 No ato de seu interrogatório, se até o mudo tem ocasião de expressar-se (por escrito ou por intérprete), por que houvera de emudecer aquele que, acusado de crime, razão era que suspirasse pela oportunidade de protestar inocência?!

Daqui por que a sabedoria das nações cunhou a retrilhada parêmia quem cala, consente, como a significar que o silêncio é o outro nome da culpa num acusado que, podendo, não se defendeu com a força da palavra [3].

Para mais, se nas declarações do réu é que a defesa costuma fundar-se, como poderá afirmar alguém que o patrono a deduziu convincentemente, se o termo de interrogatório não lhe deparou outra coisa que silêncio mortal?!

Estão em erro, pois, salvo melhor aviso, aqueles que, levados do generoso intento de assegurar ao réu o exercício de um direito seu, têm por despropositada a exortação que encerrava a parte final do mencionado art. 186: “O seu silêncio pode ser interpretado em prejuízo da própria defesa”. O contrário, sim, fora de estranhar! Em verdade, a não advertir o réu das consequências de seu silêncio no interrogatório, já não ostentava o juiz as insígnias do varão probo e diligente, mas as do oficial versado nas artes da malícia [4].

Exaltar o direito do réu de permanecer calado, sem de igual passo informá-lo dos efeitos danosos que daí lhe poderão advir, será obra benemérita aos intuitos da acusação, que não aos da defesa.

É notório que a Lei nº 10.792, de 1.12.2003, com alterar a redação do art. 186 do Cód. Proc. Penal, como que expungiu do silêncio do réu o caráter ou presunção de “confiteor”. Fê-lo, no entanto, apenas “pro forma”, pois o contrário está a demonstrar o teor literal do art. 198 do mesmo Código: “O silêncio do acusado não importará confissão, mas poderá constituir elemento para a formação do convencimento do juiz”.

Logo, se pode influir no ânimo do julgador para a formação de seu convencimento, ninguém ousará sustentar, sem injúria da razão, que o silêncio do réu no interrogatório não lhe prejudica os interesses[5].

III. Onde há boa hipótese da utilidade do silêncio do acusado é no momento em que depõe perante a autoridade policial. É que as declarações que aí venha a prestar considera-as a voz pública obtidas mediante violência. Com efeito, adquiriu nomeada universal a opinião de que a Polícia, ao apurar as circunstâncias de um fato delituoso, geralmente procede com energia, se não excesso [6].

Aí, se ao indigitado autor de crime for permitido optar entre responder à polícia inquisitória e ficar em silêncio, à última alternativa é que se haverá inclinar, que nunca lhe terá parecido mais exato aquilo do anexim: O silêncio é de ouro!

Decidira-se ele pelo partido que melhor convinha a seus interesses; contudo, porque se mantivera em silêncio, bem poderá ser que, lá para o diante, quando lhe tomar contas a Justiça, dela haja de escutar a diatribe: ouvido na instrução provisória, deixou o réu fluir inaproveitada a oportunidade que teve de apresentar, desde o princípio, tese de autodefesa. Ao que não será fácil contrapor argumento de calado profundo. Este, o preço do silêncio!

IV.  De tudo o que levamos dito se infere que a advertência do magistrado ao réu, no interrogatório, de que “o seu silêncio pode ser interpretado em prejuízo da própria defesa”, continua a ser, debaixo da nova ordem constitucional, legítima e cabível, demais de louvável e necessária.

Para poupar ao réu as angústias que lhe prostram a alma quando comparece em juízo para ser interrogado, é praxe, antes de outras perguntas, indagar-lhe o meritíssimo juiz se, respeito à imputação, já conversara com seu defensor. No caso de resposta negativa, oferece-lhe, em obséquio da importância do ato processual, o oportuno ensejo de fazê-lo, com o que resguarda o interesse de sua defesa e previne-lhe o mau uso do direito de manter-se calado [7].

Ao pio leitor não lhe estranhe tenhamos discorrido, posto que à flor e sumariamente, do ato judicial do interrogatório. O que seja, à luz do processo penal, ensinou-o com propriedade, sabedoria e elegância o venerando magistrado Eliézer Rosa: “É um superior momento no cotidiano do Juiz Criminal este de interrogar um réu. O interrogatório deve ser um ato de lealdade, entre homens; um ato de fé no homem; um ato de respeito à dignidade da pessoa humana que existe na figura do réu, por mais grave que tenha sido a conduta que lhe é imputada” [8].

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Notas

[1] Fórmula substituída, ao presente, por “não poderá (o silêncio) ser interpretado em prejuízo da defesa” (art. 186, parág. único, do Cód. Proc. Penal).

[2] “O silêncio é reacionário porque significa a recusa da comunicação, o desejo de ser pedra” (Jean-Paul Sartre, in Folha de S. Paulo, 20.7.93).

[3] Por aborrecerem a mentira, a que ordinariamente recorre o acusado como forma de defesa, alguns juízes talvez lhe preferissem o silêncio, não fora este sempre acintoso. De feito, haverá nada mais inconciliável com as regras da urbanidade do que o silêncio desdenhoso do réu que não atende às perguntas do juiz?!

[4] Do número dos que sufragam o direito do réu ao silêncio é a notável processualista Ada Pellegrini Grinover: “O direito ao silêncio é o selo que garante o enfoque do interrogatório como meio de defesa e que assegura a liberdade de consciência do acusado” (As Nulidades no Processo Penal, 1992, pp. 66 e 67).

[5] É que, embora adstrito às provas dos autos (“quod non est in actis non est in mundo”), o juiz, conforme a sentença de Francisco Campos no pórtico do Código de Processo Penal, é “restituído à sua própria consciência” (Exposição de Motivos do Cód. Proc. Penal, cap. VII).

[6] Para infundir no indiciado justo receio do arbítrio no instante de seu interrogatório, não era mister mais que o ambiente do distrito policial (sempre soturno e caliginoso, a atmosfera nauseabunda das celas, o emblema do terror figurado nas algemas, na exibição das armas, no estrépito contínuo dos portões de ferro, na vozearia infernal, etc.). Donde o haver dito, acerca desta árdua questão, o advogado de escol Noé de Azevedo: “Entendemos que é uma verdadeira irrisão falar-se em declarações livres, tratando-se de réus que estavam ilegalmente presos para prestá-las. Só o fato da prisão é suficiente para excluir a liberdade de tais declarações” (Rev. Tribs., vol. 110, p. 555).

[7] Ainda não entrara em vigor a Lei nº 10.792, de 1.12.2003, que estatuiu a norma do art. 185, § 2º, do Cód. Proc. Penal — i.e.: “Antes da realização do interrogatório, o juiz assegurará o direito de entrevista do acusado com seu defensor.” —, e pudéramos testemunhar que já abraçavam essa prática salutar, ao tempo em que exerciam a magistratura na Primeira Instância da Jurisdição Criminal, entre outros, os eminentes Desembargadores Ary Belfort, Djalma Rubens Lofrano, Jarbas Coimbra Mazzoni, Nelson Fonseca, Alberto Silva Franco, Ângelo Gallucci, Mohamed Amaro, José Gaspar Gonzaga Franceschini, Eduardo Pereira Santos, Oldemar Azevedo, Marco Antônio Pinheiro Machado Cogan… Escrevemos-lhes por isso aqui os nomes, dignos sempre de imitação e afetuosa lembrança!

[8] Dicionário de Processo Penal, 1975, p. 133.

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Sobre o autor
Carlos Biasotti

Desembargador aposentado do TJSP e ex-presidente da Acrimesp

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BIASOTTI, Carlos. O interrogatório do réu e seu direito ao silêncio. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5682, 21 jan. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/71544. Acesso em: 21 nov. 2024.

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