Adoção de crianças indígenas x doutrina da proteção integral

29/01/2019 às 19:36
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Falta um olhar mais humanizado para nossas crianças e adolescentes que se encontram em total situação de vulnerabilidade, para que somente desta forma deixem de engrossar a imensa estatística de crianças relegadas ao Estado, como se filhos seus fossem.

1 - Introdução

O objetivo do presente artigo é iniciar um debate acerca da legislação vigente que versa sobre a adoção de crianças indígenas frente a Doutrina Jurídica da Proteção Integral.

Levantamos a questão se seriam essas crianças de fato indígenas. Por fim, trazemos importantes decisões proferidas em processos de adoção de crianças indígenas, nos quais lhes foi assegurado a dignidade humana.

O presente artigo apresenta breves considerações acerca da adoção de crianças indígenas e da doutrina da proteção integral, amplamente difundida pela pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.

O tema é palpitante e de grande interesse para nós, que com frequência ouvimos relatos de crianças indígenas abandonadas ou até mesmo sacrificadas.

Iremos discorrer sobre a prática da adoção intuito personae, comumente utilizada quando se trata de crianças indígenas.

Apresento casos concretos, alguns tive o prazer de atuar, porém, importante ressaltar que, em todos os casos analisados pudemos constatar que houve o melhor desfecho para a criança, sendo ao final concedida a adoção, assegurando ao ser em formação a dignidade humana enquanto criança, de crescer e ser educada no seio de uma família, sendo amada e respeitada.

A análise do tema proposto foi feita à luz da legislação vigente e de recentes decisões proferidas por tribunais brasileiros, merecendo amplo debate e compreensão, visando efetivamente a aplicabilidade da doutrina da proteção integral e da prioridade absoluta.


2 - Desenvolvimento

Inicialmente, convêm relembrar que a Convenção sobre os Direitos da Criança da ONU, em seu artigo 3º, item 1 e 3, assegura a prevalência do direito da criança sobre os demais, considerando prioridade absoluta seus interesses, comprometendo-se os os Estados Partes comprometem-se a assegurar a proteção e o cuidado que sejam necessários ao seu bem-estar, levando em consideração os direitos e deveres de seus pais, tutores ou outras pessoas responsáveis por ela perante a lei e, com essa finalidade, tomarão todas as medidas legislativas e administrativas adequadas.

O ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente, tem como primazia a doutrina da proteção integral e o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, sendo que a prioridade absoluta já se encontrava prevista no texto constitucional de 1988, em seu artigo 227.

O art. 19 da Lei 8069/90 (ECA), recentemente alterado pela Lei 13.257/ 2017, trouxe algumas inovações, em especial em relação aos prazos de acolhimento institucional e da entrega pela gestante ou pela mãe do filho em adoção.

Contudo, no que se refere ao caput do mencionado dispositivo verificamos que permanece a redação de que à criança deve ser assegurada a possibilidade de reintegração familiar ou, a colocação em família substituta, sempre que possível no seio de sua família, e, se for o caso, em família substituta. E aqui reside a primeira reflexão: “sempre que possível!” E caso contrário? Em não sendo o infante aceito, tendo sido abandonado no momento de seu nascimento, qual será seu destino? Crescerá e viverá privado de uma família para chamar de sua? Viverá como filho do Estado, privado de afeto e amor? Onde está a sua prioridade absoluta perante todos os demais direitos?

Prosseguindo, verificamos que a Lei nº 13.257/2017 que alterou o ECA, inseriu o parágrafo 2º, que reduziu o prazo máximo de acolhimento institucional para um ano e seis meses, contudo, apresentou uma ressalva: “ salvo comprovada necessidade que atenda ao seu superior interesse, devidamente fundamentada pela autoridade judiciária.”

Qual a intenção do legislador em permitir tal ressalva? Qual a necessidade que leva uma criança ou um adolescente a permanecer acolhido por prazo tão longo?

Por óbvio, todas as normas legais voltadas às crianças e adolescentes abrangem aqueles que se enquadrem como tal, sejam indígenas, quilombolas refugiados etc.

No que tange à adoção, temos o artigo 28 do ECA, que prevê as circunstâncias em que crianças e adolescentes devem e podem ser inseridas em família substituta, asseverando expressamente que: a “colocação em família substituta far-se-á mediante guarda, tutela ou adoção, independentemente da situação jurídica da criança ou adolescente, nos termos da Lei”.

O parágrafo 6º do citado artigo, inserido pela Lei 12.010/2009, refere-se a crianças e adolescentes indígenas ou proveniente de comunidade remanescente de quilombo, prevendo a obrigatoriedade de que sejam consideradas e respeitadas sua identidade social e cultural, os seus costumes e tradições, bem como suas instituições, desde que não sejam incompatíveis com os direitos fundamentais reconhecidos pela mencionada Lei bem como pela Constituição Federal, devendo a colocação familiar ocorrer prioritariamente no seio de sua comunidade original ou junto a membros da mesma etnia.

Segue, ainda, prevendo que “a intervenção e oitiva de representantes do órgão federal responsável pela política indigenista, no caso de crianças e adolescentes indígenas, e de antropólogos, perante a equipe interprofissional ou multidisciplinar que acompanhará cada caso”. (incluído pela Lei nº 12.010, de 2009 – Nova Lei de Adoção).

Ainda, em se tratando de crianças e adolescentes indígenas, o Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu artigo art. 161, §2º, determina que haja a intervenção “de representantes do órgão federal responsável pela política indigenista”.

Contudo, partindo-se da cotejada primazia dos direitos das crianças e dos adolescentes sobre todos os demais direitos e do reconhecimento da doutrina da proteção integral, o abandono por si só, ao nascer ou em algum momento da pequena existência dessas crianças e adolescentes, os afasta da comunidade indígena que, em tese, pertenceriam.

Infelizmente, em todos os relacionamentos humanos, quando se abandona, quando se omite, é porque não se deseja. Seria então diferente com essas crianças? Haveria de fato necessidade de longos e infindáveis estudos de caso, inclusive com antropólogos? Falsas tentativas de reatamento de um vínculo que jamais existiu, uma vez que essas crianças, na maioria das vezes, são abandonada ao nascer?

Concretamente nos deparamos com duas situações distintas, a primeira, daquelas crianças que foram entregues diretamente aos futuros adotantes (adoção intuito personae) e, a segunda, daquelas crianças que ao nascer são abandonadas abandonas e logo após institucionalizadas. Abaixo passaremos a narrar.

A indígena ao decidir entregar seu filho à adoção o faz de forma dirigida, normalmente por existir com a pessoa que irá receber a criança um vínculo de confiança, ocorrendo assim a adoção “intuito personae. Em alguns casos concretos nos deparamos inclusive com ameaça de tirar a vida do próprio filho, acaso não seja respeitada a escolha da mãe biológica na entrega de seu filho.

No que se refere às crianças indígenas acolhidas no Estado de Roraima, verificamos que a maioria dos abandonos se deu por alguma má formação física, uma vez que no momento do nascimento a criança é “inspecionada” pela própria mãe e, acaso apresente alguma deformação é morta, normalmente abandonada na mata, estrangulada ou asfixiada.

No que se refere às crianças indígenas acolhidas e com alguma necessidade especial, podemos constatar que foram resgatadas antes de que ocorresse tal fatalidade.

Segundo dados do CNJ – Conselho Nacional de Justiça, as crianças e adolescentes indígenas, assim como as quase 47 mil crianças e adolescentes institucionalizadas, perdem boa parte de sua infância nos abrigos e casas de acolhimento, sendo que, muitas vezes, ingressam em tenra idade e lá permanecem por longos e sofridos anos, quando poderiam estar inseridas em uma família disposta a adotá-las, a recebe-las como filhos(as).

Tem-se, assim, uma infância cerceada, sem a mínima prioridade, sem proteção integral, amor, afeto e cuidados que somente a estrutura familiar poderia oferecer.

Dentro da cultura indígena, a criança pode ser abandonada ou morta ao nascer, acaso seja fruto de traição, tiver irmão gêmeo (a mãe opta qual deseja), tiver sido picada por cobra ou nasça com alguma doença. Nesses casos não só o abandono pode ser o fim, mas também a morte, vez que a infanticídio ainda ocorre em algumas etnias, não sendo visto como ato criminoso (tema que oportunamente discutiremos).

Assim, constatamos que aquelas crianças que são abandonadas em tenra idade por serem portadoras de alguma doença, seja ela tratável ou não, vivem à mercê da atuação estatal, pois ao invés de serem prontamente inseridas em uma família substituta, aguardam anos e anos em acolhimento. Ou seja, sequer lhes é assegurado o direito ao afeto e ao cuidado.

A absoluta negação dos direitos fundamentais afeta toda sua existência, pois poderiam e deveriam estar sendo tratadas e cuidadas, uma vez que todos têm direito a crescer em uma família, cercados de amor e estímulos necessários a seu desenvolvimento pleno.

O abandono estatal é latente, vez que o falido Estado brasileiro não lhes garante o mínimo necessário em seus tratamentos médicos, ainda, em total inobservância da mínima dignidade humana.

A meu sentir, não existe prevalência, primazia e doutrina integral, mas sim abandono integral, seja daqueles que deveriam por questões naturais cuidar e zelar, seja do Estado que, por força legal, recebe tal incumbência e omite-se diante do revelado descaso.

Pois bem, insiste o legislador que essas crianças seriam indígenas. Em minha humilde opinião afirmo que não. Por certo seus pais ou um de seus genitores é indígena, mas, no momento do abandono, não mais podem ser assim consideradas. Explico:

Tem-se que o artigo 3º, I da Lei nº 6.001, de 19.12.1973 (Estatuto do Índio), define Índio ou Silvícola como todo indivíduo de origem e ascendência pré-colombiana que se identifica e é identificado como pertencente a um grupo étnico cujas características culturais o distinguem da sociedade nacional. De clareza cristalina, diz o texto legal: que se identifica e é identificado. Observem que o texto legal não diz: se identifica OU é identificado, mas sim se identifica E é identificado.

Ainda nesse sentido, fazemos menção a Resolução nº 304, de 09 de agosto de 2000, do CNS - Conselho Nacional de Saúde, vejamos a definição de índio: "quem se considera pertencente a uma comunidade indígena e é por ela reconhecido como membro”. Mais uma vez vemos que deve existir dois fatores para que se possua a condição de indígena, que se identifica e é identificado.

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A criança e o adolescente indígena em situação de abandono não foram só rejeitados pelos pais biológicos, mas, também, por toda comunidade, não sendo, portanto, identificados como pertencentes àquele meio social. Prosseguindo, não possuem identidade cultural para serem identificados como indígenas e, mesmo que o tivesse, não foram acolhidos pela comunidade, eis que foram abandonas.

Tais crianças deveriam possuir dois requisitos: se identificar e ser identificado. Por óbvio, em tenra idade ou mesmo que ainda criança, não pode se identificar e por fim, não é identificado pela etnia que deveria pertencer.

Ainda, por analogia, citamos a Convenção 169 da OIT, sobre povos indígenas e tribais que, igualmente, prevê que “a autoidentidade indígena ou tribal é uma inovação do instrumento, ao instituí-la como critério subjetivo, mas fundamental, para a definição dos povos sujeito da Convenção, isto é, nenhum Estado ou grupo social tem o direito de negar a identidade a um povo indígena ou tribal que como tal ele próprio se reconheça”. Frisamos, ele próprio se reconheça. Há reconhecimento dessas crianças e adolescentes?

O consagrado doutrinador José Afonso da Silva, in Comentário Contextual à Constituição, ed. Malheiros, 2005, assevera que “o sentimento de pertinência a uma comunidade indígena é que identifica o índio. A dizer, é índio quem se sente índio. Essa auto identificação, que se funda no sentimento de pertinência a uma comunidade indígena, e a manutenção dessa identidade étnica, fundada na continuidade histórica do passado pré-colombiano que reproduz a mesma cultura, constituem um critério fundamental para a identificação do índio brasileiro”.

Assim, tais crianças e adolescentes não podem ser identificadas como indígenas, eis que o abandono ocorreu não só pelos pais biológicos, mas, igualmente, por toda uma comunidade, não havendo que se falar em existência de poder familiar, pois este deixou de existir no momento do abandono.

Retornando a doutrina da proteção integral e a prioridade absoluta dos direitos das crianças e dos adolescentes indígenas objeto deste trabalho, entendo não estar o Estado lhes assegurando os direitos fundamentais previstos no texto legal pátrio, lhes assegurando o respeito e a dignidade inerentes `a todo ser humano, nem tampouco exercendo seu poder de tutela.

Encarar o ato de abandono como uma declaração tácita de renúncia do poder familiar ou permitir que fosse firmado em um prazo razoável um termo de renúncia perante a autoridade judiciária, agilizaria o tempo de “internação” dessas crianças, possibilitando que de fato passassem a ser prioridade absoluta.

O acolhimento prologando e desnecessário fere todas as declarações de direitos humanos existentes, notadamente a DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DAS CRIANÇAS – UNICEF, datada de 20 de novembro de 1959, que assim prevê:

“ Princípio VI/ - A criança necessita de amor e compreensão, para o desenvolvimento pleno e harmonioso de sua personalidade; sempre que possível, deverá crescer com o amparo e sob a responsabilidade de seus pais, mas, em qualquer caso, em um ambiente de afeto e segurança moral e material; salvo circunstâncias excepcionais, não se deverá separar a criança de tenra idade de sua mãe. A sociedade e as autoridades públicas terão a obrigação de cuidar especialmente do menor abandonado ou daqueles que careçam de meios adequados de subsistência. Convém que se concedam subsídios governamentais, ou de outra espécie, para a manutenção dos filhos de famílias numerosas.”

Sabe-se que o dinheiro supre necessidades básicas, mata a fome, mas amor e afeto nutrem a alma, fazendo com que o espírito cresça em sua plenitude, assim como prevê a Declaração Universal dos Direitos das Crianças.

Acertadamente, observamos que alguns Tribunais do país, em pedido de adoção de crianças indígenas, afastaram o excessivo rigor imposto pelo artigo 28, §6º do Estatuto da Criança e do Adolescente, em justa e correta observância do princípio da dignidade humana e do superior interesse da criança, vejamos:

Agravo de instrumento - ação de adoção c.c destituição do poder familiar - crianças indígenas - alegada necessidade de cumprimento das medidas previstas no art. 28, § 6º, do eca para a concessão da guarda provisória - afastada - formalidade desnecessária à viabilização da guarda - guarda provisória mantida - princípio da dignidade humana e do interesse do menor - recurso parcialmente provido.

Tribunal de Justiça Mato Grosso do Sul, Processo Agravo de Instrumento 40135347920138120000, Relator Des. Divancir Schreiner Maran, Data de julgamento 25/03/2014

Rescisória. Adoção. Menor indígena. Carência ação. Nulidade processual. Ausência de assistência de representante da FUNAI. Formalidade excessiva. Princípio melhor interesse do menor. Ponderação. Manutenção Sentença. A sentença que decide o processo de adoção tem caráter constitutivo (e não meramente homologatório), assim, a decisão que destitui o poder familiar dos pais biológicos é atacável por ação rescisória, dentro do prazo decadencial de 02 (dois) anos. Na espécie, comprovou-se a intimação prévia e a presença dos representantes da FUNAI E FUNASA, e, inclusive de membro do Ministério Público, na audiência de instrução e julgamento, sem que houvesse qualquer manifestação ou recurso dos mesmos quanto à necessidade de intimação para atuar junto à equipe multidisciplinar responsável, na elaboração do estudo psicológico e social. A pretensão de rescindir a sentença que concede a adoção da menor, pela ausência de assistência/acompanhamento da FUNAI na elaboração do estudo multidisciplinar, apega-se a exacerbada formalidade que não pode prosperar ante a concreta possibilidade de se vulnerar o princípio do melhor interesse da criança, cuja intangibilidade deve ser preservada com todo o rigor. Com efeito, no confronto das formalidades legais com os vínculos de afeto criados entre os adotantes e a infante, os últimos devem sempre prevalecer. Diante dessas considerações, declarar a nulidade do processo de adoção, notadamente diante dos elementos de prova coletados durante a instrução do feito, alterando sem razoável justificativa a situação da infante, não condiz com os objetivos do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia, Câmaras Cíveis Reunidas, Ação Rescisória, Processo nº 0001076-22.2013.822.0000, Relator(a) do Acórdão: Des. Kiyochi Mori, Data de julgamento: 06/03/2015.

APELAÇÃO CÍVEL. ECA. AÇÃO DE DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR C/C GUARDA. INAPTIDÃO DOS GENITORES PARA O DESEMPENHO DA FUNÇÃO PARENTAL. SITUAÇÃO DE RISCO. CRIANÇA INDÍGENA. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA DO PEDIDO. TESE RECURSAL DE RELATIVISMO CULTURAL. INSUBSISTENTE. COMPROVAÇÃO DA SITUAÇÃO DE RISCO. MAUS TRATOS. INFANTE FORA DA ALDEIA PARA TRATAMENTO DE SAÚDE NA CAPITAL DESDE TENRA IDADE. GUARDA EXERCIDA POR TÉCNICA DE ENFERMAGEM SERVIDORA DA ?CASA DO ÍNDIO? DE BELÉM (FUNASA). IRREVERSIBILIDADE DA SITUAÇÃO COM O PASSAR DOS ANOS. CRIANÇA INTEGRADA À SOCIEDADE CIVIL. DIFICULDADE DE ADAPTAÇÃO DEMONSTRADA. VULNERABILIDADE. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA E DO MELHOR INTERESSE DO MENOR. DESTITUIÇÃO E GUARDA DEFINITIVA MANTIDA. 1. Embora o art. 28, § 6º, inc. I e II, do ECA, com a redação dada pela Lei nº 12.010/2009, disponha que, em se tratando de criança indígena, a colocação familiar ocorra prioritariamente no seio de sua comunidade ao junto a membros da mesma etnia, no caso não houve como consolidar a colocação da infante na família extensa. 2. Se os genitores não possuem as mínimas condições pessoais para cuidar da filha, jamais tendo exercido de forma adequada a maternidade e a paternidade, mantendo a filha em constante situação de risco, torna-se imperiosa a destituição do poder familiar, a fim de que a criança, que já está inserida em família substituta, possa desfrutar de uma vida mais saudável, equilibrada e feliz. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. UNÂNIME.

Tribunal de Justiça do Pará, Apelação Cível 0000428-72.2011.8.14.0005, 1ª TURMA DE DIREITO PRIVADO, Relator: MARIA DO CEO MACIEL COUTINHO, Data de julgamento: 21/08/2017

Em Roraima, em processos de adoção que atuamos envolvendo crianças indígenas, a FUNAI – Fundação Nacional do Índio, opinou por sua exclusão da lide, sob o argumento que àquela criança que se pretendia adotar perdera sua condição social de indígena no momento de seu abandono, peço vênia para transcrever trechos do parecer do procurador federal que à época atuava junto à Fundação Nacional do índio - FUNAI, vejamos:

“Mister se faz, no entanto, aduzir, ainda, que a entrega voluntária e sem vícios de ..., além de ter ensejado a perda do poder familiar dos pais biológicos, à luz do Estatuto da Criança e Adolescente – ECA – também, de forma concorrente e concomitante, resultou na configuração da rejeição parental, pela não aplicação no caso vertente da conceituação jurídica/antropológica disposta no art. 3º , inciso I, da lei Federal nº 6001/73 – Estatuto do Índio – quanto ao não reconhecimento institucional da condição/qualidade de indígena de ..., por não configurar em favor do mesmo os pressupostos exigidos pelo princípio da alteridade – de cunho eminentemente jurídico/antropológico – que consiste nas ocorrências da auto e da alter identificações concomitantemente, isto é, de forma recíproca, quando o indivíduo se declara e sei aceita como pertencente ao um determinado grupo como seu igual, como seu integrante, daí resultando na aplicabilidade concreta do conceito jurídico/antropológico de matiz, eminentemente , cultural, que por seu turno representa na concepção técnica e apurada no termo etnia, prescrito no art. 3º I da lei federal nº 6001/73...”

Importante mais uma vez ressaltar que a comumente ocorre entre crianças indígenas a adoção intuitu personae, escolhendo, a mãe ou o pai biológico, a pessoa que irá receber a criança em adoção, conforme já mencionado acima, vejamos trechos de algumas decisões proferidas pela Vara da Infância e Juventude da Comarca de Boa Vista/Roraima, algumas proferidas em processos que atuamos:

Ação de adoção com dispensa de inscrição de cadastros prévios de adotantes e adotandos. Estatuto da Criança e Adolescente. Adoção. Medida Protetiva. Família substituta. Habilitação dos pretendentes. Adoção casada. Inexigência de Lista de Adotandos. Criança Indígena. Tutela da Funai. Livre consentimentos dos Pais. Perda da Condição Sociológica do Indigenato. Retorno à família natural. Impossibilidade.

Processo nº ....... ano 2009 – Vara da Infância de Boa Vista-RR

Ação de adoção com dispensa de inscrição de cadastros prévios de adotantes e adotandos. “Que após o nascimento ... não quis amamentar e nem ficar com a criança; ... Que no dia do nascimento a criança permaneceu na CASAI e a declarante seguiu para o seu outro trabalho, mas recebeu uma ligação da CASAI informando que ... viu a criança do local e disse que iria matá-la; Que o marido de ...sabia da criança e declarou que se ... voltasse para a comunidade com a criança mataria as duas. ... Decido. ... A Autora preenche os requisitos legais à adoção e os requisitos do Art. 40 2 42 do Estatuto da Criança e do Adolescente. A autora já possui a guarda judicial da criança, cuidando desta como filha fosse, sendo esta entidade familiar a única conhecida da adotanda. A Magistrada ao analisar feitos dessa natureza deve examinar e resguardar sempre os interesses da criança”

Processo nº .....- ano 2009 – Vara da Infância de Boa Vista-RR


4 - Conclusão

Ao final deste artigo podemos concluir que falta um olhar mais humanizado para nossas crianças e adolescentes que se encontram em total situação de vulnerabilidade, para que somente desta forma deixem de engrossar a imensa estatística de crianças relegadas ao Estado, como se filhos seus fossem.

Não importa o nome que o legislador busque dar: orfanato, abrigo, instituição de acolhimento, casa mãe, não interessa a nomenclatura, o estrago vem sendo feito paulatinamente, as marcas ficarão.

O que de fato importa é que são crianças prisioneiras e “encarceradas”, muitas das vezes sem visitas, à espera de um ato que os traga de volta a vida em sua plenitude.

Por fim, entendo que deve ser, em nome da efetivação dos direitos fundamentais, da dignidade humana, da doutrina da proteção integral e da prioridade absoluta, afastado os excessivos formalismos previstos na norma legal, em especial aqueles insculpidos no § 6º do art. 28 do ECA, garantindo-se com maior celeridade e eficácia uma nova chance à estas crianças e adolescentes que no momento do duplo abandono perdem sua identidade cultural e social de indígenas, devendo o Estado lhes assegurar de imediato o direito a serem inseridos em uma família substituta, garantindo-lhes a chance de um novo recomeço.


Referências

  • Convenção sobre os Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas, de 20.11.1989.

  • Declaração Universal dos Direitos das Crianças – UNICEF, de 20.11.1959.

  • Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA (Lei nº 8.069, de 13.07.1990).

  • Estatuto do Índio (Lei nº 6.001, de 19.12.1973).

  • Convenção 169 da OIT, de 19.04.2004.

  • Resolução nº 304, de 09.08.2000, do CNS - Conselho Nacional de Saúde.

  • SILVA, José Afonso da, Comentário Contextual à Constituição”, ed. Malheiros, 2005.

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Sobre a autora
Denise A. Cavalcanti Calil

Advogada com experiência em Direito de Família e Adoção, com uma das mais conceituadas bancas do Estado de Roraima.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Publicado na revista científica do Instituto Brasileiro de Direito de Familia, n. 26, Mar/Abr. 2018

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