A questão, hoje, pode ser assim respondida: depende do estado em que você se encontra.
Em São Paulo isso é possível. Mesmo assim, a verdade é tenho encontrado certa resistência junto ao cartórios de notas da Capital, que é minha área geográfica de atuação. A impressão é que os próprios advogados especialistas em Direito das Sucessões em São Paulo não estão cientes dessa possibilidade, e desta forma deixam de desafiar o conhecimento dos notários para viabilizar a escritura de inventário em tais circunstâncias. Isso é algo que acarreta prejuízos para todos lados envolvidos: ao Judiciário, que permanece abarrotado com demandas desnecessárias; ao cartório de notas, que não prestará o serviço; e ao herdeiro interessado, que se utiliza desnecessariamente de uma via mais longa para a conclusão do inventário.
Enfim. A questão não é nova.
Uma das primeiras decisões relevantes a respeito, ao menos no Estado de São Paulo, foi proferida em 14 de fevereiro de 2014 pela 2ª Vara de Registros Públicos. Nele decidiu-se que, “tratando-se de testamento já aberto e registrado, sem interesse de menores e fundações ou dissenso entre os herdeiros e legatários, e não tendo sido identificada pelo Juízo que cuidou da abertura e registro do testamento qualquer circunstância que tornasse imprescindível a ação de inventário, não há óbice à lavratura de escritura de inventário extrajudicial, diante da expressa autorização do Juízo competente.”
Entretanto, a Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo analisou novamente o problema em maio daquele mesmo ano (2014), e concluiu pela impossibilidade do procedimento extrajudicial.
Mas situação se alterou em 2016 - vide parecer número 133/2016-E - sob o argumento principal de que jurisdição voluntária, em verdade, não é jurisdição. Nas palavras de Frederico Marques: “Não se trata de atividade jurisdicional, malgrado o nome que ostenta; e, no entender de muitos, é função que pode ser atribuída, com igual nomen juris, a órgãos não judiciários” [1]. Com isso, São Paulo passou a aceitar a criação de um procedimento misto, que num primeiro momento valida o testamento em Vara das Sucessões, verificando seus requisitos essenciais, para depois permitir aos herdeiros a realização do inventário pela via extrajudicial. Foi uma solução interessante.
Ao mesmo tempo, doutrinadores discutiam o problema e chegavam às mesmas conclusões, então materializadas no Enunciado número 600 da VII Jornada de Direito Civil, e no Enunciado número 16, do Instituto Brasileiro de Direito da Família:
“Enunciado 600: Após registrado judicialmente o testamento e sendo todos os interessados capazes e concordes com os seus termos, não havendo conflitos de interesses, é possível que se faça o inventário extrajudicial”.
“Enunciado 16: Mesmo quando houver testamento, sendo todos os interessados capazes e concordes com os seus termos, não havendo conflitos de interesses, é possível que se faça o inventário extrajudicial”.
Mas era preciso solidificar esse entendimento em normas. No Estado de São Paulo a celeuma foi definitivamente encerrada pelo Provimento 37/16 da Corregedoria-Geral de Justiça do TJSP, que alterou o item 129, do Capítulo XIV, das Normas de Serviço da Corregedoria Geral de Justiça, incluindo alguns subitens com o seguinte conteúdo:
"129. Diante da expressa autorização do juízo sucessório competente, nos autos do procedimento de abertura e cumprimento de testamento, sendo todos os interessados capazes e concordes, poderão ser feitos o inventário e a partilha por escritura pública, que constituirá título hábil para o registro imobiliário."
O mesmo aconteceu no Estado do Rio de Janeiro através do Provimento nº 21/2017, que passou a acrescentar quatro parágrafos ao Artigo 297 da Consolidação Normativa do Estado do Rio de Janeiro, sendo o primeiro deles o mais relevante:
“§ 1. Diante da expressa autorização do juízo sucessório competente nos autos da apresentação e cumprimento de testamento, sendo todos os interessados capazes e concordes, poderá fazer-se o inventário e a partilha por escritura pública, a qual constituirá título hábil para o registro.
Em Minas Gerais, entretanto, a situação é um pouco diferente. Não houve, até onde pude verificar, a adoção de procedimento semelhante, mas apenas uma flexibilização no tocante a testamentos que, de toda forma, não teriam qualquer força ou validade. O parágrafo único ao artigo 195 dos atos normativos da Corregedoria-Geral de Justiça do Estado de Minas Gerais (PROVIMENTO Nº 260/CGJ/2013) assim estipula:
“Parágrafo único. É possível a lavratura de escritura pública de inventário e partilha nos casos de testamento revogado, declarado nulo ou caduco ou, ainda, por ordem judicial.”
Uma terceira via foi a adotada pelo Estado do Rio Grande do Sul, que permite em caso de testamento a realização da partilha (veja bem, não do inventário!) por escritura pública, mas exige sua homologação judicial. É o que diz o artigo 619-B do Provimento no 32/2006 da Corregedoria Geral de Justiça do TJRS:
“Art. 619-B - Havendo testamento, e efetuado o registro, o inventário será judicial, mas a partilha de bens poderá ser feita por instrumento público e deverá ser homologada judicialmente de acordo com o artigo 1031 e seguintes do CPC e 2015 do CC.”
Por fim, resta dizer que ainda há estados que não permitem a realização do inventário extrajudicial que contenha testamento, seja qual for a hipótese.
A conclusão é que estamos longe de um tratamento procedimental uniformizado de inventários extrajudiciais com testamento, e o próprio Conselho Nacional de Justiça vem de certa forma se esquivando desse enfrentamento. Seria interessante que tal barreira fosse superada de uma vez, quem sabe com a adoção da solução oferecida pelos Estados do Rio de Janeiro e São Paulo, ou mesmo com uma desburocratização ainda mais relevante.
Ressalto que a questão não é meramente retórica, já que o testamento extrajudicial pode, ao menos teoricamente, ser realizado em qualquer tabelião – vale dizer, em qualquer Estado da Federação – independentemente do domicílio do falecido, do local do óbito ou da localização dos bens. Para os mais detalhistas essa confusão nas regras teria o potencial de ferir o princípio da igualdade, ou mesmo fazer com que os interessados passem a dar preferência a cartórios de um Estado em detrimento de outros.
A uniformização procedimental é algo desejável que traria clareza e evitaria transtornos desnecessários.
[1] MARQUES, José Frederico, Ensaio sobre a Jurisdição Voluntária, Campinas:Millennium, 2000, p. 15