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Atribuição do Ministério Público em mandado de segurança

27/08/2005 às 00:00
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            Em muitas oportunidades, venho preceituando, ao contrário do que muitos manuais clássicos ensinam, a dimensão axiológica do processo civil, com conceitos abertos e indeterminados onde se faz possível a aplicação de tal técnica legislativa, exigindo uma função valorativa do juiz, tal qual LUÍS RECASÉNS SICHES sempre destacou na dupla dimensão circunstancial do positivismo: a lógica do humano e o caráter criador da função judicial [01].

            A idéia é importante para todos os tópicos do direito e não somos órfãos de pensadores de tal magnitude no Brasil, pois o Mestre MIGUEL REALE, a todo momento, indica que "interpretar o direito é trabalho axiológico e não puramente lógico, como se desenrolassem as conseqüências das leis mercê de simples dedução" [02].

            Dessa forma é que é possível tratar de um direito processo civil constitucional, voltando o nosso estudo para os princípios constitucionais que norteiam o Estado Democrático de Direito, a fim de resguardar toda e qualquer ingerência positivista clássica, arraigada em padrões formais que não se sustentam hodiernamente.

            Neste estudo, é importante realizar uma releitura do artigo 10 da Lei n° 1.533, de 31.12.1951 ("Lei do Mandado de Segurança - LMS"), que exige, em todos os processos de mandado de segurança, indiscriminadamente, a participação do Ministério Público.

            À luz da Constituição Federal, a atribuição ministerial só pode se dar (rectius: o órgão do Ministério Público só terá legitimidade e interesse), quando a matéria discutida envolver interesse público considerando a indisponibilidade e abrangência social (artigos 127 e 129 da Constituição Federal) de tal interesse.

            Fácil observar que as digníssimas funções desenvolvidas pelo Ministério Público após o advento da Constituição de 1988 são diversas da que exercia ao tempo em que promulgada a própria LMS. O perfil institucional mudou, passando a atuar com os interesses voltados para a sociedade e a democracia, deixando de lado a mera defesa dos entes públicos com fundamentos até mesmo fascistas.

            Na atual ordem constitucional não mais a Procuradoria da República, por exemplo, realiza a defesa da União (hoje atribuição da Advocacia-Geral da União), nem atua em ações executivas fiscais ou previdenciárias, pois sua função não é apenas a defesa de interesses dos entes públicos personalizados, mas da res publica como um todo.

            É necessário adequar o artigo 10 da LMS à ordem constitucional atual, integrá-lo ao sistema, sem descurar do devido processo legal, economia processual e da própria eficácia das decisões judiciais. Percebe-se que nem todas as hipóteses de mandado de segurança envolverão questões atinentes ao interesse público, mas, muito pelo contrário, questões de interesse individual, disponível e questionado de forma estritamente privada.

            Não que o interesse do particular não seja relevante. Ele o é, mas não tem o condão de trazer em seu bojo questões de ordem pública que justifiquem a atuação ministerial. A obrigatoriedade incondicionada do Ministério Público ser ouvido no tocante ao mérito dos mandados de segurança chama para si situação que não condiz com razoabilidade alguma e é até contraditória: se o contribuinte escolhe o mandado de segurança para discutir eventual compensação de crédito, o Ministério Público compareceria aos autos como custos legis. Se, ao contrário, o contribuinte escolhe alguma ação ordinária para discutir a mesma compensação de crédito, não existirá necessidade de atuação a priori do órgão ministerial.

            A obrigatoriedade de participação do Ministério Público é apenas instrumental, formal, pois faz com que o Parquet atue apenas de acordo com o instrumento processual escolhido, o que vai de encontro aos anseios modernos de efetividade e celeridade processual, bem como às próprias funções ministeriais constitucionalmente destacadas. Talvez quando o artigo 10 da LMS foi criado, em razão do rito exigido, a utilidade da atuação do Ministério Público se justificasse para dar mais credibilidade ou fundamentação à sentença, mas essa conjectura não condiz com a realidade e deve ser descartada, inclusive por desrespeitar o livre convencimento motivado e capacidade do magistrado.

            A atuação do Ministério Público, portanto, não pode ficar à mercê do instrumento escolhido pela parte ou pelos advogados, mas deve se concatenar efetivamente com o interesse envolvido, pelo objeto questionado, como previsto, exemplificativamente em vários dispositivos infraconstitucionais (LC 75/93 – Lei Orgânica do Ministério Público, Lei 4.717/65 – Lei da Ação Popular, Lei n° 7.347/85 – Lei da Ação Civil Pública, Lei 8.069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei n° 8.078/90 – Código de Defesa do Consumidor, art. 82 do Código de Processo Civil etc.).

            O texto constitucional é claro ao legitimar o Ministério Público à defesa dos interesses sociais, coletivos, bem como individuais homogêneos indisponíveis e, no âmbito do artigo 10 do LMS, ao atuar como interveniente na relação processual, está apto a realizar juízo negativo, com fundamentação para tanto, de que o objeto em debate não alberga nenhuma das funções institucionais do órgão ministerial, o que faz com que não haja necessidade daquele órgão, sempre e indistintamente, adentrar no mérito da impetração.

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            Em razão da independência funcional do Ministério Público, não cabe ao juiz analisar se o caso abrange ou não a atuação ministerial no mandado de segurança. Deve, sim, encaminhar os autos com intimação pessoal para que o próprio Parquet estabeleça, motivadamente e em juízo prévio, se a demanda está inserida em interesse público voltado para a abrangência social ou indisponível. Caso negativo esse primeiro juízo, ou seja, negada a presença de interesses compatíveis com as funções ministeriais, deve o Ministério Público devolver os autos ao juiz para que o feito siga sem a sua intervenção, restringindo-se a res in iudicium deducta a litígio estrito entre os postulantes.

            Este é o mesmo entendimento do atual Procurador-Geral da República [03], infelizmente não seguido por muitos promotores e procuradores de Justiça, que insistem em discutir o mérito da impetração mesmo quando não se trata de interesse indisponível e público. Também a jurisprudência do Egrégio Superior Tribunal de Justiça e de tribunais locais, como o Egrégio Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, não abraça este entendimento, declarando nulas as sentenças proferidas sem a intervenção "obrigatória" do Ministério Público. Pode-se verificar, todavia, um "abrandamento" da regra do artigo 10 da LMS em julgados como o presente:

            "A INTERVENÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO EM GRAU DE APELAÇÃO, SEM ARGÜIR NULIDADE NEM PREJUÍZO, SUPRE A FALTA DE INTERVENÇÃO DO PARQUET NO PRIMEIRO GRAU DE JURISDIÇÃO. PRECEDENTES. (TJDFT; 2ª Turma; Rel.: Des. Carmelita Brasil; APELAÇÃO CÍVEL 20040110245177; j.: 25.11.2004)

            Infelizmente não se verifica a correta releitura do artigo 10 da LMS, de modo a torná-lo compatível com a atual ordem constitucional. De modo a ilustrar o que aqui se defende, para ficar claro que não se trata de um posicionamento utópico do autor, ou alguma ilusão exacerbada, vale registrar que o Egrégio Tribunal Regional Federal da 4ª Região, em algumas oportunidades, ressaltou que não há necessidade de exame do mérito de mandado de segurança, pelo Ministério Público, quando não se trata de interesse público ou indisponível. Confira-se a título ilustrativo:

            "AGRAVO DE INSTRUMENTO. MANDADO DE SEGURANÇA. INTERVENÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. AUSÊNCIA DE INTERESSE PÚBLICO. DESNECESSIDADE DE EXAME DO MÉRITO. [...]

            O representante do Ministério Público, entretanto, não está obrigado a opinar sobre o mérito da causa, naquelas ações em que não evidencie a presença de interesse público a justificar a intervenção do parquet." (TRF-4ª Região; AG 19990401128755-6/SC; Rel.: Des. Fed. Luciane Corrêa)

            Em conclusão, realmente o Ministério Público deveria, em cada caso de mandado de segurança, vislumbrar se a controvérsia envolve (i) defesa da ordem jurídica, como a normalidade do funcionamento das instituições democráticas; (ii) o regime democrático; (iii) interesses sociais; (iv) interesses indisponíveis, enfim...interesses públicos que justifiquem a atuação do Ministério Público nos moldes da sua função constitucional.


Notas

            01

passim. SICHES, Luís Recaséns. Tratado General de Filosofia del Derecho. México: Porruna, 1959.

            02

REALE, Miguel. Filosofia do Direito. São Paulo: Saraiva, 1983. p. 252.

            03

Exmo. Sr. Dr. Cláudio Lemos Fonteles, parecer PGR 6599-2003-91.
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Sobre o autor
Frederico do Valle Abreu

advogado em Brasília (DF), associado a Valle Abreu, Mello e Silva Advogados, pós-graduado em Direito Processual Civil pelo ICAT/AEUDF

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ABREU, Frederico Valle. Atribuição do Ministério Público em mandado de segurança. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 785, 27 ago. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7197. Acesso em: 23 dez. 2024.

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