O processo disciplinar é utilizado pela burocracia sem compromisso técnico como sendo um pacote de medidas a serem adotadas quando há um incidente envolvendo funcionário. Uma estrutura administrativa profissional, entretanto, divide com clareza os diversos expedientes que fazem parte de um universo maior, o Direito Disciplinar, ou o Direito Administrativo Disciplinar como preferem outros autores, do porte de Sebastião José Lessa.
Para facilidade didática, é recomendável imaginar o Direito Disciplinar como sendo um grande círculo, dentro do qual há vários instrumentos, todos voltados a enfrentar às irregularidades nos serviços públicos. Os dois mais conhecidos são a sindicância e o processo disciplinar. Todavia, o conteúdo não está completo. Assim como o processo disciplinar não tem a dimensão genérica, englobando tudo, o Direito Disciplinar estará incompleto se o seu círculo for limitado a apenas duas ferramentas. A representação ideal prevê outras figuras, a saber:
- Prevenção
- Correção
- Averiguação
- Investigação Preliminar
- Ajustamento de Conduta
- Câmaras de mediação e conciliação de incidentes funcionais
Desta forma, não se pode tratar a matéria disciplinar no estreito corredor de um processo administrativo ou de uma sindicância, que seja. As autoridades administrativas, no exercício do poder-dever de controle, devem ter a ampla visão do sistema.
O sistema
A administração pública, formatada no modelo napoleônico, obedece ao princípio da hierarquia, que se expressa:
- Na hierarquia dos órgãos;
- Na hierarquia das normas;
- Na hierarquia dos agentes;
- Na hierarquia salarial.
A palavra “disciplina”, por sua vez, significa respeito às regras gerais. Funcionário disciplinado, portanto, é aquele que assume postura de obediência ao regramento feito para todos, o que equivale respeitar aos órgãos superiores, aos agentes de posição acima e às normas, na escala da respectiva importância.
Especificamente em relação à hierarquia funcional, Manuel Leal Henriques[1], Procurador-Geral da República Adjunto, em Portugal, escreve:
A hierarquia, pedra de toque nas relações entre os serviços e os servidores, consubstancia-se, assim, na subordinação de um funcionário ou agente de categoria inferior relativamente a outro de categoria superior dentro do mesmo serviço. Ou seja, entre quem tem o dever de obedecer (subalterno) e quem tem o dever de dirigir (superior).
O controle da disciplina está associado, então, à preservação da hierarquia. Pressupõe-se que, preservando a hierarquia, estará resguardado o interesse público porque a estrutura administrativa atuará a contento e os resultados serão alcançados. Mas como as pessoas não são máquinas que podem ser programadas, o modelo – que é perfeito na formatação – não funciona com alguns indivíduos. Há quem não se ajuste à disciplina. São espíritos que não se moldam às regras do serviço público, ainda que as conheçam.
Finalidade
O controle da disciplina, assim como todos os atos e ações administrativas, está associado a uma finalidade útil e, obviamente, que esteja em harmonia com o interesse público. Nesse compasso, é relevante pontuar que a finalidade específica da ação disciplinar se divide em dois objetos:
a) melhorar o funcionário;
b) melhorar o serviço.
Sempre que possível – e geralmente é possível –, os gestores devem buscar uma solução que seja imediata e que alcance esse resultado sem provocar gastos e desgastes. Tendo-se em consideração que a maioria dos agentes públicos não é composta por pessoas de má índole, é altamente provável que se consiga melhorar tanto o funcionário quanto o serviço valendo-se de meios não processuais, atingindo plenamente a finalidade do controle.
Entretanto, há perfis que são, pela natureza, incompatíveis com a disciplina. Em relação a esses não se consegue a melhoria. Ora, não sendo possível melhorar a pessoa, tenta-se, então, salvar a outra metade do propósito: melhora-se o serviço com a retirada desse corpo estranho.
O raciocínio é o mesmo da oncologia. Não sendo de sucesso a eliminação do câncer enquanto ele está adstrito a um ponto do organismo, os médicos adotam a cirurgia, extirpando o órgão. Neste caso, não conseguindo salvar a tudo (órgão e pessoa), a medicina busca salvar o indivíduo, ainda que este fique sem aquela parte do corpo.
Ora, se a administração, valendo-se de métodos lógicos, não logra êxito na recuperação do funcionário, terá que aplicar a solução extrema, invasiva, cirúrgica, cortando esse sujeito da relação funcional. Salvará, no caso, a regularidade do serviço, que poderia ser comprometida com a ação de um agente nocivo. Ou seja, inviabilizada a recuperação do todo, preserva-se pelo menos o principal.
Desvios de finalidade
Visto que o controle da disciplina está associado a um foco, é preciso reafirmar que essa finalidade deve ser útil; precisa ter relação com o efetivo interesse público. Há situações, entretanto, em que a estrutura do controle é mobilizada em patentes e grosseiros desvios. Por exemplo:
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Cumprir metas de corregedorias – há casos em que, para mostrar-se eficiente, são estabelecidas até metas de punição. Uma corregedoria é, antes de tudo, como o nome sugere, um órgão de correção; e a correção raramente é alcançada pela via punitiva. A aplicação de pena é o último dos recursos em uma estrutura administrativa profissional. Note-se, neste particular, todavia, que, por razões que não são aqui objeto de análise, alguns agentes controladores acreditam que serão mais respeitados nos seus ofícios pelo número de cabeças que conseguiram decepar ao longo do caminho.
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Atender egos feridos – os expedientes do controle da disciplina são utilizados para a singular satisfação de narcisistas destrutivos e doentes morais, que não conseguem conviver com contrariedades nem com o talento dos outros. Não é incomum que um processo disciplinar seja instaurado estritamente para satisfazer a esses indivíduos fracos de alma.
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Suprir deficiências de chefias – é o caso da mobilização indevida da estrutura correcional e dos instrumentos sancionadores da administração em substituição ao dever que os chefes têm de, na ponta, exercerem o controle sobre os seus subordinados. É fácil constatar que um considerável número de ocorrências deve-se à absoluta ausência das chefias imediatas no momento em que deveriam exercer a supervisão funcional.
Em outros espaços de estudo, deve-se examinar com minudência possível essa nova visão do controle da disciplina, com ênfase para diferença entre administração de incidentes disciplinares e aplicação de sanções. Onde entra a ciência da Administração e onde entra o poder repressor do Estado. Fica pontuado, entretanto, que o controle da disciplina não é feito unicamente por instrumentos sancionadores. A administração deve implantar uma política de controle, privilegiando a prevenção e a correção, como prevê a Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei n° 101/2000):
Art. 1°. (...)
§ 1° - A responsabilidade na gestão fiscal pressupõe a ação planejada e transparente, em que se previnem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas (...).
É certo que têm impacto nas contas públicas:
- custo com sindicâncias inócuas;
- custo com processos que não alcançam a finalidade;
- custo com reintegração de servidores quando os processos resultam fulminados pelo controle judicial.
Sob esse fundamento, da qualidade e da responsabilidade da gestão, os administradores têm o dever de organizar políticas de prevenção e de correção. Política, no caso, significa pensar antes. Ao invés da reação simplista de instaurar repetidas sindicâncias e processos disciplinares após os fatos, o espírito da lei propõe que os gestores planejem medidas para evitar que os fatos aconteçam, ou, pelo menos, para minorar as suas incidências. E em acontecendo, esses profissionais com tamanha responsabilidade perante o quadro funcional, a instituição e os administrados, devem conhecer os recursos alternativos de solução que, em pelo menos 70% dos casos alcançam a finalidade do controle, dispensando os complexos e vetustos expedientes da sindicância e do processo disciplinar.
Léo da Silva Alves, conferencista com trabalhos na América do Sul, Europa e África, é autor de 48 livros sobre responsabilidade de agentes públicos; há mais de 25 anos atua no Direito Disciplinar como advogado e como professor junto a Escolas de Governo, Escolas de Magistratura e Academias de Polícia. ([email protected])
[1] “Procedimento disciplinar” – Ed. Rei dos Livros, Lisboa, 1989 – p. 25.