1.O presente artigo nasceu da impetração de um mandado de segurança em favor de servidora pública federal lotada em Cidade distante mais de 4.000 Km de Brasília que tivera seu marido – também servidor público federal – transferido dessa mencionada Cidade para Brasília e que solicitara, por essa razão, com esteio no § 2º do Art. 84 da Lei 8.112/90, licença para acompanhar cônjuge com lotação provisória em Brasília.
2.O pleito da servidora foi indeferido com a fundamentação de que o caso não se enquadrava na hipótese permissiva do § 2º do Art. 84 da Lei 8.112/90. Essa decisão, em nosso sentir, desafiava a impetração da ordem de segurança, pois descansava sua justificativa em uma leitura restritiva do § 2º do Art. 84 da Lei 8.112/90 e divorciada dos princípios constitucionais da Dignidade da Pessoa Humana, da Unidade Familiar, do Estado Democrático de Direito e da Legalidade Administrativa.
3.Com efeito, o princípio constitucional da legalidade administrativa foi desrespeitado quando de maneira equivocada atribuiu-se a esse referido dispositivo legal uma interpretação amesquinhadora dos interesses do servidor público.
4.Dizem os cogitados dispositivos da Lei 8.112/90:
"Art. 84. Poderá ser concedida licença ao servidor para acompanhar cônjuge ou companheiro que foi deslocado para outro ponto do território nacional, para o exterior ou para o exercício de mandato eletivo dos Poderes Executivo ou Legislativo.
(...)
§ 2º. No deslocamento de servidor cujo cônjuge ou companheiro também seja servidor público civil ou militar, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e Municípios, poderá haver exercício provisório em órgão ou entidade da Administração Federal direta, autárquica ou fundacional, desde que para o exercício de atividade compatível com o seu cargo."
5.A decisão atacada por aquele mandado de segurança se fiou em um parecer administrativo que alicerçou-se no vocábulo PODERÁ contido nos referidos dispositivos legais e no fato de que a remoção do cônjuge da Impetrante se deu a pedido e não de ofício ou no interesse da administração pública.
6.Na perspectiva do parecer, acatada naquele momento pela autoridade coatora, o vocábulo "poderá" sinaliza uma mera faculdade da Administração. Essa perspectiva, com todo respeito, não encontra respaldo em um Estado que se diz e que se quer Democrático de Direito. Tampouco é ressonância do princípio da legalidade administrativa.
7.No caput do Art. 84 da referida Lei consta o vocábulo "poderá" e em hipótese alguma pode-se inferir que se trata de uma faculdade discricionária da administração a concessão da mencionada licença de acompanhamento do cônjuge ou companheiro. Isso porque uma vez realizados os pressupostos fáticos, incide para o servidor o direito de licenciar-se, desde que requeira. Uma vez requerida, deve a Administração conceder a licença.
8.No § 2º desse citado artigo legal, o vocábulo "poderá" também não pode ser lido como uma mera faculdade administrativa. Ao contrário, deve ter a mesma coerência interpretativa. Ou seja, uma vez realizados os pressupostos fáticos, tem o servidor público o direito de licenciar-se. O Estado Democrático de Direito não se compagina com meras faculdades ou discricionariedades, isso é típico de Estados Autoritários, pesadelo que felizmente está cada vez mais distante de nossa realidade.
9.Pois bem, quais são esses pressupostos fáticos? Basicamente três. Primus: o deslocamento do cônjuge que também seja servidor público; Secundus: a possibilidade de exercício de atividade compatível com o seu cargo; Tertius: o requerimento de licença.
10.No caso sob exame, esses pressupostos estavam preenchidos, conforme sobejamente demonstrado e comprovado. Houve o deslocamento do cônjuge da Impetrante. Há a possibilidade de exercício de atividade compatível com o seu cargo, que pode ser exercida no Distrito Federal. E por fim, houve o requerimento administrativo de licença que restou indeferido e cujo indeferimento foi atacado judicialmente.
11.Em relação ao princípio da legalidade administrativa, merece leitura entretrecho do parecer administrativo que serviu de supedâneo para a decisão combatida:
"Assim, conquanto não tenha o texto legal ínsito no art. 84 da Lei nº 8.112/90 se reportado aos motivos do deslocamento do cônjuge, não se pode olvidar, igualmente, que o mesmo estabelece uma faculdade da Administração e não uma obrigação na concessão de licença para acompanhar cônjuge com lotação provisória."
12.Esse entendimento contido no parecer reforça a tese central deste artigo – daquela ação -, em vez de menoscabá-la. Com efeito, a Lei não condiciona o direito de licenciar-se em face dos motivos de deslocamento do cônjuge. Uma vez concedida a transferência de um dos cônjuges, independentemente dos motivos ensejadores, pode o outro cônjuge pleitear a licença contida no referido § 2º do Art. 84 da Lei 8.112/90.
13.Quanto à ilação de que não se pode olvidar o caráter de mera faculdade administrativa, como entende o parecer, em relação à concessão de licença, isso merece uma adequada interpretação. O que a Lei dispõe é que realizados os pressupostos poderá a Administração conceder as licenças. Ora, o vocábulo "poderá" é condicionado pela realização dos pressupostos. Uma vez realizados, não há motivo para a não concessão da licença. Essa é a leitura que permite a margem discricionária ou a faculdade administrativa, ou seja, se os pressupostos fáticos não se realizaram a administração pode negar a licença, salvo justo motivo.
14.Na presente controvérsia, a Administração não demonstrou justo motivo para indeferir o pedido de licença da Impetrante. Nesse caso, o justo motivo seria demonstrar que no Distrito Federal não poderia a servidora exercer o seu cargo público ou que na Cidade de origem haveria um amesquinhamento substantivo da prestação do serviço público. Nada disso foi demonstrado pela Administração. E não foi porque esses que seriam justos motivos para o indeferimento não são verdadeiros. Ou seja, havia a possibilidade de a servidora exercer o seu múnus público no Distrito Federal e não haveria um amesquinhamento substantivo da prestação do serviço público na Cidade originária.
15.O administrador, com esteio no parecer já mencionado, simplesmente se fiou numa perspectiva discricionária da concessão da licença, a partir de uma leitura restritiva e, com todo respeito, pedestre da Lei. Em outras palavras, é como se a Administração dissesse para o servidor: não concedo a licença porque não quero. Isso nunca foi discricionariedade e sim manifesta arbitrariedade administrativa. Indaga-se: onde ficam o Estado Democrático de Direito, a Legalidade e a Impessoalidade administrativas? Soterrados sob os escombros de uma visão autoritária da administração pública.
16.Se o princípios constitucionais do Estado Democrático de Direito e da Legalidade Administrativa foram maltratados pelo ato que indeferiu o pedido de licença, não menos agredidos foram os princípios da Dignidade da Pessoa Humana e da Unidade Familiar.
17.Com efeito, além dos fundamentos legais para respaldar o pleito de licença, a servidora, em seu requerimento administrativo, invocou a proteção constitucional à unidade familiar. Reza o caput do Art. 226 da Constituição da República: "A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado". A Cidade onde residia a Impetrante, dista mais de 4.000 km de Brasília, onde residia o seu marido desde a autorização da transferência dele.
18.Para justificar o indeferimento da licença e combater a invocação da proteção constitucional da unidade familiar, o parecer foi buscar apoio em entendimento judicial que entende que não se deve invocar a proteção à família, como primado sobre os interesses públicos e que o princípio constitucional de proteção à família é por demais vago e amplo, bem como o fato de que essa proteção somente se sucede em face de situação familiar alterada no interesse da administração e, por fim, que no caso em tela, o deslocamento ocorreu no interesse do cônjuge varão, e não no interesse público. Por conseqüência, segundo o parecer, a proteção constitucional da unidade familiar não emprestaria legitimidade ao pedido de licença.
19.Com todo o respeito, essa compreensão do princípio constitucional da unidade familiar, exposta no parecer, foi, no mínimo, infeliz, pois malbaratava dois dos mais caros e fundamentais valores protegidos pela Super Lei: a dignidade da pessoa humana e a segurança existencial e afetiva proporcionada pela vida em família.
20.A compreensão de que o princípio constitucional da proteção à família é por demais vaga e ampla não é de todo equivocada. A doutrina constitucional tem agasalhado a tese de que as normas constitucionais se manifestam ora como regras ora como princípios. Os princípios constitucionais são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes, para tanto, os princípios são mandatos de otimização que estão caracterizados pelo fato de que podem ser cumpridos em diferentes graus, dentro de uma reserva do possível. Já as regras constitucionais são as normas que uma vez verificados determinados pressupostos, exigem, proíbem ou permitem algo em termos definitivos.
21.Nesse sentido, o princípio constitucional da proteção da unidade familiar requer o preenchimento dos pressupostos fáticos e jurídicos para sua realização normativa. No caso presente, quando a Lei permite que um cônjuge acompanhe o outro, por meio de licença e condiciona essa licença a realização de determinados pressupostos e são esses pressupostos realizados está o legislador concretizando o princípio constitucional da unidade familiar. Assim, não pode Administração Pública arbitrariamente, invocando uma suposta discricionariedade, inviabilizar a eficácia normativa desse mencionado princípio da unidade familiar.
22.Nada obstante, a alegação contida no aludido parecer de que o pedido de transferência do cônjuge varão foi em benefício próprio e não no interesse público e que foi o próprio cônjuge que deu causa ao distanciamento não deve ser sequer considerada.
23.Em primeiro lugar não se deve confundir o interesse administrativo com o interesse público. Não há maior interesse público que o bem-estar de todas as pessoas. Não há maior interesse público que a preservação das famílias. Isso pode até não ser relevante para o administrador – ou para alguns administradores – mas para a sociedade esse é o interesse capital. Por isso, pode até ser que não haja interesse administrativo, mas dizer que não há interesse público é acreditar que só há interesse público onde houver interesse administrativo. Essa é uma concepção que não se enquadra no paradigma de um Estado Democrático de Direito, onde a sociedade e os indivíduos não são reféns do Estado e nem estão a serviço dele. Ao contrário, o Estado existe para servir à sociedade e aos indivíduos, sob pena de perder o seu sentido, especialmente em uma democracia.
24.Quanto ao fato de que o distanciamento do casal se deveu por vontade individual do cônjuge varão que pediu a sua transferência e que por isso não tenha o cônjuge virago – a servidora – o direito à licença, pois a causa da desunião familiar é do próprio casal ou de um dos cônjuges e não da Administração, poderia levar a uma compreensão leviana e maldosa da situação familiar e do casamento da Impetrante. Esse tipo de argumento deve ser totalmente desprezado.
25.Ora, se a legislação permite que o servidor público solicite sua transferência e se a Administração a concede, sem exigir a outorga ou consentimento de outra pessoa, ainda que seja cônjuge, companheiro, filho ou dependente, não pode a Administração (Estado) usar essa situação para embaraçar, posteriormente, os direitos de outrem. Não se está discutindo o direito do cônjuge varão de se transferir, mas sim o direito do cônjuge virago – a servidora – de ter a unidade de sua família preservada. Não pode a Administração fazer quaisquer outras ilações, especialmente se nelas há uma certa maledicência. Assim, é falsa a afirmativa de que alteração da situação familiar não se deveu por ato da Administração. É falsa porque o casal hoje estava fisicamente separado e a sua família desunida graças a atuação do Estado que o transferira. O que pretendeu a servidora, com respaldo legal e constitucional, é permanecer junto ao seu marido.
26.Como dito, o entendimento exposto no parecer administrativo amesquinha os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da unidade familiar e diminui o valor supremo da segurança existencial e afetiva proporcionada pela família. Ao decidir, de maneira arbitrária, que não poderia a servidora licenciar-se para estar junto de seu esposo, de sua família, violou o Administrador esses sagrados interesses individual e público.
27.Em reforço desse princípio constitucional da proteção especial da família, tenha-se a seguinte ementa de acórdão que reflete a jurisprudência do Egrégio Tribunal Federal da 1ª Região:
"ADMINISTRATIVO – SERVIDOR PÚBLICO – LICENÇA PARA ACOMPANHAMENTO DE CÔNJUGE – PAR. 2º DO ART. 84 DA LEI 8.112/90 – ART. 226 DA CF/88 – IMPROVIMENTO.
1.Comprovado nos autos o deslocamento do esposo da Impetrante, que a Lei não exige seja ex-officio, como quis fazer crer a Apelante.
2.A proteção constitucional à família se encontra acima do interesse da Administração (Art. 226 da CF/88).
3.Apelação e remessa oficial improvidas.
4.Sentença que se mantém."
(Apelação em Mandado de Segurança nº 1997.01.00.032584-0/DF. Relator Juiz Catão Alves. Relator Convocado Juiz Francisco de Assis Betti. DJU de 29.05.2000, p. 206)
28.Como se vê da leitura da ementa acima transcrita, a proteção constitucional à família é um interesse público superior ao interesse administrativo.
29.Na situação objeto, esses interesses não se chocam, pois a Administração não demonstrou a incompatibilidade do exercício do cargo na Cidade originária em relação ao cargo no Distrito Federal ou que haveria prejuízo irreparável para a origem, únicas hipóteses que poderiam obstruir o direito de licenciar-se da servidora.
30.A liminar foi requerida com estribo nas seguintes razões.
31.Nos termos dos incisos XXXV e LXIX do art. 5º da Constituição República e do inciso II art. 7º da Lei 1533/51, estão presentes os pressupostos para a concessão da medida liminar: o perigo na demora e a fumaça do bom direito.
32.Em relação à fumaça do bom direito, como se infere da leitura da petição, o ato do Administrador que indeferiu o pedido da servidora, fundado exclusivamente numa equivocada interpretação do § 2º do Art. 84 da Lei 8.112/90, e desprezando os princípios constitucionais do Estado Democrático de Direito, da Legalidade e lmpessoalidade Administrativas, da Dignidade da Pessoa Humana e da Unidade Familiar, com o menoscabo do valor supremo da segurança existencial e afetiva proporcionada pela vida em família, merece ser reformado judicialmente.
33.Quanto ao perigo da demora, bastou dizer que havia mais de 3 meses que o cônjuge varão se afastara da Cidade onde residia com a esposa e passou a residir em Brasília com gravíssimos danos à unidade familiar e à segurança existencial e afetiva da servidora que se encontrava segregada do convívio com seu esposo, sendo inadmissível que o próprio Estado que, por meio de sua Constituição, elege a família como base da sociedade, a merecer sua proteção especial, seja o grande empecilho para que o casal possa conviver e realizar-se na plenitude do matrimônio. A demora na prestação jurisdicional pode trazer abalos maiores e sofrimentos indizíveis a esse jovem casal, especialmente a Impetrante, pois encontra-se escoteira, sem a companhia de seu esposo. O trâmite do processo administrativo que resultou em ilegítimo indeferimento de sua licença já causou transtornos suficientes que a Justiça certamente não coonestará.
A liminar foi concedida. Até o presente não houve julgamento de mérito.