"Se não tentarmos o impossível, seremos condenados a afrontar o inconcebível."
(Escrito, em 1968, nos muros de Paris por jovens revolucionários)
1 "EMBRIÃO" COMO UMA ESPÉCIE DA ACEPÇÃO "NASCITURO"
Diz o Código Civil de 2002 em seu art. 2º que "[...] a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro". Ainda que as correntes doutrinárias que tratam do início da personalidade natural (natalista; da personalidade condicional ou concepcionista) divirjam acerca da natureza jurídica do nascituro, não há polêmicas sobre a acepção desta palavra.
De Plácido e SILVA (1984, p. 228) esclarece o termo nascituro como: "Derivado do latim nasciturus, particípio passado de nasci, quer precisamente indicar aquele que há de nascer. [...] Nascituro tem morituro como antítese."
Cristiano Chaves de FARIAS (2003, p. 150) ratifica: "Nascituro é palavra derivada do latim nasciturus, significando aquele que deverá nascer, que está por nascer". Limongi FRANÇA (apud AMARAL, 2003, p. 222) também registra que "é o que está por nascer, mas já concebido no ventre materno".
Até a expressão conceptus, sed nondum natus (concebido, mas ainda não nascido), à qual dá-se o sinônimo de feto, é citada por Pontes de MIRANDA (apud CALDAS, 1985, p. 61) de forma a poder substituir concebido por nascituro: "A falta de criança que nascesse viva apenas demonstrou não ter tido eficácia a disposição do testador a favor do conceptus, sed nondum natus."
De fato, não teria fundamento delongas ou polêmicas em torno de algo que não caiu na nuvem de dúvidas que cobre o referido art. 2º. Enquanto o dispositivo não se fez esclarecer (mesmo depois de tantos debates suscitados na vigência do Código Civil de 1916) sobre se o nascituro é sujeito de direitos ou se ali foram postos a salvo direitos sem sujeito (como defendem os natalistas), foi extremamente claro quanto à expressão desde a concepção.
Destarte tem-se um nascituro desde o momento da junção dos gametas feminino e masculino até a extração completa deste "produto da concepção" no momento do parto, onde se evidenciará um neonato ou recém-nascido, ou então um natimorto. Independente da evidência do nascimento, enquanto no útero estiver, o conceptus é um nascituro.
Antes mesmo do Código Civil de 1916, que também trazia a expressão desde a concepção, já se tinha este esclarecimento em torno da palavra em análise. Em Roma, as expressões nasciturus pro jam nato habetur si de ejus commodo agitur (MONTEIRO, 2003, p. 64) e conceptus pro jam nato habetur, quoties de eius commodo agitur (SILVA, 1984, p. 228) eram igualmente entendidas, sendo traduzidas da mesma forma; de modo que nasciturus e conceptus são vocábulos equivalentes. Significa, em termos jurídicos, o ser humano já concebido, cujo nascimento se espera como fato futuro e certo.
Em tratamento idêntico, o Código Penal não faz nenhuma ressalva acerca do lapso temporal que deve ser observado na gestação para que a sua interrupção provocada seja aborto. Desta forma, desde o momento em que há gravidez, sua intencional interrupção configura este crime. Se há uma expectativa de direito tutelável ou um direito propriamente dito (direito à vida), é indiferente para este entendimento.
Assim, existe, para qualquer corrente doutrinária e para uma ou outra codificação, uma série de denominações ovo ou zigoto, embrião e feto que designam o desenvolvimento do mesmo ser, a que se convencionou chamar nascituro. Ele é visualizado como tal pelo ordenamento jurídico desde quando foi gerado até o momento do nascimento; desde o surgimento da vida (com a concepção) já se tem o nascituro. É o que está implícito em muitas assertivas doutrinárias: "Independentemente de se reconhecer o atributo da personalidade jurídica, o fato é que seria um absurdo resguardar direitos desde o surgimento da vida intra-uterina se não se autorizasse a proteção do nascituro direito à vida para que justamente pudesse usufruir tais direitos". (GAGLIANO-PAMPLONA, 2002, p.93)
Embrião é uma das acepções da palavra nascituro. Mas, e se esse embrião fosse qualificado? Deixaria ele de ser o que é? Embrião laboratorial: eis o adjetivo. Fazendo-se um corte no desenvolvimento do ser concebido exatamente nesta fase, tanto o embrião desenvolvido a partir da concepção em útero materno como o embrião gerado pela concepção em laboratório seriam idênticos em formação e potencialidade, apesar de a "viabilidade" do segundo só existir com a sua implantação no útero. Isso o desqualifica como embrião? Distancia-o da gênese humana? Entendemos que não.
Há, contudo, quem defenda não serem os embriões criopreservados ainda nascituro crendo que: "Somente após a implantação do embrião, a chamada nidação no útero materno, iniciar-se-ia a gravidez ou gestação propriamente dita e o embrião passaria a ser considerado nascituro" (BARRETO, 2004, @).
2 EMBRIÃO LABORATORIAL: CÉLULA, RES OU VIDA?
Se já não há consenso nem no âmbito jurídico, nem no âmbito científico sobre o que seria um embrião, o que se dizer do embrião excedentário? Embora a sua fertilização tenha sido uma situação provocada pela Ciência, a existência deste embrião já independe de qualquer esforço humano. A Ciência só pôde facilitar a fusão do espermatozóide e do óvulo, ela ainda não pode simular a existência de um embrião em uma simples proveta e nem muito menos dispensar a fusão daquelas células germinativas para a sua obtenção.
Assim, o resultado de uma FIV não é um "embrião científico", um embrião fabricado, e sim um embrião que poderia ter se formado no útero materno, contendo as mesmas especificações genéticas, se não houvesse nenhuma impossibilidade orgânica para isso. São o mesmo embrião e o dilema também é o mesmo: quem ou o que é o embrião?
O entendimento de que o embrião ainda é parte do organismo materno, das vísceras da mãe, é o que deu vazão à corrente natalista e tem fundamento no Direito Romano: Partus enim, antequam edatur, mulieris portio est, vel viscerum (o parto, antes que seja dada à luz, é porção da mulher ou de suas vísceras). Por ser alimentado pelo sangue do corpo materno, na ótica desta corrente, o embrião não seria outra coisa além de parte deste corpo do qual depende para existir.
Todavia, ainda que o embrião dependa dos nutrientes colhidos no organismo materno e que só neste possa se desenvolver até o nascimento, parece ser inconcebível propagar que ele seja mera parte do corpo da mãe. Todas as células somáticas fazem parte do organismo humano e o compõem, bem como os próprios gametas feminino ou masculino; a essas células, é inequívoca a referência "parte do corpo", porquanto, a grosso modo, elas são o corpo.
Em contrapartida, o embrião não é uma unidade celular existente em qualquer organismo feminino. Uma mulher não pode ter "embriões" em si pelo mesmo motivo que tem tecidos, órgãos, hormônios e vísceras. É condição sine qua non que o óvulo tenha sido fecundado por um espermatozóide para que dê origem ao embrião, por isso dizer que o embrião é parte das vísceras da mãe é se mostrar desconhecedor deste processo biológico tão simples e inteligível em sua visualização, mas tão complexo e inexplicável no seu potencial.
Deste entendimento, pode-se inferir um questionamento: como a parte de um corpo humano poderia desprender-se dele e, num ato súbito e quase mágico, ganhar vida? Isso é o mesmo que acreditar que uma perna amputada continuaria andando e viveria independente do corpo depois de nele ter se desenvolvido.
A vida humana é um processo ou algo automático que decorre do simples inflar dos pulmões do neonato? E o que se dizer dos movimentos feitos pelo feto; do seu desenvolvimento; da sua autonomia genética; dos seus batimentos cardíacos? Posicionando-se dessa forma, está a se tratar dele como sendo uma espécie de "célula adquirida" pela mulher quando gestante ou como sendo um "órgão pós-constituído"; no entanto ainda chamam-no embrião, e não "célula" ou "órgão".
Não fosse evidente que o nascituro é um ser vivo, não seria usada a expressão natimorto (nascido morto) para o feto retirado já sem vida do corpo materno. Como se diria "nascido morto" para algo que nunca viveu? Como entender, por exemplo, a "morte" de uma pedra ou de qualquer outra matéria bruta, inanimada, sem vida? Ou, ainda que ele seja parte das vísceras de um ser vivo, como se referir a esta parte, desconectada do corpo, como sendo viva ou morta depois do seu desprendimento? Certamente, a lógica e a coerência impõem que seja vista vida no nascituro:
Os mais recentes dados da biologia têm confirmado nosso posicionamento ao demonstrarem que, com a penetração do óvulo pelo espermatozóide, surge uma nova vida, distinta da daqueles que lhe deu origem, pois o embrião, a partir desse momento, passa a ser titular de um patrimônio genético único. (DINIZ, 2000, p. 427)
O embrião laboratorial, contudo, não é abarcado por essa discussão. Aliás, tendo ela se originado no próprio Direito Romano, não haveria mesmo como isso ocorrer. Ele é fruto de uma fecundação extracorpórea, já não pode ser confundido com "vísceras". Porém, se esta designação já o reduziria à mera condição de "organela de um corpo vivo", a conotação como res o reduz a algo que não tem a menor conexão com a vida humana: um objeto cercado de interesses e especulações. Essa confusão de designações desnatura aquilo que já foi dito por Kant: "o ser humano é digno, as coisas são úteis".
Questão extremamente controvertida é a que se refere ao embrião como sujeito de direito, não tanto ao embrião in vivo ou in anima nobile até porque este é um nascituro por definição consensual da biologia, da ética e do Direito , senão ao embrião in vitro, considerado pela corrente genético-evolucionista como simples "material" biológico humano, como objeto digno no máximo, de tratamento respeitoso, redutível a mera coisa do mundo vegetal ou mineral. (BARRETO, 2004, @)
A ansiedade por ter ao menos um filho falseia como milagrosas as atitudes que menosprezam um direito que vai além do direito à descendência ou direito à concepção, que é o direito à vida. Ávidos por terem um filho "biológico", os casais não têm mais pensado na adoção como primeira possibilidade contra a sentença da infertilidade.
Contudo, como as técnicas de fertilização in vitro são delicadas e com uma margem de ineficácia considerável, a estimulação hormonal para a hiperovulação é uma porta para a obtenção de vários embriões, que são a esperança de que, pelo menos em alguma tentativa, o esperado filho chegará. Congelando os embriões que não foram utilizados, o casal terá uma significativa redução de custos e a própria mulher não terá de se expor novamente aos efeitos da dosagem exagerada dos hormônios.
Há, porém, uma gritante necessidade de se restringir o número de embriões fecundados em laboratório, compatibilizando o êxito da procriação e a valorização da vida humana e impedindo a "utilização" desses embriões "[...] como se fossem objetos de consumo ou meros instrumentos a justificar o desejo dos casais de terem filhos [...]." (FERREIRA, 2002, @).
Para uma sociedade essencialmente patrimonialista, o que tem de mais em se "desperdiçar" embriões pré-implantatórios congelados? São embriões. Congelados. A criopreservação ou congelamento dos embriões (a um temperatura de -196° C) tem como escopo possibilitar que estes sejam submetidos ao exame de biopsia, para que seja verificado se eles estão ou não vivos; além da já mencionada facilidade para novas tentativas.
A preservação pelo congelamento se dá em nitrogênio líquido, e é o glicerol (substância crioprotetora) o responsável pelo não estilhaçamento do embrião. Por isso, o casal pode recorrer a estes embriões congelados (que, para serem utilizados, são aquecidos) até alcançar a primeira idealização ou para aumentar a família.
Mas ele pode recorrer, e não deve, porquanto não há nada que o obrigue a gerar todos os embriões criopreservados. Muitas vezes, isso seria organicamente impossível (ainda que em gestações diferentes) ou não recomendável à mulher; não sendo necessário nem mencionar a questão do controle de natalidade... Enfim, eles são preservados apenas até que o desejo e a necessidade dos casais sejam satisfeitos.
Depois, doação, descarte, uso em pesquisas são seu destino. Seguem a trajetória do previsível no âmbito capitalista. Como coisa são tratados, porque convém a qualquer parte interessada. Ou porque os ditames do poder convence a isso: a incutida e disfarçada retórica da Ciência.
Certamente, não há divisões do poder-dominação, ele é uno e está a serviço dos manipuladores de toda uma sociedade, alienando e convencendo por seus instrumentos à tomada de atitudes que convêm ao progresso. Ao progresso de seus interesses. "O poder-dominação conspira continuamente contra a vida. Entre os dois não poderá haver uma coexistência pacífica e uma estratégia sinérgica." (BOFF, 1999, p. 118)
São usados, assim, a ciência médica, o Direito, a política, a ética como instrumentos para o alcance da satisfação de seus interesses. E a vida, sim, é um desses interesses; naquilo que não os afrontar, será defendida. Não faz muito tempo, era uma verdade incontestável por muitos que escravos eram coisas. Hoje, são os embriões (não só os criopreservados, mas até aqueles que estão no útero materno, a depender da corrente científica ou doutrinária pela qual os analisemos) que padecem dessa qualificação perpetuada pelos moldes dessa sociedade reificadora.
Esses dois modelos de sociedade [liberal-capitalista e socialista-marxista] romperam com a terra. Reduziram-na a um reservatório de matérias-primas e recursos naturais. As pessoas foram reificadas como recursos humanos, ou capital humano, compondo o grande exército de reserva à disposição dos donos dos meios de produção (Estado ou capital). (BOFF, 1999, p. 108-109)
Dizer que não há vida em qualquer fase de desenvolvimento do nascituro é argumento contra o evidente. Os sofismas científicos que, às escâncaras, mancham a pretensa exatidão e imparcialidade da Ciência, escondem interesses que a comunidade jurídica, assim como toda a sociedade, não pode contestar em termos científicos, tendendo a aceitar e, com isso, estimular que se concretizem. Mas, um dia, a humanidade acordou para as inescrupulosas experiências científicas de Hitler... Depois da perda de muitas vidas.
Assim como foi percebida a dizimação da vida dos judeus, há de ser percebida a dizimação que ocorre com a interrupção do percurso da vida ao se destruir os embriões. Toda pessoa humana, inevitavelmente, passou por esse estágio, assim como inevitavelmente chegará ao fim desse percurso: a morte. O congelamento é uma circunstância imposta e controlável, mas a vida evidenciada desde a concepção não.
Biologicamente, o início da vida marca a individualização do ser concebido de seus pais, tendo em vista que a partir desse instante ele adquire, mesmo biologicamente dependente, carga genética própria e individual que não se confunde nem com a do pai nem com a da mãe, sendo o corpo da mãe apenas o meio hábil para desenvolver-se normalmente até o nascimento. (MOREIRA FILHO, 2002, p. 01)
A manipulação térmica ocorrida para a implementação desta técnica já se destaca como um problema, porquanto apenas "cerca de 75% dos embriões sobrevivem ao processo de congelamento e descongelamento", segundo Maria Celeste Cordeiro dos SANTOS (apud MEIRELLES, 2000, p. 22). O descarte ou utilização desses embriões em pesquisas se impõem como um problema ainda maior, pois é a provocação intencional da morte, já que neles há vida.
Somente por um projeto audacioso a "Ciência sem limites" poderia ousar se colocar entre Deus e os homens para explicar a estes o que Aquele quis dizer com "o sopro da Vida". Surge, quase imperceptível, o substituto do ordenamento canônico inquisidor: os ditames científicos.
Como podem ser classificados os argumentos destinados a convencer de que não há vida em um embrião até o 14º dia (apenas um amontoado de células) e os que buscam dividir a vida em "vida biológica" (antes da nidação) e "vida humana" (após a mesma)? Vêm da mesma Ciência que remontou o surgimento do Universo à explosão que deu origem às galáxias e aos seres vivos em geral, tendo tudo começado por uma gigantesca quantidade de energia e de matéria que, no entanto, nunca foram detectadas; como se tivessem vindo do acaso. Contudo a própria Ciência natural tem respostas para isso:
A vida não é puramente obra do acaso. Bioquímicos e biólogos moleculares mostraram (graças aos computadores de números aleatórios) a impossibilidade matemática do acaso puro e simples. Para que os aminoácidos e as duas mil enzimas subjacentes pudessem se aproximar, constituir uma cadeia ordenada e formar uma célula viva, seria necessário mais tempo trilhões e trilhões de anos do que atualmente o universo tem. As possibilidades são de 10 na potência de mil contra um. Se o acaso possui alguma importância é no sentido do princípio da indeterminação da física quântica, introduzido por Werner Heisenberg. (BOFF, 1999, p. 88)
Não há diferença entre a vida contida em um embrião (ainda que se trate de embrião congelado criopreservado, excedentário, laboratorial, supranumerário ou pré-implantatório, etc) e a que os seres humanos adultos esbanjam, porque a vida é um processo "que se instaura com a concepção (ou germinação vegetal), transforma-se, progride, mantendo sua identidade, até que muda de qualidade, deixando, então, de ser vida para ser morte. Tudo que interfere em prejuízo deste fluir espontâneo e incessante contraria a vida." (SILVA, 2002, p. 196).
3 UMA COMPARAÇÃO AO ABORTO: A RELEVÂNCIA DA TIPIFICAÇÃO
É indispensável voltar à discussão acerca da humanidade e da vida que há no nascituro, quando o assunto é aborto. Isso porque a doutrina penalista admite que este tipo específico do Código Penal só está consumado com a morte do conceptus. E só pode morrer aquele que um dia esteve vivo.
Este ser que a legislação penal deseja manter vivo com essa tutela é exatamente o nascituro: o fruto da união de duas células germinativas que constituíram o ovo, o qual se desenvolverá até o parto sendo feto e, após este, continuará se desenvolvendo até que aquele indivíduo chegue à morte. Em qualquer fase da gestação em que seja provocada dolosamente a morte do nascituro, ter-se-á o crime de aborto.
Como dissemos, não há grande polêmica no âmbito penal sobre a existência de vida no ser que se desenvolve no ventre materno. Saliente-se que não é unânime esta opinião, porquanto murmúrios há de que alguns doutrinadores entendem que ali há apenas uma expectativa de vida tutelável, e não vida. Contudo, a divergência realmente vem à tona quando se questiona se este ser humano em formação é ou não pessoa. Nesse tópico, até dentre aqueles que visualizam vida desde o ovo ou zigoto, há quem assevere não se tratar de uma pessoa no ventre materno, apenas de um ser vivo. É o caso de Cezar Roberto BITENCOURT (2001, p. 157):
O bem jurídico tutelado é a vida do ser humano em formação, embora, rigorosamente, não se trate de crime contra a pessoa. O produto da concepção feto ou embrião não é pessoa, embora tampouco seja mera esperança de vida ou simples parte do organismo materno, como alguns doutrinadores sustentam, pois tem vida própria e recebe tratamento autônomo da ordem jurídica.
Indaga-se: quais são os outros tipos de seres vivos que poderiam se desenvolver dentro do aparelho reprodutor feminino com potencialidade de se tornar uma pessoa só a partir do nascimento com vida? Seria um vegetal? Seria um verme?
Com a evolução da tecnologia, instaurar-se-ia o ridículo se fosse promovida a perpetuação do entendimento romano de que, dentro do útero, poderiam existir monstrum, ou prodigium, ou portentum, termos que designavam as crianças nascidas de forma animalesca ou deformadas gravemente por se entender ter havido coitus cum bestia. O ser vivo que há dentro do útero materno é, indubitavelmente, um ser humano, na maior amplitude que puder ser dada ao termo.
Talvez, para alguns, estaríamos tomando o sentido vulgar do vocábulo pessoa, como sendo aquele que, nascido da espécie humana, não se confunde com os outros animais e nem com qualquer outro ser vivo. Neste caso, cremos que também não haveria atropelo do sentido jurídico, porque o nascer com vida reveste o ser em análise de personalidade, já sendo ele, para qualquer facção doutrinária, uma pessoa apesar de pessoa, nesta limitação de entendimento, não englobar as pessoas jurídicas. Mas se este ser em formação, ainda antes do nascimento, for um titular de direitos (sujeito de direitos)? Ainda que de um direito só. Não seria ele uma pessoa natural, no sentido jurídico do termo?
Voltemos ao estudo do crime de aborto, especificamente à figura do auto-aborto (quando a gestante provoca aborto em si mesma). Ela seria o sujeito ativo do crime, que constituiria crime de mão própria, porque só a própria gestante pode praticá-lo.
Quanto ao sujeito passivo, antes de identificá-lo, vale frisar que ele é o titular do direito lesado, ou, nas palavras de ANTOLISEI (apud JESUS, 2002, p. 171): "é o titular do interesse cuja ofensa constitui a essência do crime". No crime de auto-aborto, não poderia a gestante ser, ao mesmo tempo, sujeito ativo e passivo do crime, porquanto não há crime de autolesão. O sujeito passivo do crime de auto-aborto é o nascituro. Assim ensina BITENCOURT (2001, p. 157): "O sujeito passivo, no auto-aborto e no aborto consentido (art. 124), é o feto, ou, genericamente falando, o produto da concepção, que engloba óvulo, embrião e feto (há divergência doutrinária)." Damásio de JESUS (2002, p. 171) ratifica: "No auto-aborto também é tutelado o direito à vida, mas o titular desse interesse jurídico é o feto, que, assim, é o sujeito passivo."
Evidencia-se, então, que o ser concebido, o nascituro, tem ao menos um direito: o direito à vida, de forma que a afronta a este direito constitui crime (não o de homicídio, porque se encontra ainda no ventre materno; mas o de aborto). Discorre José Afonso da SILVA (2002, p. 197) acerca do direito à vida e à existência:
É o direito de não ter interrompido o processo vital senão pela morte espontânea e inevitável. Existir é o movimento espontâneo contrário ao estado morte. Porque se assegura o direito à vida é que a legislação penal pune todas as formas de interrupção violenta do processo vital. É também por essa razão que se considera legítima a defesa contra qualquer agressão à vida, bem como se reputa legítimo até mesmo tirar a vida a outrem em estado de necessidade da salvação da própria.
Toda esta conjuntura abarca perfeitamente a discussão em torno daquele ser que resultou de uma concepção intra-uterina. De fato, o Código Penal em vigor, por ser de 1940, não poderia estar pensando em outro tipo de embrião que não fosse aquele resultado do ato sexual que deu vazão à união dos gametas. A prática desmedida da fertilização in vitro não é sua contemporânea e, por isso, a tutela da vida existente também nos embriões laboratoriais não poderia ter sido considerada pelo legislador como algo penalmente relevante porque não era um fato social da época. Não é por essa razão que se deverá escancarar a porta para a dizimação de tais embriões que é protagonizada pela Ciência.
Os arts. 124 a 126 do Código Penal brasileiro dizem: "Provocar aborto". A especificação de que deve ter havido a nidação do ovo ou zigoto em útero materno não é uma especificação legal, mas doutrinária. Isso ocorre porque a doutrina se vale do fato de que o Código também usa a expressão "gestante", e só haverá gestante se existir gravidez.
Após a fecundação do óvulo pelo espermatozóide, já se terá um ovo ou zigoto em transição na trompa, que percorrerá toda ela até o momento da nidação no útero, mas não é este o único local em que pode ocorrer tal implantação. As implantações que ocorrem fora do útero são a causa da chamada gravidez ectópica. Vê-se que o requisito nidação não é inobservado somente na situação dos embriões criopreservados. Há gravidez sem implantação no útero e, mesmo assim, feto com vida.
É a vida do ser humano em formação o bem jurídico tutelado no crime de aborto, e não o local onde ele se formou. Por este ângulo, muitos buscam defender que o descarte de embriões ou a sua destruição decorrente de sua utilização em pesquisas seria uma espécie de aborto, pois, de fato, ubi eadem est legis ratio, ibi eadem legis dispositio (quando se verifica a mesma razão da lei, deve haver a mesma disposição legal).
Sem a violação ao princípio da tipicidade, levando-se em conta o fato de a lei penal não definir o que seja aborto, não se poderia negar proteção jurídica a um embrião fecundado in vitro, pelo simples fato de se formar fora do útero materno. O aspecto circunstancial não pode prevalecer sobre a razão da norma. A lei tutela a vida desde a sua formação, e o fato de o desenvolvimento embrionário ocorrer em laboratório não é justificativa para negar aplicação da lei penal. Afinal, onde há a mesma razão, deve haver o mesmo direito. (GAGLIANO-PAMPLONA, 2002, p.160) grifo dos autores.
Apesar da não definição da lei penal, aborto é o mesmo que privação do nascimento, Etimologicamente, no latim, "privação" é ab e "nascimento", ortus, e foi dessa composição que surgiu a palavra "aborto".
A própria principiologia penal, implicitamente, declara que o nascituro tem vida, justificando-se no porquê de o Código Penal Brasileiro tipificar o crime de abortamento. Ponderando-se que o Direito Penal tem como características peculiares o fato de ser residual, fragmentário e que cuida somente das mais graves lesões sofridas pelos bens jurídicos mais importantes, acrescentando-se que o crime de aborto está incluso no Título dos Crimes contra a Pessoa, é notório que o nascituro não é um indiferente penal.
É porque a vida é o bem jurídico mais importante, que pensar em vida no nascituro remete à preocupante falta de tipificação da destruição dos embriões criopreservados. Levando-se em consideração que a formação embrionária não pode ser interrompida, o que fazer com eles? Não seria sensato interromper a sua (chance de) formação só porque a nidação não se processou ainda.
O congelamento não retira ou suspende a vida do embrião, ao contrário, como foi dito anteriormente, é pela técnica de criopreservação que pode ser realizada a biopsia para verificar se o embrião está ou não vivo. Com efeito, essa vida tem de ser tutelada, porque não se trata de bem jurídico menos importante do que a vida do embrião implantado em útero materno. Todavia, enquanto o Direito não fizer existir um tipo penal, não haverá delito. "Não se pode negar que o delito é uma criação do Direito, que o define, traça os seus contornos e estabelece as conseqüências de sua realização." (BITENCOURT, 2000, p. 236).
No crime de aborto, o desvalor do resultado jamais seria o fato de estar grávida, posto que o ato de engravidar não lesiona bem jurídico algum. Estar grávida é apenas o meio pelo qual se teria um nascituro para que se pudesse, diante da ofensa à sua vida, falar em provocação de aborto na limitada análise do ultrapassado Código Penal de 1940, que não tinha como prevê o avanço das técnicas de reprodução medicamente assistida como outro meio de obtenção de um embrião vivo.
Em sendo o desvalor do resultado exatamente a lesão ou ameaça de lesão de um bem jurídico tutelado, seria ele a própria "privação do nascimento" através da retirada da vida do nascituro. A lesão ao bem jurídico tutelado é a morte do nascituro mesmo que não seja imediata e que não haja a sua expulsão porque, a contrario sensu, o que se tutela é a sua vida.
É incontestável que a retirada da vida humana (até mesmo pelo aborto) é crime contra a pessoa. A interrupção da vida de um embrião congelado, como qualquer outra forma de interrupção voluntária da vida, também seria um fato antijurídico. Há de se salientar contudo que: "Não basta que o fato seja antijurídico. Exige-se que se amolde a uma norma penal incriminadora. Daí a questão da adequação típica, que consiste em a conduta subsumir-se no tipo penal." (JESUS, 2002, p. 269)
Cezar BITENCOURT (2003, p. 11-12) enumera, de modo elucidativo, as funções do tipo penal que são: a função indiciária, pela qual o "tipo circunscreve e delimita a conduta penalmente ilícita" e também a função de garantia, refletindo que o "tipo de injusto é a expressão mais elementar, ainda que parcial, da segurança decorrente do princípio da reserva legal. Todo cidadão, antes de realizar o fato, deve ter a possibilidade de saber se sua ação é ou não punível." Mais adiante, quando ainda discorre sobre esta última função, o autor esclarece: "Em verdade, o tipo cumpre, além da função fundamentadora do injusto, também uma função limitadora do âmbito do penalmente relevante. Assim, o que não corresponder a um determinado tipo será penalmente irrelevante."
Dessa função limitadora do tipo abstrai-se que foi penalmente relevante proteger a vida do embrião fruto da concepção intra-uterina. Contudo àquele que resultou de uma ectogênese, ainda que tenha o mesmo status do primeiro embrião e, igualmente, tenha vida, é irrelevante proteger o que se deduz pela inexistência do tipo penal.
Não cabendo, em Direito Penal, analogia para obter a condenação, jamais poderiam ser comparadas a criopreservação e a gestação como meio pelo qual se mantém vivo o conceptus. Ousamos insistir que o que se tutela no aborto é a vida. Se no ventre da mãe o embrião se desenvolve e se no congelamento o seu desenvolvimento é suspenso, isso não retira inegável existência de vida em um ou em outro caso.
Heloisa Helena BARBOZA (apud MEIRELLES, 2000, p. 65) manifesta-se a respeito da discussão entre a vida do conceptus in vitro e a questão do aborto dizendo que: "[...] ainda que não se reconheça na hipótese da ocisão voluntária do conceptus in vitro o crime de aborto, não se pode negar existir destruição de vida humana, o que colide frontalmente com a proteção do direito à vida, que não admite gradações: a vida existe ou não; é um fenômeno único."
Como dissemos, no crime de auto-aborto ou no do aborto consentido, o sujeito passivo é o nascituro, que é o "produto da concepção" em qualquer fase da gestação. O tipo que engloba essas duas figuras é o art. 124 do Código Penal que diz: "Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque", pelo qual é evidente que, para realizar as manobras abortivas em si mesma ou para permitir que outra pessoa as realize, deve-se estar grávida, ser gestante. Dessas observações, pode-se inferir que o crime possui elementares e circunstâncias.
No art. 121, "matar" e "alguém" são elementares do crime de homicídio; no art. 124, que trata de aborto praticado ou consentido pela gestante, o estado de gestante (gravidez) é elementar do tipo. Damásio E. de JESUS (2002, p. 552) esclarece a questão das elementares e circunstâncias de forma bastante elucidativa, dizendo que: "Se tirarmos a cabeça de um homem, a vítima não subsiste como pessoa humana. Assim, a cabeça é elemento do homem. Se tirarmos, porém, a sua vestimenta, ela subsiste como homem. Logo, a sua vestimenta constitui uma circunstância da pessoa humana".
Por isso, quando se supõe que os embriões laboratoriais não são pessoa ("alguém") e não têm vida (somente "expectativa"), não há que se falar em crime de homicídio. Da mesma forma, quando se tipifica que só há aborto quando há gravidez, está a se dizer que tais embriões podem ser descartados impunemente. Assim, como as elementares do crime são essentialia delicti, diz Damásio que, quando " a ausência da elementar exclui o crime de que se trata e qualquer outra infração penal (atipicidade absoluta) [...] o sujeito não responde por crime algum." (JESUS, 2002, p. 552)
Vale frisar que os embriões in vitro não sofrem ameaças apenas enquanto estiverem nesta condição. Após a sua implantação em útero materno, ainda pode ocorrer a chamada "redução seletiva" na gestação múltipla, que é a eliminação de um ou mais embriões para permitir que os demais se desenvolvam.
Nesta hipótese, o médico reduzirá, discricionariamente, qualquer um deles que considere anormais ou defeituosos. Destarte, nota-se que esta interrupção voluntária da vida embrionária em formação no útero materno (portanto, há gestante) não é denominada de aborto, e sim de "redução seletiva", porquanto não a consideram como crime. Entendemos que, quando não se tratar de aborto necessário (que não é punido, "se não houver outro meio de salvar a vida da gestante" art. 128, I, CP), a situação em epígrafe configurar-se-á mais do que como o crime de aborto puro e simples, mas como um aborto eugênico, e não há causa excludente de ilicitude. Apesar disso, justificam que esta técnica difere do aborto porque:
[...] na redução seletiva o embrião destruído pode ser absorvido pelo corpo da gestante e não expelido e, além disso, a gestação não é interrompida. Na Inglaterra, a redução embrionária é considerada legal em duas situações: quando o embrião apresenta qualquer anormalidade que se considere grave; ou, ainda que não haja anormalidade alguma, mas a gestação plúrima em si represente sérios riscos para a gestante; neste último caso, o médico pode escolher qualquer um dos embrião a reduzir. (MEIRELLES, 2000, p. 68)
Como demonstra a realidade científica, a atipicidade absoluta tem sido gozada aos extremos. Stela BARBAS (apud MEIRELLES, 2000, p. 65), dentre outros empenhados no biodireito, já faz referência ao termo "embrionicídio" para remeter ao fato da destruição dos embriões excedentários. Porém esta denominação específica tem sido substituída por outras expressões sinônimas de um cunho valorativo que retrata com fidelidade o caos instaurado com essa prática como, por exemplo, "cobaísmo humano", que é usada em relação à utilização dos embriões humanos em pesquisas. No entanto, lamentavelmente, tudo não passa de discussões. Leis e sanções? Estas não existem.
Conforme assinala Eduardo de Oliveira LEITE (apud MEIRELLES, 2000, p. 65), é relevante a tipificação da destruição dos embriões excedentários "caso contrário, o atentado contra a vida do conceptus in vitro permanecerá a descoberto da lei penal, por força do princípio romano nullum crimen nulla poena sine praevia lege, adotado pelo sistema brasileiro."
4 O EMBRIÃO COMO SUJEITO DE DIREITOS
O Direito, assim como os demais fenômenos culturais, não deixa de ser motivado pela necessidade. A necessidade de novas regras, de mais segurança, enfim, de ampliar a sua proteção faz com que este fenômeno cultural sofra indispensáveis mutações no tempo e no espaço ele deve ser dinâmico, para acompanhar o processo evolutivo da sociedade. Como resultado da adaptação social, o Direito deve estar atualizado, malgrado alguns fatos sociais estejam fora do âmbito de sua proteção, mesmo comprometendo a segurança e a ordem pública (nisso se incluem os indiscriminados avanços da biotecnologia).
O vocábulo "direito" suscita uma pluralidade de significações: justiça, ciência, faculdade, norma, qualidade. Divagar nessa polissemia traria o entendimento de que muitas das acepções da palavra "direito" funcionam como correlatas do termo "justiça", mas dizer que Direito é o que é justo não é tudo, aliás, é quase nada.
Na realidade, esta afirmação, jus id quod justum est, não passa de uma tautologia. Os Positivistas chegam a negá-la, pois elegeram a segurança como meta do Direito (e nem sempre o fim - a segurança - tem como meio a justiça). Tercio Sampaio FERRAZ JÚNIOR (1994, p. 22), por sua vez, assume a impossibilidade de se emitir uma rigorosa conceituação do Direito em razão de ele ser um fenômeno multifário. Decerto,
[...] o termo direito não é unívoco, e nem tampouco equívoco, mas análogo, pois designa realidades conexas ou relacionadas entre si. Deveras, esse vocábulo ora se aplica à norma, ora à autorização ou permissão dada pela norma de ter ou fazer o que ela não proíbe, ora à qualidade do justo, etc., exigindo tantos conceitos quantas forem as realidades a que se refere. Em virtude disso impossível seria dar ao direito uma única definição. (DINIZ, 2002, p. 4)
Podemos ver que o fenômeno jurídico comporta situações em que fazemos referência à norma jurídica em si mesma; ao ordenamento; à coação; ao regramento que pretende inspirar um determinado comportamento. De igual forma, o Direito também comporta a situação em que nos referimos ao "nosso direito a alguma coisa", nossa titularidade, nossa "faculdade de agir" conforme uma permissão (ou não proibição) legal.
Por essa confluência, tem-se incutidas no vocábulo "direito" as expressões direito objetivo e direito subjetivo. Conforme Washington de Barros MONTEIRO (2003, p. 4), "O direito objetivo designa o direito enquanto regra (jus est norma agendi)" e o direito subjetivo "são as prerrogativas de que uma pessoa é titular, no sentido de obter certo efeito jurídico, em virtude da regra de direito". É a faculdade individual de agir de acordo com o direito objetivo (jus est facultas agendi).
Também advém dessa polissemia as designações que remontam às parcelas da Ciência do Direito a que denominamos disciplinas jurídicas, dentre as quais está o Direito Civil, que disciplina as relações jurídicas no âmbito privado, quais sejam: os direitos referentes à pessoa (desde a concepção até a morte), à família e ao patrimônio.
Correlacionando o conteúdo do Direito Civil com os mencionados direitos objetivo e subjetivo, Francisco AMARAL (2003, p. 140) elucida que "sob o ponto de vista subjetivo, esse conteúdo são as relações jurídicas entre os particulares ou entre esses e o Estado, quando situados em posição de igualdade e coordenação" e, sob o ponto de vista objetivo, "compreende as regras sobre a pessoa, a família e o patrimônio". Salienta ainda, sobre um dos aspectos do seu conteúdo, que: "[...] Pode-se assim dizer que o objeto do direito civil é a tutela da personalidade humana, disciplinando a personalidade jurídica, a família, o patrimônio e a sua transmissão[...]".
No Código Civil brasileiro, o livro I da parte geral dispõe sobre as pessoas como sujeito de direitos. Logo no art. 1º, diz que: "Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil". O exercício desses direitos, assegurados objetivamente, é o que chamamos de direito subjetivo, que é a facultas agendi. "De fato, inadmissível é a existência de faculdade ou poder sem sujeito. Arredada deve ser a concepção que aceita a possibilidade de direitos sem os respectivos titulares." (MONTEIRO, 2003, p.61)
O art. 2º do Código Civil quando fala que "[...] mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro", está a dizer, para a maioria dos doutrinadores (especialmente os que defendem a teoria natalista), que ali são resguardados "direitos sem titulares" ou "mera expectativa de direito".
Não tem fundamento este entendimento, posto que o nascituro, como defendemos no Capítulo 2 deste trabalho, é titular de direitos, possui capacidade de direito, é, portanto, pessoa, que é o mesmo que "[...] gente, ser humano com vida, aqueles entes dotados de estrutura biopsicológica, pertencentes à natureza humana, daí a denominação abraçada pelo Texto Positivado: pessoa natural, isto é, aquele que pode assumir obrigações e titularizar direitos" (FARIAS, 2003, p. 148-149). Contudo, como dissemos, não é este o entendimento dos natalistas:
Nos regimes jurídicos natalistas, que asseguram os direitos do nascituro, como é o caso do Brasil, tem-se a possibilidade do reconhecimento de direitos sem titulares (porque o nascituro ainda não é pessoa; logo, não pode ser sujeito, titular) e em favor de beneficiários sem capacidade (se não têm personalidade, tampouco têm capacidade de direito). (BARRETO, 2004, @)
Não há como se negligenciar a gritante necessidade de se conferir ao embrião uma tutela específica, o amparo suficiente para pô-lo à margem das especulações e pretensões de cunho meramente patrimoniais. A concepção é, biologicamente, o termo inicial da pessoa humana; não há porque o Direito obstaculizar isso, de forma a legitimar a reificação do ser humano desde a sua gênese.
A personalidade jurídica é o ponto de partida do direito privado, pois o homo privatus, desde a influência da Reforma Protestante, do Iluminismo e da Revolução Francesa, como cerne de todo o ordenamento jurídico, tem sido cada vez mais o centro de tudo. A patrimonialidade do Direito Civil tem sido substituída pela sua personalização, principalmente depois que a Constituição Federal trouxe como indispensáveis alicerces a proteção da vida e o princípio da dignidade da pessoa humana. A pessoa passa a ser vista sobre a ótica do valor, sendo, portanto, mais do que "um fim em si mesmo", mas, também "um valor em si mesmo".
Todo direito e princípio que não estiverem edificados sobre aqueles dois alicerces (ou que os afrontar) devem ser descartados. Com a subjetividade jurídica trazida com a laicização do Direito, o racionalismo e o liberalismo, "ser sujeito de direitos" é "ter direitos da personalidade"; isso é muito mais do que é visto pelo ângulo de apreciação que o mostra apenas como detentor de bens e riquezas.
Os direitos subjetivos decorrem da existência de sujeitos de direito e estes decorrem da existência de uma relação jurídica. O nascituro, como sujeito de direitos, enquanto estiver alheio a esta evidência, estará recebendo sempre a parcial proteção com a qual tem sido "compensado" e que tem sido causa originária da dúvida sobre se ele é mesmo um titular de direitos ou se está dependurado no pêndulo que oscila entre os sujeitos e os objetos dessas relações jurídicas.
A composição jurídica das categorias convive mal com indefinições. E são imprecisões tudo o que escapa àquela definição de antemão estabelecida. A hipótese do nascituro põe às claras os limites desse sistema conceitual e abstrato. Ávido por personificar os sujeitos, o que está por nascer oferece uma clivagem entre o direito e o titular. (FACHIN, 2000, p. 39)
No entanto, apesar do tratamento lacunoso, não tem sido questionado se a pessoa é mesmo o cerne do ordenamento civilístico. Talvez, por essa falta de inquirição, é que essa "pessoa" tem sido manipulada até mesmo pela Ciência Jurídica. Isso porque a colocação da pessoa como centro da relação jurídica e do direito em geral, é uma tática operacional, através da qual pretende-se, de maneira estanque, regulamentar as situações que a vinculam aos bens e à circulação de riqueza. Apenas houve uma adaptação do móbil clássico ou tradicional.
Essa pessoa, que o antropocentrismo quer que figure como elemento central da codificação, existe "somente de forma retórica; trata-se tão-somente de um conceito desprovido de valor, constituído de forma hermética, com base no rigorismo científico a fim de possibilitar a sua incorporação nos pólos da relação jurídica [...]" (RODRIGUES, 2003, p. 29).
Continua a relação "ser" e "ter", pois ser sujeito de direitos e detentor de direitos da personalidade são, ainda, atributos de quem tem alguma projeção patrimonial. Na realidade, enquanto a personalidade estiver submissa ao estereótipo legal, ao fomalismo-normativista, a pessoa não será um valor em si mesmo, mas um conceito movido por tendências ultrapassadas que remetem a relevância da conflituosidade jurídica à aquisição de patrimônio.
Se a pessoa, enquanto ser humano, precede o Direito, posto que este é um fenômeno construído e não um fenômeno dado, como advindo da natureza, ela é mais do que sujeito de direitos, ela simplesmente é. O ser pessoa é realidade, fato, o ter direitos é que pode depender de um acordo e negociação social: impondo limites, correlacionando deveres, estipulando garantias. O que tem se visto, na realidade, é que o Direito fez a pessoa, e não a pessoa fez o Direito [01].
Tendo o homem criado o Direito para que o seu convívio em sociedade fosse harmônico, não poderia desprivilegiar a sua personalidade e, tampouco, poderia ignorar que os conflitos o faria protagonizar uma autofagia social. As relações jurídicas se originam onde há conflitos, por isso indispensável se torna a intersubjetividade. Dessas premissas é que decorreria o fato de ser sujeito de direitos. É uma conseqüência genérica de ser pessoa.
A conseqüência mais próxima desta personalidade é a detenção dos direitos da personalidade. Os direitos da personalidade são "características inerentes ao indivíduo, que se intuem facilmente, que até dispensariam menção, dada a sua inarredabilidade da condição humana, e que configuram pressuposto da própria existência da pessoa, mas que nem sempre são fáceis de explicar. Ou traduzir em palavras." (MONTEIRO, 2003, p.96)
Voltemos à análise do art. 1º do Código Civil, pelo qual "toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil". Toda pessoa já diz que, assim como a personalidade é inerente à condição humana melhor dizer à pessoa humana , ter capacidade de direito ou de gozo também o é. O não ter capacidade de fato não restringe, limita ou pormenoriza a personalidade, pois ser pessoa e ter direitos não estão condicionados à possibilidade do exercício destes últimos. Não se confundem personalidade e capacidade, mas se entrelaçam.
É tão inerente a detenção da personalidade à pessoa que o próprio Código Civil de 2002 recaiu num pleonasmo vicioso ao dizer, no art. 2º, que "a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida [...]", substituindo a expressão "ser humano" que estava no dispositivo correspondente no Código de 1916 (art. 4º) pela palavra "pessoa". GAGLIANO e PAMPLONA FILHO (2002, p. 89), opinam que esta mudança "acaba gerando impropriedades vernaculares agressivas ao ouvido, como a aliteração do art. 2º ("A personalidade civil da pessoa...").
Mais do que a evidenciação de uma figura de construção da linguagem, vê-se um sentido contraposto ao que as palavras empregadas podem traduzir na realidade. Isto porque se "a personalidade civil da pessoa começa com o nascimento com vida", antes de tal ocorrência (o nascimento), tinha-se pessoa com personalidade não-civil? Essa falta de clareza, então, só vem a confirmar o que os fatos (com genético e biológico) anunciam: já há pessoa na concepção, ela precede o Direito em qualquer época que venha a nascer. O Direito Civil vem apenas regulamentar esse fato preexistente de tamanha importância jurídica: a personalidade. Ressalte-se que ele não vem criá-la, mas regulamentá-la, para a obtenção da pacificação social almejada.
O reconhecimento de que a personalidade (e sua proteção jurídica) abarca o nascituro restaura a discussão acerca da ilegalidade da atuação científica nos procedimentos que resultam na morte do embrião in vitro. Como separar a vida humana da pessoa humana? Existiria vida humana fora dela? Se o embrião in vitro tem vida, assim como o embrião in vivo a tem, então, da mesma forma, é uma pessoa, tendo, portanto, direitos da personalidade, pois somente negando-se sua condição humana poder-se-ia negar-lhe tais direitos.
Não entendemos que somente com mais uma mudança textual no Código Civil, ou mesmo que somente depois da criação do conclamado Estatuto do Embrião seria possível pôr um óbice à situação caótica em que submerge a vida e a dignidade da pessoa humana a partir do tratamento que é recebido pelo embrião no nosso sistema jurídico. Tais atuações são necessárias, inclusive se fazem urgentes, mas não são o único meio de defesa dos direitos do conceptus [02], posto que sua vida e sua dignidade estão resguardadas pela Lei Maior.
A vida humana, que é o objeto do direito assegurado no art. 5º, caput, integra-se de elementos materiais (físicos e psíquicos) e imateriais (espirituais). [...]. Por isso é que ela constitui a fonte primária de todos os outros bens jurídicos. De nada adiantaria a Constituição assegurar outros direitos fundamentais, como a igualdade, a intimidade, a liberdade, o bem-estar, se não erigisse a vida humana num desses direitos. No conteúdo de seu conceito se envolvem o direito à dignidade da pessoa humana, o direito à privacidade, o direito à integridade físico-corporal, o direito à integridade moral e, especialmente, o direito à existência. (SILVA, 2002, p. 197)
Não há direito que se sobreponha a esses dois direitos, que são a vida e a dignidade humana (quanto mais o direito à descendência e à concepção). A concepção in vitro, como uma cortina de fumaça, tem escondido a gritante relativização de direitos que são essenciais. A magna Carta, no entanto, em seu art. 5º, parágrafo 2°, deixa claro que os direitos e garantias ali elencados não excluem nenhum outro que deles decorra, mesmo que não estejam expressos. A dignidade humana como fundamento da República e essa principiologia "configuram uma verdadeira cláusula geral de tutela e promoção da pessoa humana, tomada como valor máximo pelo ordenamento" (TEPEDINO, 2003, p. XXV)
Tem-se relativizado preceitos constitucionais (relativiza-se a dignidade em prol da reificação) e posto em xeque o próprio propósito da proteção da instituição familiar. Aliás, com o advento das novas técnicas da biotecnologia, até o conceito de família encontra-se ultrapassado. Não há mais coerência em se repetir que mater semper certa est ou que pater est, quem iustae nuptiae demonstrant.
Relativiza-se o direito à filiação quando se cria em laboratório "órfãos de ninguém" ou "filhos do tubo de ensaio", sendo que, na verdade, os direitos destinados ao nascituro são direitos do embrião (que é uma espécie da acepção nascituro), independente da forma de sua fertilização (o Código art. 2º fala "desde a concepção", e não "desde a nidação").
Isso é alarmante a partir do momento em que a instauração de uma nova ordem jurídica pela Constituição de 1988 trouxe uma nova ótica axiológica e principiológica, de forma a sacudir todo o sistema jurídico. Através de qualquer viés jurídico, deve ser dada efetivação à primazia constitucional, à sua força normativa, de forma que inclusive "as categorias e conceitos do Direito Civil devem ser criticados e reconstruídos, tendo como norte a consecução do projeto constitucional." (RODRIGUES, 2003, p. 02)
Não somente os direitos já elencados no ordenamento jurídico como sendo "direitos do nascituro" seriam extensíveis igualmente ao embrião in vitro e ao in vivo (aliás, no que diz respeito à abrangência deste último, não há o que se questionar, porquanto sua tutela já está evidenciada [03]). Deve-se fazer uma releitura, visualizando o nascituro como pessoa, o que, certamente, ampliará a sua proteção.
Além dos exaustivamente defendidos direitos à vida e à dignidade humana, e dos demais direitos positivados, pairam dúvidas e conseqüências importantes decorrentes da extensão do tratamento dado ao nascituro também ao embrião criopreservado. Ademais, a própria atribuição de personalidade ao embrião gera um turbilhão de reflexos na sua identificação como sujeito de direitos. Poderia ele, por exemplo, ser adotado? Ser titular do direito ao ressarcimento de danos, inclusive o moral?
O art. 372 do Código Civil de 1916 dizia que: "Não se pode adotar sem o consentimento do adotado ou de seu representante legal se for incapaz ou nascituro". Contudo, o Novo Código Civil, no art. 1.621 (correspondente ao 372 do antigo código), não mencionou o nascituro, dizendo apenas que: "A adoção depende de consentimento dos pais ou dos representantes legais, de quem se deseja adotar, e da concordância deste, se contar com mais de 12 (doze) anos". O Estatuto da Criança e do adolescente, por sua vez, no seu art. 2º dispõe que: "considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até 12 (doze) anos de idade incompletos [...]".
A polêmica gira em torno exatamente do fato de se o nascituro está enquadrado no conceito de "criança" do ECA e do porquê de o Código Civil de 2002 não ter feito menção a ele. Prioritariamente, não há que se discutir a diferenciação entre as nomenclaturas criança e nascituro, no que diz respeito à proteção jurídica deste último, por serem apenas vocábulos que buscam definir através de um corte etário a etapa da vida do ser humano a que se refere.
Quando o art. 7º do ECA diz que: "A criança e o adolescente têm o direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência", está a dizer que aquele que não nasceu mas que tem o direito de nascer para continuar vivo já é criança. Assim, todo nascituro é uma criança para o Estatuto da Criança e do Adolescente (e para a corrente concepcionista).
Como o Código Civil de 2002 revogou a Lei 3.071/1916 (antigo Código), conforme dispôs no seu art. 2.045, então o art. 372 da legislação anterior não mais existe e não produz seus efeitos. Para nós, isso representa um verdadeiro retrocesso, posto que traz mais um grande dilema para a seara do tratamento jurídico do embrião: a possibilidade de adoção do nascituro. Quando a Constituição Federal proibiu (no seu art. 227, parágrafo 6º) qualquer tipo de discriminação entre os filhos, concedendo-lhes os mesmos direitos, estaria ratificando que o nascituro tem direito à adoção, como já dispunha o Código de 1916.
Quanto à possibilidade de o nascituro ser vítima de danos reparáveis, a doutrina se choca na mesma polêmica. A priore, toda discussão parece ser amenizada com a afirmação de que o nascituro não tem personalidade. Meramente repetindo a tese dos natalistas (e até daqueles que entendem que o conceptus tem apenas personalidade condicional), fica mais fácil fugir de mais esse direito do nascituro: o da reparação do dano sofrido.
A concepção se concretiza no mundo jurídico e produz seus efeitos antes mesmo do nascimento, como o de proteger juridicamente o conceptus e revesti-lo de personalidade. É, portanto, dever do Estado garantir, desde logo, os direitos do nascituro. Como forma de externalizar seu intuito de promover tal proteção, no art. 227, parágrafo 1º da Constituição Federal impõe-se ao Estado o dever de efetivar a assistência materno-infantil; e, no art. 7º e 8º do ECA, impõe-se que as políticas sociais permitam o nascimento e desenvolvimento sadio e que a gestante receba, através do SUS, o atendimento pré [04] e perinatal.
Assim, o nascituro, como ente personificado que é, sendo um ser humano, pode sim ser vitimado por danos causados pelos pais ou por terceiros. Ignorar a ocorrência destes danos e a necessidade de sua reparação é uma afronta à própria Constituição Federal de 1988, que introduziu no ordenamento pátrio o modelo igualitário de tratamento das pessoas, a valorização do ser humano física e moralmente retratando-o como titular exclusivo da dignidade da pessoa humana e que delineou novos contornos à instituição familiar. É pela própria Lex Fudamentalis que se torna injustificável a não-reparabilidade dos danos causados, porquanto o princípio da reparabilidade está positivado no art. 5°, V e X da Lei Maior.
Perpassando, inicialmente, pela questão dos danos morais nas relações de família, pode-se chegar ao confronto entre os direitos do nascituro e os direitos da mãe (principalmente o seu direito sobre o próprio corpo). Nesse confronto, há que se levar em conta dois requisitos inalteráveis: a disposição do corpo humano é relativa, e não absoluta; e o direito à vida e à integridade física são distintos e inafastáveis tanto da gestante quanto do nascituro, ou seja, cada um é titular desses direitos, independente da titularidade do outro.
Destarte, da mesma forma que não se pode concluir que a pessoa é "dona do seu próprio corpo" (não tendo em relação a ele o livre-arbítrio para dispor, alienar), não se pode permitir que alguém aja de maneira a pôr em risco (ainda que culposamente) a integridade física do nascituro. Como exemplo dessa conseqüência, podemos citar o fato das deformações congênicas resultantes de dano provocado ainda na vida intra-uterina. Como exemplo de ofensa ao direito à imagem, tem-se a indevida utilização das imagens obtidas por ultrassonografia pela própria clínica com escopo comercial; e, como exemplo de ofensa à honra, tem-se a imputação como "bastardo".
Assim, como ser humano dotado de personalidade, é indubitável que, apesar de sofrer pela perpetuação do Direito Civil Clássico (o qual ainda infecciona o Código Civil de 2002, impropriamente chamado de "Novo"), o embrião é sujeito de direitos, tendo, acima de tudo, o direito à vida, que é garantido pela Magna Carta.
Sabemos, no entanto, que a afirmação de que o nascituro é um sujeito de direitos, uma pessoa tal como defendemos no tópico 2.2 supra grandes reflexos são trazidos para o tratamento dos embriões in vitro. É que com a definição do embrião in vivo como pessoa e, como já foi defendido, sendo este e aquele o "mesmo embrião", então, por uma adequação lógica, o embrião in vitro seria pessoa. Realmente, por todos os argumentos defendidos até então, entendemos que se trata sim de uma pessoa tanto quanto o é o embrião obtido pela fertilização convencional. Mas até que ponto essa personalidade aproxima e afasta os embriões concebidos desta e daquela forma?
Não há, pela própria particularidade da criopreservação, pela falta de gestação que torne ainda mais certo o nascimento esperado, como viabilizar que o embrião criopreservado detenha enquanto estiver congelado a mesma titularidade que o nascituro no útero.