Confuso modelo das sindicâncias.

Conexão com o processo disciplinar

22/02/2019 às 17:55
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A falta de clareza do legislador fez com que surgissem na prática diversas espécies de sindicâncias, sem qualquer delineamento sobre o método de cada uma. Cada autoridade encarregada a trata do seu modo, e, muitas vezes, fora da segurança jurídica.

A sindicância como base do processo disciplinar

A figura jurídica da sindicância, no formato ideal, é uma peça preparatória que, mediante recolhimento de provas, orienta sobre tomada de providências.

Sindicância vem do verbo “sindicar” que significa colher informações por ordem de outrem. No modelo atual, é preferível que a investigação preliminar seja o expediente para colher informações; à sindicância é reservada a tarefa de colher provas. Outrem, a autoridade instauradora, determina a alguém (sindicante) ou a uma comissão1 que busque provas que permitam esclarecer determinado fato na sua plenitude (o fato em si, as circunstâncias e a autoria). A partir desse esclarecimento, a autoridade pode tomar as seguintes medidas:

  • Arquivamento.

  • Abertura de processo disciplinar, se o fato for juridicamente relevante.

​Esse é o modelo clássico de sindicância, que tem esse objeto, essa configuração e esse desdobramento. A administração convive, entretanto, com outros tipos de sindicâncias. Não raramente, pela confusão do sistema, têm-se grandes incidentes.

A sindicância pura, de natureza investigativa, ganhou uma coirmã: a sindicância acusatória, que é aquela que já nasce com uma acusação contra alguém, comporta contraditório e defesa e dela pode decorrer punição. Melhor seria se fosse considerada pelo legislador como sendo um processo sumário.Para esclarecer a dubiedade, a Lei Complementar nº 13/99, alterada pela Lei Complementar nº 025, de 15.08.2001 (Estatuto dos Servidores Públicos do Estado do Piauí), declara:

Art. 164. (...)

§ 3º – A sindicância poderá ser investigatória ou punitiva, sendo assegurado nesta última o contraditório e ampla defesa.

No mesmo socorro veio Controladoria-Geral da União pela Portaria CGU 335/206:

Art. 4º. (...)

II - sindicância investigativa ou preparatória : procedimento preliminar sumário, instaurada com o fim de investigação de irregularidades funcionais, que precede ao processo administrativo disciplinar, sendo prescindível de observância dos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa;

III - sindicância acusatória ou punitiva : procedimento preliminar sumário, instaurada com fim de apurar irregularidades de menor gravidade no serviço público, com caráter eminentemente punitivo, respeitados o contraditório, a oportunidade de defesa e a estrita observância do devido processo legal;

Portanto, os corregedores e as demais autoridades com competência para instauração de sindicâncias devem estar atentos, a princípio, a esses dois modelos:

  • Sindicância investigativa – é a investigação formal, com metodologia de inquérito, para recolher provas da ocorrência, da autoria e das circunstâncias, e, ao fim, orientar a autoridade sobre uma tomada de decisões. Essas providências podem ser instauração de processo disciplinar, comunicação ao Ministério Público, adoção de medidas de reparação de dano etc.

  • Sindicância acusatória – apesar do nome, trata-se de um processo sumário. É instaurada quando a autoridade já tem um fato e a respectiva autoria, restando apenas apurar a responsabilidade a partir do cotejo entre a acusação e a defesa, evidentemente tratando-se de pequenas infrações na administração estatutária (no meio celetista é usual esse tipo de sindicância como único instrumento). A metodologia é praticamente a mesma do processo administrativo disciplinar, inclusive no que diz respeito às garantias dos acusados em geral (contraditório e ampla defesa).

Há, ainda, outras espécies de sindicâncias que os administradores devem conhecer:

  • Sindicância patrimonial – consiste em investigar a origem de patrimônio exteriorizados pelos agentes públicos e que sejam incompatíveis com as rendas conhecidas. As provas podem sinalizar graves crimes contra a administração pública. Essa investigação específica, geralmente feita com apoio de outras estruturas, como Polícia, Receita Federal, Banco Central e Ministério Público, pode subsidiar tanto processo disciplinar quanto processos nas esferas fiscal, criminal e cível.

  • Sindicância de vida pregressa – é prevista em editais para carreiras sensíveis do Estado. Não tem caráter punitivo, mas integra um sistema de seleção para ingresso no serviço publico. Consiste na investigação reservada do passado daquele candidato, para verificação de condutas que eventualmente o incompatibilizem com o cargo.

  • Sindicância que não tem relação com matéria disciplinar – é utilizada para investigar e esclarecer outras ocorrências com reflexo no serviço público sem que necessariamente haja envolvimento ou responsabilidade de funcionários. Entram aqui os acidentes com conotação de fatalidade. Sem que se possa atribuir responsabilidade a alguém, é possível que das investigações venham à luz medidas que podem ser adotadas para evitar os sinistros. Também é utilizada para investigar graves irregularidades em contratos administrativos, com o fito de subsidiar a instauração de processo de rescisão, previsto na Lei nº 8.666/93, art. 78, parágrafo único.


Sindicância não pode ser instaurada contra alguém

Com efeito, não se investigam pessoas, apuram-se fatos. Os fatos e as respectivas provas podem conduzir à direção de pessoas. Em assim ocorrendo, esses funcionários sobre os quais recaíram elementos probatórios desfavoráveis terão a oportunidade de oferecer explicação oral, por meio do interrogatório; e se os esclarecimentos prestados forem frágeis, o expediente, então desdobrar-se-á em uma ação administrativa própria, o processo disciplinar, no qual, com todas as garantias inerentes à defesa, serão aferidas as responsabilidades.

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Nessa linha, entenda-se que a sindicância no formato ideal:

  • Apura fatos.

  • Tem metodologia de inquérito policial.

  • Instrumentaliza eventual processo.


Diferença entre sindicância e processo

A sindicância pura é na atualidade o que foi outrora o inquérito administrativo. No momento, esse inquérito é uma fase dentro do processo – embora uma fase muito mal posta pelo legislador.

A administração deve considerar essa sindicância como sendo a denominação adequada para um expediente formal de investigação e adotar, na sua metodologia, o modelo de um inquérito policial. Como primeira referência, nesse sentido, devem-se aplicar, com pequenos ajustes, os comandos dos artigos 5° a 10 do Código do Processo Penal e, depois, aquilo que esse diploma trouxer em relação às formalidades de recolhimento e os critérios de avaliação da prova.

Ao fim dessa investigação administrativa, em sendo recolhidas as provas que caracterizem ilícito administrativo, haverá o desdobramento para o processo administrativo disciplinar, assim como acontece com o inquérito policial, que é a peça que subsidia a posterior ação penal.

Se as provas da sindicância apontarem infração leve, o mesmo expediente será transformado em algo de caráter processual, de forma que, nos mesmos autos, o arguido poderá exercer a defesa e haverá julgamento. Ressalta-se que alguns estatutos, como os da Policia Civil na maioria dos Estados, não adotam esse desdobramento. Por outro lado, as estruturas celetistas podem normatizar internamente para validarem esse formato como modelo de resolução de todas as infrações, inclusive as que possam sujeitar o empregado público à demissão por justa causa.

Essa sindicância que se desdobra em duas fases pode ser chamada (para efeito didático) de sindicância híbrida, uma vez que começa como investigação e termina com as características de um processo.

O processo disciplinar, por sua vez, é um expediente de depuração. Havendo risco de o funcionário sofrer uma pena de maior impacto, garante-se a ele a possibilidade de ver todas as provas recolhidas na sindicância serem reexaminadas por outra equipe, que é representada pela comissão de processo (também chamada comissão de inquérito).


Processo disciplinar como meio de depuração

Não se instaura processo para apurar fatos. Os fatos são apurados em expedientes inquisitoriais (averiguação, investigação preliminar, sindicância investigativa e auditoria). Em processo o que se apura é a responsabilidade do agente, examinando-se os fatos em cotejo com as provas e as razões da defesa. Há situações em que o fato ocorreu, é uma ocorrência gravosa, a autoria resulta confirmada, mas se apresenta uma situação jurídica que retira naquelas circunstâncias a responsabilidade da pessoa. Exemplos: legítima defesa e estado de necessidade (circunstâncias que afastam a antijuridicidade); e doença mental ou equivalente (afasta a imputabilidade).

Para instauração de processo há necessidade de provas pré-constituídas, porque o funcionário sofrerá um constrangimento ilegal se for processado sem elementos de justa causa. Essas provas nem sempre vêm por sindicâncias. Podem chegar, por exemplo, por elementos encaminhados pelo Ministério Público, por autoridade judicial, por Tribunal de Contas ou por uma Comissão Parlamentar de Inquérito.

Em casos de denúncia anônima ou boatos, é recomendável que seja realizada averiguação (pela chefia imediata) ou investigação preliminar (por autoridade superior que tomou conhecimento) para levantar elementos de razoabilidade. Com base nessas diligências preliminares, a autoridade poderá instaurar sindicância investigativa para recolher provas; as provas por sua vez, justificarão a abertura da ação disciplinar. Obviamente se a averiguação ou a investigação preliminar forem além da informação e lograrem obter provas, é possível saltar a etapa da sindicância, adotando-se diretamente a ação disciplinar.

Este é, em essência, um breve desenho do confuso modelo das apurações de irregularidades no serviço público, com a preocupação, aqui, de arrolar as diversas espécies de sindicâncias e, por derradeiro, estabelecer a conexão da sindicância investigativa com o processo disciplinar.


Notas

1 Em relação à possibilidade de sindicante único ou de comissão, confira exigência formal no estatuto ao qual estiver vinculado. Na administração pública federal a questão foi padronizada na Portaria CGU nº 335/2006. Dispensa-se, como regra, comissão.

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Sobre o autor
Léo da Silva Alves

Jurista, autor de 58 livros. Advogado especializado em responsabilidade de agentes públicos e responsabilidades de pessoas físicas e jurídicas. Atuação em Tribunais de Contas, Tribunais Superiores e inquéritos perante a Polícia Federal. Preside grupo internacional de juristas, com trabalhos científicos na América do Sul, Europa e África. É professor convidado junto a Escolas de Governo, Escolas de Magistratura e Academias de Polícia em 21 Estados. O autor presta consultoria às mais importantes estruturas da Administração Pública do país desde os anos 1990. Conhece os riscos da gestão e as formas de prevenir responsabilidades, o que o tornou conferencista internacional sobre matérias relacionadas ao serviço público.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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