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A Lei nº 11.143/2005 e a gratificação por tempo de serviço da Lei Orgânica da Magistratura Nacional:

direito adquirido ou eficácia imediata da norma superveniente?

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4. O princípio da eficácia imediata da lei e seus limites. Âmbito de eficácia da Lei n. 11.143/2005 e aplicação ao regime do ATS

Mas, ainda que não se evocassem as bases doutrinais do conceito de direito adquirido (que é esquivo e ― insista-se ― não está positivado em muitos países), bastando a todos a noção profana de "aquisição" de direitos, mesmo assim uma compreensão adequada dos problemas de Direito intertemporal conduziria àquele exato desfecho, harmonizando, com senso de Justiça e à luz da Ciência Jurídica, os princípios da irretroatividade e da eficácia imediata da lei. Vejamos.

Em matéria de sucessão de leis no tempo, a tese dominante na doutrina européia, lastreada sobretudo nas obras de SAVIGNY [35], ENNECERUS [36] e PLANIOL [37], é a de que os direitos subjetivos adquiridos e as situações legais já criadas sob o império da lei anterior subordinam-se imediatamente aos desígnios da lei nova; noutras palavras, as leis relativas à existência dos direitos [38] (ou aos atos de exercício de direitos [39]) não resistem à superveniência de lei que suprima todo um instituto ou que altere mais ou menos radicalmente o seu conteúdo (o que, para SAVIGNY, significava a retroatividade da lei nova, e para PLANIOL significava tão-só o efeito imediato da nova lei sobre os atos de exercício de um direito, sem traduzir retroatividade [40]). A lei nova não pode, contudo, pôr em questão o processo de aquisição ou de extinção de direitos subjetivos, nem o modo de criação ou exclusão de situações legais anteriores. Na perspectiva de SAVIGNY, a lei nova não afetaria as leis anteriores relativas à aquisição e perda dos direitos (vicissitudes); ou, na perspectiva de PLANIOL, a lei nova não se aplicaria aos fatos passados que criaram ou extinguiram direitos sob a égide da lei antiga. Está claro que, a despeito das divergências de concepção e terminologia, ambas as teses conduzem às mesmas soluções práticas ― e, indubitavelmente, o legislador brasileiro abeberou-se em tais doutrinas para construir o sistema brasileiro de direito intertemporal.

À vista disso, fica desde logo evidente o que são os "facta præterita" na matéria aqui versada. São fatos passados aqueles que criaram o direito a uma vantagem pecuniária acrescida ― o “qüinqüênio", nos termos do processo de aquisição regularmente estabelecido pelo artigo 65, VIII, da LOMAN. Cada qüinqüênio adicionado ao tempo de serviço do magistrado, a partir do seu ingresso no serviço público, configura um fato consumado, gerador de direito apto a ser de imediato exercido pelo titular (artigo 6º, §2º, da LICC). Já "facta pendentia" são os qüinqüênios incompletos, i.e., o tempo de serviço acumulado desde a última aquisição de ATS que, entretanto, não se completou à época da entrada em vigor da Lei n. 11.143/2005. Antes dessa data, todos os qüinqüênios completos devem ser considerados "facta præterita" (mesmo depois da promulgação da EC n. 19/98),à falta de lei ordinária estabelecendo os subsídios dos Ministros do STF (artigo 37, XI, c.c. artigo 48, XV, da CRFB) e, por conseqüência, os subsídios dos demais escalões do Poder Judiciário nacional (artigo 93, V, da CRFB), sendo, por isso, em tudo inaplicável a norma do artigo 39, §4º, da CRFB (porque até então não havia um "subsídio fixado em parcela única"). Mas os qüinqüênios incompletos em 27.07.2005 eram, nesse momento, "facta pendentia" sem efeitos atuais ― e, por força da lei nova, sem quaisquer efeitos futuros. Logo, devem se ter por definitivamente perdidos.

Voltando aos qüinqüênios já completos à data da entrada em vigor da Lei n. 11.143/2005, convém ter em conta a ressalva de FERREIRA FILHO e HELY LOPES MEIRELLES quanto à incolumidade dos direitos adquiridos (supra), notadamente quanto à parte já atuada: o legislador não poderia, sequer no exercício do Poder Constituinte derivado, prejudicar os "facta præterita" e os seus efeitos passados. Assim, qualquer texto legislativo ou postura administrativa que pretenda impor a devolução dos adicionais pagos a partir da EC n. 19/98, ou mesmo a partir de 01.01.2005 (por força da fixação retroativa a essa data [41]), até a data da publicação da Lei n. 11.143/2005, estará contaminada por irremediável inconstitucionalidade. A retroação legislativa pode circunstancialmente beneficiar os magistrados (na verdade, recompor o que foi subtraído com o fim do pagamento do abono variável [42]), mas nem por isso autoriza descontos que, na essência, prejudiquem os efeitos passados de direitos adquiridos.

Outro problema é o dos efeitos futuros dos "facta præterita", i.e., o da parte não-atuada do direito adquirido. Esse problema usualmente não se põe em direitos que se exaurem num só ato, como, p. ex., o direito de posse no cargo público ou o direito à tradição da coisa adquirida. Mas, em direitos reais (como, p. ex., o direito de propriedade [43]) e em direitos pessoais de satisfação continuada (como, p. ex., o direito às prestações contratuais ou, in casu, o direito ao ATS), surge a questão de saber se a lei nova pode modificar, restringir ou extinguir os efeitos futuros.

Como visto acima, opõe-se ao exercício indefinido de direitos subjetivos o princípio da eficácia imediata, pelo qual a lei nova poderia alterar imediatamente a substância dos direitos preexistentes, desde que não interferisse com as vicissitudes, i.e., com os fatos da aquisição ou da extinção do direito. Assim, p. ex., a lei nova não poderia, em princípio, retroagir para suprimir o efeito extintivo de um pagamento feito validamente sob o império da lei antiga [44], nem tampouco para excluir os efeitos dominiais da tradição realizada com aptidão translativa sob a égide da lei anterior; nada obstante, a "lex nova" poderia modificar o conteúdo do direito de propriedade assim transferido, embora a aquisição do direito real fosse já "factum præterito". Essa é, em síntese, a solução atual do Direito Civil português (artigo 12º do CC), que para tanto não precisou recorrer ao conceito de direito adquirido.

De se ver, porém, que mesmo aí há limites.

O primeiro parece ser a própria essência do direito que se adquiriu pelos "facta præterita". Embora o regime de irretroatividade favoreça apenas as vicissitudes (SAVIGNY), os direitos assim adquiridos não podem ter seus efeitos de tal modo abalados que a própria vicissitude pareça se apagar, sem vestígios, no mundo jurídico. Na dicção equilibrada de OLIVEIRA ASCENSÃO,

Se a vicissitude aquisição, uma vez verificada, não pode ser negada, já o direito subjectivo em si não está garantido contra uma actuação retroactiva da lei. Porque o conteúdo do direito não é imutável. O conteúdo do direito de propriedade pode ser modificado; o conteúdo dos direitos familiares também; e assim por diante. O que não se pode é suprimir uma propriedade, desconhecer um estado de família, ou proceder semelhantemente em relação a qualquer direito já adquirido. [45]

O segundo limite é dado pelas próprias fontes do Direito que atuam em paralelo. Essas fontes paralelas podem ser várias; assim, e.g., o costume (como, e.g., no caso da "colonia" ― tipo contratual tendente à aquisição de propriedade que, mesmo contra a lei, continuou por muito tempo a ser praticado na Ilha da Madeira [46]), o contrato, a própria lei (outra) ou ainda a Constituição. No exemplo de PLANIOL [47], se um direito de crédito está vinculado a um contrato, as relações jurídicas contratuais continuam sujeitas à lei em vigor no momento da conclusão do contrato ("tempus regit actum"), a despeito do novo regime instaurado pela lei subseqüente, em virtude da idéia de que foi o contrato ― e não a lei ― que estabeleceu aquelas relações jurídicas. Elas seguem regidas pela lei original, por força da vontade das partes, a não ser que razões de ordem pública estrita imponham o contrário. É que, diferentemente dos direitos reais (que têm uma existência independente do negócio jurídico que os criou ou transmitiu), os direitos pessoais têm sempre a configuração particular que lhes é dada no contrato do qual procedem, o que justifica que prossigam submetidos à mesma lei que o contrato (aqui tomado como "vicissitude"). Só não seria assim em relação aos direitos pessoais informados por mínimos irrenunciáveis, como ocorre nas relações de emprego.

No caso em testilha, é a própria Constituição que impõe um limite ao princípio da eficácia imediata da lei. Explica-se.

Nos termos do atual artigo 95, I, da CRFB, os juízes brasileiros gozam da garantia de "irredutibilidade de subsídio, ressalvado o disposto nos arts. 37, X e XI, 39, §4º, 150, II, 153, III, e 153, §2º, I" (g.n.). Considerando-se que os subsídios hão de ser pagos em parcela única, sem o acréscimo de qualquer gratificação, adicional, prêmio, abono, verba de representação ou outra espécie remuneratória (artigo 39, §4º), pareceria que, a se admitir o direito subjetivo às gratificações por tempo de serviço (o que é inarredável, desde que o beneficiário tenha cumprido a condição temporal), poderia ele ser reduzido ou até excluído, sem violação ao artigo 95, I, já que não se trataria de "subsídio". Mesma inteligência deriva, à primeira leitura, da própria LOMAN, antes mesmo da EC n. 19/98 ou da própria CRFB/88, porque o Capítulo I do Título IV da LC n. 35/70 distingue entre vencimentos e vantagens pecuniárias, sendo o ATS uma espécie de vantagem pecuniária, entre as tantas da tipologia do artigo 65; entretanto, a garantia da irredutibilidade refere-se, nos termos dos artigos 25 e 32 da LOMAN, apenas aos vencimentos.

Tais percepções são, todavia, enganosas.

A finalidade das garantias do artigo 95, III, da CRFB ― que são garantias da Magistratura (Capítulo I do Título II da LOMAN) e não da pessoa do magistrado ― é a de assegurar a independência dos membros do Poder Judiciário, de modo que possam julgar com liberdade e confiança, segundo o Direito e a sua consciência, sem temer represálias do Poder Executivo, do Poder Legislativo ou das próprias instâncias administrativas do Poder Judiciário. São notoriamente garantias republicanas, porque servem à convivência independente e harmônica dos três Poderes da República Federativa do Brasil (artigo 2º); mas também são garantias do agente político julgador em face das cúpulas hierárquicas e dos tribunais superiores [48]. Essas garantias permitem que o juiz decida sem temer demissões (vitaliciedade), remoções e transferências punitivas (inamovibilidade) ou perdas pecuniárias (irredutibilidade), que repercutem diretamente na subsistência pessoal e familiar. E, tendo essa função constitucional, hão de ser assim interpretadas, pois é esse o fim social do direito em causa (artigo 5º da LICC).

Com efeito,

é elemento a ponderar na interpretação o que podemos chamar a justificaçao social da lei [leia-se fonte]. A finalidade proposta carece de ser tida em conta. A ela deve ser adequada a regra resultante, porque todo o direito é finalista. Toda a fonte existe para atingir fins ou objectivos sociais. Por isso, enquanto se não descobrir o para quê duma lei, não se detém ainda a chave da sua interpretação. [49]

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Se a norma do artigo 95, III, da CRFB se ativesse aos vencimentos básicos do magistrado, continuaria ele, em alguma medida, à mercê de terceiros. Impor sucessivas derrotas judiciais a certo Governo poderia ser "perigoso", uma vez que, fora do manto da irredutibilidade, os adicionais por tempo de serviço e outras vantagens pessoais poderiam ser extintas "ex abrupto", por lei ou quiçá por ato administrativo, alegando-se dificuldades orçamentárias, reengenharia dos quadros de carreira, oportunidade ou conveniência, etc. Eventuais resistências resolver-se-iam no plano infraconstitucional, cabendo discutir se a fonte responsável pela extinção tinha ou não autoridade para fazê-lo, se o ato administrativo motivado determinou-se por esses motivos, se havia ou não direito adquirido, etc. Obviamente, a garantia constitucional da irredutibilidade destinou-se a debelar esse preciso grau de incerteza: uma vez alcançado certo patamar remuneratório estável (i.e., sem considerar vantagens de natureza precária, como os comissionamentos de função), tornar-se-ia ele desde logo irredutível, a despeito de quaisquer discussões acerca da aquisição ou da extinção de direitos. Por conseguinte, elastecer o alcance da letra constitucional para alcançar o ATS atende à justificação social do dispositivo e potencializa a independência e a imparcialidade dos juízes (interpretação teleológica). Ao contrário, proceder à interpretação literal estrita é empobrecer a garantia e deixar uma parte relevante da remuneração dos magistrados ao alvedrio de administradores e legisladores. Retira-se-lhes a tranqüilidade e o foco profissional ― como se vê ocorrer agora, quando a implementação dos subsídios pela Lei n. 11.143/2005 ameaça tolher os ATS, ainda que isso signifique reduzir remunerações globais, comprometendo a qualidade de vida dos juízes que estejam nessa condição. Fosse pacífica a irredutibilidade das vantagens pessoais, por força de texto constitucional ou de jurisprudência iterativa, seria outra a reação da Magistratura nacional aos possíveis efeitos deletérios da lei nova.

Um tal sentido de garantia está mesmo implícito na própria Lei n. 11.143/2005.

A lei consagra, nos artigos 2º e 3º, a gratificação pela prestação de serviço à Justiça Eleitoral, que tem previsão no artigo 65, VI, da LOMAN, e convalida o artigo 2º da Lei n. 8.350, de 28 de dezembro de 1991 [50]. À partida, se o artigo 39, §4º, da CRFB passa a vedar qualquer "gratificação, adicional, abono, prêmio, verba de representação ou outra espécie remuneratória" ― a ponto de extinguir as gratificações por qüinqüênio de serviço (artigo 65, VIII) e ainda, p. ex., a gratificação pela prestação de serviço à Justiça do Trabalho nas comarcas em que não estejam sob jurisdição de Varas do Trabalho (artigo 65, VII) [51] ―, a manutenção da gratificação eleitoral é de duvidosa constitucionalidade. Se, por outro lado, houver por bem admitir a constitucionalidade dessa gratificação [52], inclusive para os juízes que ingressarem após 27.07.2005, não há sentido em se recusar peremptoriamente a manutenção do ATS ― notoriamente dos que já eram pagos, devidos ou creditados por "facta præterita" ― com fundamento no precitado artigo 39, §4º.

Supondo, porém, a liceidade dessa gratificação (e a supomos, tal como é lícita a continuação do pagamento dos ATS adquiridos por "facta præterita"), a irredutibilidade dessa vantagem pecuniária emerge dos números da lei. Na primeira fase, em que o teto remuneratório será de R$ 21.500,00, a gratificação eleitoral corresponderá a 18% do subsídio do Juiz Federal (artigos 1º e 2º); na segunda fase, em que o teto remuneratório será de R$ 24.500,00, a gratificação eleitoral passa a ser de 16% do subsídio do Juiz Federal (artigo 3º). A redução percentual compensa o aumento proporcional dos subsídios, de modo que, na prática, o valor da gratificação eleitoral não apenas mantém-se, como sofre um ligeiro acréscimo. Assim, se o subsídio do Juiz Federal for Y em 2005, será de 1,1395.Y a partir de 01.01.2006 (uma vez que o percentual do subsídio mensal do Ministro do STF experimentará elevação de aproximadamente 13,95%); feitas as contas, a gratificação eleitoral, que era de 0,18.Y em 2005, passa a ser de 0,16.1,1395.Y = 0,18232.Y (ou seja, basicamente o que era no início, com pequeno sobejo). É patente, mesmo sob a égide do artigo 39, §4º, da CRFB, o propósito aritmético de manter o "quantum" daquela gratificação, ainda que ela não se subsuma, "ad litteram", ao conceito de "subsídio em parcela única"; não causará espécie, portanto, a idéia de que a irredutibilidade se espraiava, ainda que sutilmente, por todas as parcelas remuneratórias não-temporárias que compunham a remuneração dos magistrados antes da Lei n. 11.143/2005, impedindo a sua supressão.

Essas considerações não são cerebrinas, como à primeira audição soariam. Na verdade, a consulta à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal revela que, ao menos em uma oportunidade, o Excelso Pretório perfilhou uma interpretação extensiva do artigo 95, III, da CRFB, para incluir as vantagens de caráter pessoal (designadamente o ATS) sob o pálio da irredutibilidade de "vencimentos". Embora o voto do relator não refira o elemento teleológico, há pouca dúvida de que tenha sido essa a máxima (implícita) de decisão, acoroçoando o primeiro e principal argumento (de que a inclusão das vantagens pessoais no teto remuneratório feriria, à época, o texto do artigo 37, XI da CRFB). Leia-se:

MEDIDA CAUTELAR EM AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. INCLUSÃO DE VANTAGENS DE NATUREZA PESSOAL NO TETO REMUNERATÓRIO E CONSEQÜENTE REDUÇÃO DOS VENCIMENTOS DA MAGISTRATURA, EM PARTICULAR, E DO FUNCIONALISMO PÚBLICO, EM GERAL: INCISO II DO ART. 49 DA CONSTITUIÇÃO ALAGOANA, COM A REDAÇÃO DADA PELA EMENDA CONSTITUCIONAL N. 15, DE 02.12.96 (EFICÁCIA A PARTIR DE 01.01.97). 1. As vantagens de natureza individual, como os adicionais por tempo de serviço, entre outras, estão excluídas do teto remuneretário do funcionalismo público (CF, arts. 37, XI, e 39, §1º, in fine). Precedentes. 2. A Constituição Federal consagra o princípio da irredutibilidade dos vencimentos dos magistrados (art. 95, III), e bem assim os dos funcionários públicos em geral (arts. 7, VI, e 39, § 2º). 3. Pedido cautelar em ação direta de inconstitucionalidade deferido, em parte, para suspender a eficácia da expressão "inclusive as vantagens de caráter individual" contida no inciso II do art. 49 da Constituição alagoana, com a redação dada pela Emenda Constitucional n. 15, de 02.12.96, até o julgamento final da ação (ADIn-MC 1.550-8/AL, rel. Min. Maurício Corrêa, ASSOCIAÇÃO DOS MAGISTRADOS BRASILEIROS vs. MESA DA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO DE ALAGOAS, 16.12.1996 ― g.n.). [53]

No voto do Ministro relator, lê-se o seguinte:

O SENHOR MINISTRO MAURÍCIO CORRÊA (Relator): Senhor Presidente, a limitação dos vencimentos do funcionalismo público, dentro de um teto remuneratório que inclui as vantagens de caráter individual, contraria sucessivas manifestações desta Corte quando interpretou conjuntamente os arts. 37, XI, e 39, § 1º, in fine, da Constituição Federal, como citado na inicial. […] Além disto, implica, de um modo particular, na redução dos vencimentos de parte dos membros da magistratura alagoana, resguardada pelo art. 95, III, e de um modo geral, na redução de vencimentos de parte do funcionalismo em geral, resguardada pelos arte. 7, VI, e 39, § 2º, todos da Constituição Federal (g.n.).

Atente-se a que, naquela época (1996), embora ainda não houvesse a EC n. 19/98, já a LOMAN distinguia entre vencimentos e vantagens pecuniárias, para assegurar somente a irredutibilidade dos primeiros. Dir-se-ia que, para além da LOMAN, o Decreto-lei n. 2.019/83 garantiu a irredutibilidade dos adicionais de tempo de serviço (artigo 1º), tratando-se de norma de caráter nacional [54]. Mas isso tampouco seria verdadeiro in casu, porque o referido decreto-lei foi revogado expressamente muito antes de 1996, ainda em janeiro de 1989 (Lei n. 7.721/89), como visto acima (tópico 2). Isso significa que, transcendendo a literalidade da lei vigente (artigos 25 e 32 da LOMAN), o Supremo Tribunal Federal reconheceu, por decisão unânime do Tribunal Pleno, que a garantia da irredutibilidade, vazada no artigo 95, III, da CRFB, alcançava, "de um modo particular", as vantagens de caráter individual (exceto as de caráter temporário [55]) e, notadamente, os adicionais de tempo de serviço dos magistrados estaduais de Alagoas. Não poderia ser diferente em relação aos demais membros do Poder Judiciário brasileiro (magistrados de outros Estados, magistrados federais, trabalhistas, militares, etc.). E nem pode ser diferente, hoje, a interpretação do artigo 95, III, da CRFB, porque o seu texto, nessa parte, jamais foi alterado.

Aliás, é mesmo o texto do revogado Decreto-lei n. 2.019/83 que subministra um novo elemento para a interpretação que aqui se encaminha (elemento histórico). O seu artigo 1º dispunha que, em relação às gratificações de qüinqüênio, seria "observada a garantia constitucional da irredutibilidade". Está claro que o decreto-lei, com força de lei ordinária, não poderia fazê-lo. Não poderia estender uma garantia constitucional a parcelas não contempladas pela Constituição [56] ou pela LOMAN, se não por outra razão, porque ― mesmo sob a égide da Constituição de 1967/1969 [57] ― os direitos, deveres, prerrogativas e garantias dos magistrados deviam ser regulados exclusivamente por lei complementar. Já por isso, a parte final do preceito em comento seria de constitucionalidade duvidosa. Nada obstante, essa inconstitucionalidade jamais foi argüida. Bem ao contrário, "o fato é que o Supremo Tribunal Federal, como é notório, não só aplicou o dito decreto-lei, como, de resto, toda a magistratura federal" [58]. Ora, sendo o STF o guardião supremo da Constituição, supõe-se que não havia, no Decreto-lei n. 2.019/83, qualquer inconstitucionalidade. E, nesse caso, a única explicação plausível é de que, nessa parte, o Decreto-lei n. 2.019/83 era lei interpretativa do artigo 108, III, da Constituição de 1967 e do próprio artigo 32 da LOMAN. Quer-se dizer, com isso, que o Decreto-lei n. 2.109/83 realizou uma interpretação autêntica dos preceitos anteriores, ante a "tácita referência da nova fonte a uma situação normativa duvidosa preexistente" [59]; ou, a se negar a possibilidade de que a fonte interpretativa não seja hierarquicamente inferior à fonte interpretada [60], caberia ao menos reconhecer que o decreto-lei meramente concretizou, sem força vinculativa (que uma autêntica lei interpretativa teria), o que já estava implícito na disciplina constitucional e orgânica da irredutibilidade remuneratória. E, se era assim à luz da Constituição de 1967, nada justifica que o artigo 95, III, da atual Constituição desafie diversa interpretação, visto como, nesse particular aspecto, não inovou o texto ou o espírito (senão quando operou a substituição de "vencimentos" por "subsídio" [61]mas, ainda aí, sem efeitos notáveis nessa matéria, já que uma e outra expressão excluem, na sua literalidade, as vantagens pecuniárias pessoais).

Conclui-se, portanto, que o constituinte originário de 1988 disse menos do que pretendia dizer ao referir, no texto original do inciso III do artigo 95, apenas os "vencimentos" dos juízes. Esse divórcio entre a "lex scripta" e a "mens legis" prosseguiu após 1998, quando o legislador emendou a Constituição para fazer constar, no mesmo inciso III, apenas a expressão "subsídio". Antes e depois da EC n. 19/98, os elementos teleológico e histórico sugerem uma interpretação extensiva da norma constitucional (artigo 95, III), reforçada por decisão unânime do Pleno do STF (ADIn-MC 1.550-8/AL, 16.12.1996), para se compreender entre os "vencimentos" (redação original) ou o "subsídio" (redação atual) todas as vantagens pecuniárias licitamente adquiridas ao tempo do fato gerador (vicissitude), desde que não sejam ontologicamente precárias. E, por evidente, não pode ser outra a exegese do artigo 32 da própria LOMAN.

Conseqüentemente, ainda que se admitisse a eficácia imediata da Lei n. 11.143/2005 para os fins do artigo 39, §4º, da CRFB, sem a ela contrapor o conceito de direito adquirido (tópico 3), e ainda que, "ad argumentandum tantum", essa eficácia imediata não comprometesse a incolumidade essencial de um direito fundamental, mesmo então os adicionais de tempo de serviço não poderiam ser simplesmente expurgados da folha de pagamento dos juízes, porque isso é obstado por uma fonte superior de Direito que atua em paralelo: a própria Constituição Federal (ou, mais propriamente, um comando dessa fonte, ínsito ao seu artigo 95, III). A conclusão não se altera ao se considerar que a "eficácia imediata" não é da Lei n. 11.143/2005, mas do artigo 39, §4º, da CRFB, cujo comando "dormitava" no aguardo da lei ordinária referida no artigo 48, XV. É que, mesmo nesse quadro, as garantias de independência da Magistratura (artigo 95) exsurgem como consectários do princípio republicano da separação de Poderes, como há pouco dissemos. Não podem ser revogadas ou tisnadas, sequer por emenda constitucional (que, se o fizer, será inconstitucional, por tendente a abolir a separação dos Poderes ― artigo 60, §4º, III, da CRFB). Então, interpretar o artigo 39, §4º com vistas à derrogação do artigo 95, III (quanto ao ATS) é interpretá-lo de forma a engendrar inconstitucionalidade, o que não se admite.

Logo, a garantia da irredutibilidade, que é extensível ao ATS, assegura a manutenção dessa vantagem pecuniária no patrimônio jurídico dos juízes que já a tenham adquirido, no modo e pelo número de parcelas que eram pagas, creditadas ou devidas mensalmente até a entrada em vigor da Lei n. 11.143/2005. Ou, na pior hipótese (e, já aqui, caminha-se para uma interpretação construtiva), reciclando-se a prestigiada tese da irredutibilidade pela globalidade remuneratória [62], as gratificações de qüinqüênio haveriam de ser mantidas e percebidas como vantagem pessoal inalterável no seu "quantum" (congelamento), até a sua absorção pelos futuros reajustes dos subsídios (o que não tardaria, graças à periodicidade anual dos reajustes, ao menos nos termos do artigo 37, X, in fine, da CRFB [63]). Repristinar-se-ia, por via hermenêutica, a norma do artigo 145 da LOMAN [64] (que esgotou seu âmbito de aplicação material), desta feita para os fins do artigo 39, §4º ― ou também para os fins do artigo 37, XI, da Constituição, a prevalecer a tese do direito adquirido sobre as razões de ordem pública que impuseram o teto remuneratório [65].

*******

Disso tudo resulta que, em primeiro lugar, o fato de o magistrado ter ingressado na carreira quando ainda era lícito acrescer aos vencimentos as "vantagens" do artigo 65 da LOMAN não lhe garante, indefinidamente, o direito a esse regime remuneratório. É dado ao legislador alterar ― até visceralmente, como foi o caso ― esse regime e, com isso, frustrar direitos subjetivos e expectativas de direito que em tese dimanariam do "factum præterito" em sentido amplo (= o ingresso nos quadros do Poder Judiciário). Ou, perfilhando uma tese muito cara ao Excelso Pretório (que, todavia, deve ser acolhida "cum grano salis", como já pontuamos noutro local [66]), não há direito adquirido a certo regime jurídico [67].

Em segundo lugar, impende temperar a primeira premissa e pontuar, com HELY LOPES MEIRELLES que, "desde que não haja redução, não é vedada a alteração de critérios legais de fixação do valor da remuneração ou do regime legal de cálculo ou reajuste de vencimentos ou vantagens funcionais" [68]. Noutras palavras, se o regime remuneratório não se incorpora indefinidamente ao patrimônio do servidor, as vantagens adquiridas durante a sua vigência são a ele incorporadas, por força dos "facta præterita" que determinaram o direito a cada uma delas (in casu, os qüinqüênios trabalhados desde o ingresso no serviço público ou na advocacia, até o máximo de sete) [69]. Negar essa blindagem e, sem mais, suprimir os ATS conquistados equivaleria a ignorar aquelas vicissitudes (os qüinqüênios trabalhados), como se nunca houvessem existido.

Dissemos alhures (tópico 3) que as restrições aos efeitos futuros do fato jurídico devem ser ponderadas, de modo a não sacrificar por inteiro as expectativas e a condição atual de vida dos interessados, ainda que tais restrições efetivamente se imponham, a bem do interesse público. Há que mediar o conflito, que contrapõe os direitos adquiridos ao interesse geral na moralização da função pública, recorrendo ao princípio da proporcionalidade [70]. E a sua aplicação, ao menos nessa matéria, deixa pouca margem às dúvidas de concreção: suprime-se o direito futuro à aquisição de novos adicionais e recusam-se quaisquer efeitos aos "facta pendentia", mas garante-se o direito à percepção continuada dos adicionais já pagos, devidos ou creditados (decorrentes de "facta præterita"), até o limite constitucional inflexível do artigo 37, XI, da CRFB (in casu, o subsídio mensal dos Ministros do STF) [71]. À mesma equação conduz a análise das limitações concretas à eficácia imediata da Lei n. 11.143/2005 (inclusive no que tange aos efeitos do artigo 37, XI, e 39, §4º, da CRFB), a saber, a incolumidade essencial do direito adquirido (in abstracto e in concreto) e a garantia da irredutibilidade remuneratória. Do contrário, tal como demonstrado supra, interpreta-se a norma do artigo 39, §4º, da CRFB em contrariedade àquela do artigo 5º, XXXVI, da mesma Carta (e, entre ambas, essa última certamente há de prevalecer). Mas, para além disso, sobrevaloriza-se intransigentemente o princípio da eficácia imediata da lei, sem harmonizá-lo com o princípio da irretroatividade, que antes é tendencialmente debelado do sistema [72] ― quando a rigor foi esse, e não aquele, que mereceu privilégios na lavra do constituinte originário.

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Sobre o autor
Guilherme Guimarães Feliciano

Professor Associado II do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Juiz Titular da 1ª Vara do Trabalho de Taubaté/SP. Doutor pela Universidade de São Paulo e pela Universidade de Lisboa. Vice-Presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho – ANAMATRA.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FELICIANO, Guilherme Guimarães. A Lei nº 11.143/2005 e a gratificação por tempo de serviço da Lei Orgânica da Magistratura Nacional:: direito adquirido ou eficácia imediata da norma superveniente?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 791, 31 ago. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7230. Acesso em: 6 mai. 2024.

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Trabalho baseado em parecer jurídico elaborado pelo autor a pedido da Presidência da Associação dos Magistrados do Trabalho da 15ª Região, em julho de 2005.

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