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Reflexões acerca da responsabilidade penal do médico

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12/09/2005 às 00:00

Resumo:


1. Responsabilidade Penal do Médico:



  • A responsabilidade penal do médico envolve a consideração de questões como o exercício da medicina, a experimentação, e a obtenção de consentimento do paciente.

  • A culpa penal do médico é um pressuposto necessário para a responsabilização penal, sendo necessário analisar se houve dolo ou culpa na conduta do profissional.

  • O descumprimento das normas regulamentares da profissão médica não enseja automaticamente a responsabilidade penal do médico, sendo necessária a comprovação do nexo de causalidade com o resultado lesivo.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

3. RESPONSABILIDADE PENAL E DESCUMPRIMENTO DA LEX ARTIS

            Vimos que há culpa, no sistema do Código Penal Brasileiro, quando o autor dá causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia. É a caracterização da imperícia na fixação da culpa do médico que oferece mais dificuldades ao juiz, tendo em vista a necessária investigação sobre o correto proceder técnico do profissional.

            A lex artis - definida por Casabona como as regras que, em consonância com o estágio do saber atual de determinada ciência, ´´marcan las pautas dentro de las cuales han de desenvolverse los profisionales´´ [22] - serve de parâmetro, não só para a verificação da imperícia no caso concreto (correção da escolha do meio mais adequado para atingimento do fim perseguido + perquirição da previsibilidade do evento danoso), mas também para exame de outros elementos formais do crime, por exemplo, se o agente agiu no exercício regular de um direito (o que exclui a ilicitude, apesar do dano; onde ´´regular´´ = ´´conforme a lex artis´´); ou ainda se, tendo em vista as circunstâncias que envolveram o evento (informações obtidas do paciente, equipamentos disponíveis, condições de salubridade do local, situação de emergência), o médico conduziu-se como lhe poderia ser exigido, considerando-se mais uma vez a lex artis (verificação de eventual inexigibilidade de conduta diversa, excludente da culpabilidade).

            Em artigo intitulado "a culpabilidade do médico e a lex artis", Gilberto Baumann de Lima [23] observa que, a rigor, toda intervenção cirúrgica importa em lesão corporal. Mas tal lesão não será ilícita se praticada pelo profissional no exercício regular do direito de exercer a medicina. Ao contrário, caracterizada estará a ilicitude se a lesão não estiver "abrangida nos casos aconselhados pela arte médica".

            Quanto à exigibilidade de conduta diversa, observa o autor que (além dos aspectos já acima mencionados) é de ser considerado o perfil do médico envolvido, uma vez que "o leque de opções que se abre ao médico formado por uma sofisticada faculdade de medicina é significativamente maior do que se apresenta ao facultativo diplomado por uma instituição modesta de ensino médio". O tema é interessante pois envolve a noção de previsibilidade subjetiva, conceito necessário à apuração da culpabilidade.

            De fato, enquanto a existência da culpa pressupõe a previsibilidade objetiva, verificada a partir do comportamento esperado do homem médio, a culpabilidade decorre da previsibilidade subjetiva, a qual é "apurada considerando-se as características individuais do agente, segundo suas aptidões pessoais e na medida de seu poder individual de prever o resultado" [24] A questão é controversa, tendo como contraponto a apuração da responsabilidade penal do profissional dotado de excepcional capacidade e reputação. Quanto a este profissional, há responsabilidade penal se deixa de realizar, no caso concreto, uma intervenção muito superior que a que seria esperada do profissional médio, mas compatível, por outro lado, com a sua reputação? [25]

            Ainda sobre os critérios que devem nortear o juiz no exame da adequação da conduta do médico à lex artis, observa Evaristo que, quando o ato lesivo em julgamento pelo tribunal decorrer de práticas que sejam objeto de discussões acadêmicas ou científicas, os magistrados devem abster-se de proferir uma condenação.

            "Os penalistas contemporâneos mantêm este entendimento de que o médico possui a liberdade, desde que atue em consonância com a denominada lex artis, de adotar o método de tratamento, dentre os vários pertinentes, que entender adequado ao caso concreto, independentemente de ser um critério majoritário, ou não, já que ´´as normas democráticas poco valen en la ciencia´´ (Quintano Ripolles, apud Carlos Maria Romeo Casabona, "El medico y el Derecho Penal - La Actividad Curativa", 1981, p. 240/1). E ao juiz não cabe fazer apreciações, para fins condenatórios, ´´o en favor o en contra de una dirección de escuela´´, sob pena de vulnerar ´´la mencionada libertad de método´´ (Casabona, ob.cit., p. 240)" [26]

            Vê-se que a exclusão da culpa penal do médico que age seguindo os comandos da lex artis não enseja dúvidas, muito embora possamos salientar que a conduta conforme a lex artis exclua tão somente a imperícia, sendo possível que a culpa advenha de imprudência ou negligência do médico, não ligadas diretamente à perícia profissional.

            Discute-se outrossim a relevância penal do descumprimento pelo médico das normas regulamentares que regem a profissão. O descumprimento de regulamentos, por si só, autoriza a imputação de culpa penal?

            Nelson Hungria observa que o Código Penal de 1940 não previu que a conduta de "não observar disposições regulamentares" ensejasse culpa. O Código Penal de 1890 admitia a culpa presumida iuris et de iure daquele que agisse com "inobservância de alguma disposição regulamentar", o que levava indiscutivelmente à responsabilidade penal objetiva. Para Hungria, a inobservância de disposição regulamentar pode fazer presumir a culpa, mas tal presunção é iuris tantum, ou seja, admite prova em contrário. Não obstante, o ônus de provar que, apesar de ter havido descumprimento de disposição regulamentar por parte do agente, tal descumprimento não foi causa do evento danoso, é da defesa: "o princípio a ser fixado é o seguinte: não vingará a presunção de culpa, se se provar que a inobservância da disposição regulamentar não foi causa, mas simples ocasião ao evento lesivo". [27]

            Entendo que, tanto no que se refere ao descumprimento da lex artis, quanto à inobservância de regulamentos (incluídas aí as normas do Código de Ética Médica), o descumprimento pelo médico, apesar de ser indicativo de uma conduta ilícita, não enseja responsabilidade criminal, se não houver comprovado nexo de causalidade entre a conduta ilícita e o resultado lesivo [28]. Como consigna Hungria, a inobservância da disposição regulamentar, para ensejar a culpa penal, deve ser causa, e não simples ocasião ao evento lesivo. Discordo apenas do eminente jurista, quando desloca o ônus de provar a não-culpa para a defesa. O ônus de provar a ocorrência dos elementos do tipo penal, no caso concreto, é da acusação. Assim, não basta invocar descumprimento de disposição regulamentar para extrair presunção de culpa. Deve haver prova: 1. De que o réu agiu com imprudência, negligência ou imperícia; 2. De que a conduta culposa do réu causou o resultado danoso.

            Examinemos, como exemplos de desrespeito às normas regulamentares da profissão médica, a não obtenção do consentimento livre e esclarecido do paciente e o exercício da medicina por profissional fora de sua área de especialização.

            Já vimos que informar de maneira completa o paciente do diagnóstico e prognósticos referentes à moléstia, com o fim de obter seu necessário consentimento para a intervenção pretendida pelo médico, é dever imposto no Código de Ética Médica aprovado pelo Conselho Federal de Medicina.

            Esta regra sofre temperamento, quando não for possível ao médico dar plena ciência dos fatos e obter consentimento, em situações de comprovada urgência, ou ainda se houver avaliação de que a informação poderá causar tal impacto psicológico no paciente que prejudique a evolução do tratamento [29].

            Jorge Figueiredo Dias e Jorge Sinde Monteiro dão notícia de que, em Portugal, o art. 43 do Código Deontológico da Ordem dos Médicos só dispensa o médico de prestar esclarecimentos ao paciente e obter seu consentimento livre e consciente em face do "risco para a finalidade terapêutica". Determina ainda o Código que "o diagnóstico fatal só pode ser revelado ao doente com as precauções aconselhadas pelo exato conhecimento do seu temperamento e da sua índole moral", devendo nesse caso ser revelado ao familiar mais próximo, a não ser que o paciente o tenha expressamente proibido de fazê-lo [30].

            É também neste sentido a lição de Paul Monzhein, discorrendo sobre a responsabilidade do médico no sistema francês:

            "As reações psicológicas dos doentes, em presença de informação muito precisa, podem, com efeito, muitas vezes prejudicar uma possível recuperação. Em qualquer hipótese, pretender a todo o custo obter um consentimento esclarecido e perfeitamente consciente do doente resultaria em tornar ininterpretável o resultado do tratamento com a intromissão de um dado psíquico do qual se ignoram a manifestação e o valor. Na maioria dos casos, pode-se admitir que o médico assuma sozinho, com opinião de seus ajudantes e de sua equipe, a responsabilidade de informar mais ou menos completamente o doente (...) A perspectiva de uma evolução fatal de doença pode autorizar audácias que em outras circunstâncias seriam criminosas" [31].

            Note-se que tanto em Portugal quanto na França a intervenção médica sem consentimento do paciente enseja responsabilidade penal no médico, independentemente de imperícia ou mesmo de resultado danoso. Em Portugal, a intervenção arbitrária, levada a cabo sem consentimento comprovadamente livre e esclarecido do paciente, constitui crime contra a liberdade, punível com prisão de até três anos e multa. Na França, a criminalização da conduta do médico que descumpre regra ética de dar ciência prévia ao paciente ou à família de suas decisões encontra assento no fato de que a "inobservância dos regulamentos" é equiparada à imprudência, negligência e imperícia, para aferição de culpa penal [32].

            No Brasil, não havendo tipo penal específico a respeito da intervenção médica sem consentimento do paciente, o chamado "tratamento médico arbitrário" poderá ser tipificado como constrangimento ilegal (art. 146 do Código Penal). A previsão de excludente de tipicidade do art. 146, § 3o, I, autoriza a interpretação de que a contrario sensu, ou seja, se não houver o iminente perigo de vida, a intervenção médica ou cirúrgica sem o consentimento do paciente caracteriza o ilícito descrito no caput do mesmo artigo. De qualquer modo, o crime em análise pressupõe que o agente tenha constrangido a vítima mediante violência, grave ameaça, ou redução de sua capacidade de resistência por qualquer outro meio (v.g., ministrando-lhe narcóticos).

            López Bolado defende que a intervenção médica, ainda que desconsidere a recusa explícita do paciente, não é necessariamente ilícita. Se o médico tem o ânimo de cura, e se de fato o resultado de sua intervenção é benéfico, a violação do bem jurídico ´´liberdade do paciente´´ justifica-se pela proteção ao bem jurídico mais valioso ´´vida ou saúde´´. [33] Em contrapartida Nelson Hungria defende que, no sistema do código penal brasileiro, só é lícita a intervenção que se apresente "necessária, urgente, inadiável, para conjurar a iminência da morte do paciente." Consigna ainda o autor que intervenções cirúrgicas não autorizadas podem tipificar, não o tipo de constrangimento ilegal, mas o de lesão corporal dolosa, podendo ser citado o exemplo da ligadura de trompas não autorizada pela paciente, levada a efeito pelo médico durante a cesariana [34].

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            Finalmente, ainda no tocante ao consentimento do paciente, cumpre ressaltar que não constitui o mesmo causa excludente de ilicitude que isente o médico dos efeitos penais decorrentes da prática de um crime. Cite-se os exemplos do aborto, eutanásia, auxílio ao suicídio, eugenia, etc.

            Já quanto ao exercício da medicina fora da área de especialização do médico, tal conduta caracteriza em si crime de exercício ilegal de medicina, previsto no art. 282 do Código Penal Brasileiro: "exercer, ainda que a título gratuito, a profissão de médico, dentista ou farmacêutico, sem autorização legal ou excedendo-lhe os limites".

            A par disso, o Código de Ética Médica veda que o profissional anuncie "especialidade para o qual não esteja qualificado" (art. 135). O crime de exercício ilegal de medicina na modalidade de "exceder os limites" é próprio dos médicos (ou dentistas ou farmacêuticos), pressupõe habitualidade e é crime de perigo, o que significa que sua consumação independe de dano efetivo praticado pelo médico no exercício irregular da profissão. [35] Assim, o resultado positivo da intervenção médica não impede a consumação do crime, muito embora eventual situação de urgência que justifique a intervenção do médico não habilitado, ainda que habitual, o exclua (por caracterizar estado de necessidade). Por exemplo, um único médico que resida em uma cidade do interior e preste atendimento à população carente, atuando fora de sua especialidade.

            Não obstante isso, é de se perquirir se o dano provocado no exercício da medicina pelo profissional não especializado naquela área lhe pode ser atribuído independentemente da investigação de culpa no caso concreto. Entendo que não. Como já defendi acima, o mero descumprimento de normas regulamentares que regem a medicina não autoriza presunção de culpa por evento danoso provocado pela conduta médica. Ainda que o exercício da medicina fora da especialização ou por médico não registrado regularmente nos órgãos competentes ou mesmo com o registro profissional suspenso (crime previsto no art. 359 do Código Penal) possam caracterizar crimes autônomos, não são suficientes para responsabilização penal do médico pelo eventual resultado lesivo de sua conduta, independentemente de comprovação da culpa no caso concreto (violação de dever de cuidado + previsibilidade do resultado danoso).

            Pode-se sustentar que o fato de o médico estar atuando na área em que não é especializado aponta para uma maior possibilidade de que tenha agido com imperícia. Mas tal afirmação não dispensa a demonstração de que o profissional, no caso concreto, foi imperito.

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Sobre a autora
Simone Schreiber

juíza federal da 5ª Vara Criminal Federal do Rio de Janeiro, professora de Direito Processual Penal da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), doutoranda em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SCHREIBER, Simone. Reflexões acerca da responsabilidade penal do médico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 801, 12 set. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7271. Acesso em: 23 dez. 2024.

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