Pode-se dizer que uma das funções mais fundamentais designadas às disciplinas propedêuticas é a de servir, diante do Direito Positivo, como a consciência crítica dos operadores do Direito (GROSSI, 2004), tendo a função “de problematizar o pressuposto implícito e acrítico das disciplinas dogmáticas, ou seja, o de que o direito de nossos dias é o racional, o necessário, o definitivo” (HESPANHA, 2009, p. 21). A função crítica do estudo propedêutico do fenômeno jurídico deve trazer, portanto, visões alternativas sobre os tradicionais objetos de estudo do direito e ainda abrir espaço para novas questões que podem ser analisadas sob o ponto de vista jurídico, inseridas na linguagem jurídica. O presente artigo busca explorar os limites da linguagem definidora do jurídico e do não-jurídico a partir da análise histórico-literária da obra do autor norte-americano Henry David Thoreau e do seu contexto.
Existe um Estado em expansão. O contexto é a metade do séc. XIX. Os Estados Unidos têm um projeto nacional-expansionista; defendem a criação de um exército permanente e promovem intencionalmente uma guerra contra o México. Um sexto da população é composta por escravos e, através de leis, o governo de Massachusetts condena criminalmente aquele que ajuda escravos fugidos. As instituições políticas Estatais passam a regular a vida do indivíduo de forma mais frequente em uma época que isto ainda causava estranheza. O indivíduo, portador de um potencial moral original e espontâneo, é impedido formalmente de exercer uma conduta própria; é obrigado por lei a auxiliar o Estado na guerra contra o México e é proibido de auxiliar um ser humano em condição de escravidão a se libertar. Esse homem sofre uma coação irresistível a todo o instante.
A população acompanha sempre os resultados da guerra e as votações das leis através da imprensa. O jornal diariamente enlaça as pessoas com a casa do governo, com as exportações e importações, com os heróis de guerra e suas conquistas. A política e o legislador decidem não sobre valores humanos, mas valores financeiros, sobre o comércio e sobre os impostos. A lei do Estado define o homem que é livre e o que é escravo, mas não é a lei que liberta o homem; nestas condições, é o homem que deve se libertar da lei. Quando tudo na sociedade gira em torno do pensamento econômico, as pessoas passam a medir suas vidas e seu tempo pela utilidade e pelos resultados. Trabalho e produção, ordem e progresso, a nação levanta uma bandeira, um projeto, e os homens marcham para o oeste, por ouro e por riqueza. Entre os indivíduos o que há é o comércio, nas eleições é um façam suas apostas, o diário de notícias é a nova bíblia – e é no Diário que se perde a compreensão do Eterno.
É assim que se apresenta o contexto social que o pensamento de Thoreau se contrapõe (THOREAU; PAUL, 1962; THOREAU; DREISSER, 1965) e é esse panorama que se deve levar em conta para analisar os antagonismos entre a literatura vanguardista americana de moralização e elevação do humano no político e no social e os movimento políticos proto-intervencionistas presentes na ordem liberal americana da primeira metade do século XIX.
A percepção histórica de que a mentalidade política americana do século XIX representava o que haveria de mais instrumental, mais moderno e economicamente mais progressista em todo o mundo foi ressaltada não só pelo senso comum, mas também por grandes autores. Max Weber, ao visitar os Estados Unidos em 1904 descreveu um contexto único que caracterizava o cúmulo de uma cultura social produzida durante todo o século anterior. Em carta a sua mãe, Weber observara:
Depois do trabalho, os operários freqüentemente têm de viajar horas para chegar à sua casa. A estrada de ferro está falida há anos. Como sempre, um depositário, que não tem interesse em apressar a liquidação, administra seus negócios; por isso não são comprados vagões novos. Os carros velhos constantemente enguiçam, e cerca de 400 pessoas por ano morrem ou ficam aleijadas em desastre. Segundo a lei, cada morto custa à companhia cerca de 5.000 dólares, pagos a viúva ou herdeiros, e cada aleijado custa cerca de 10.000 dólares, pagos ao próprio. Tais indenizações são devidas enquanto a companhia não adotar medidas de precaução. Calculou-se que as 400 mortes por ano custam menos do que as tais precauções necessárias. E, por isso, a companhia não as adota (WEBER apud AMORIN).
Este estereótipo de comportamento social instrumental e burocrático, pautado em poucos valores sociais e muita racionalidade, dá à nação americana uma imagem de progresso em direção ao individualismo exacerbado e a uma forma radical de um liberalismo que se esquiva à regulação estatal e social. Esta característica, ressaltada pelos estrangeiros, foi, em maior ou menor medida, assumida pela sociedade americana e criticada com grande força pelos filósofos transcedentalistas da Nova Inglaterra.
Uma questão radical que exige uma especial problematização é o discurso anti-estatal que objetivará ampliar os direitos individuais de liberdade contra a intervenção do Estado e mesmo através da desobediência civil, como indica o mais famoso texto político do filósofo Henry D. Thoreau.
A partir desta contingência histórica de expansão da intervenção estatal que a importância do texto-problema – A desobediência civil, ou Os direitos e deveres do indivíduo em relação ao governo – se destaca.
A fundamentação do texto se coloca como universal e transcendental, em torno da natureza humana, mas o fenômeno que ele representa está claramente relacionado a uma contingência. O fenômeno é situado em um contexto identificável e relacionado a conceitos próprios de uma época que pode ser descrita através de tais termos como “expansionista”. Destaca-se neste sentido o desenvolvimento, ainda que inicial, de uma burocratização estatal, mas também em termos de mercado, a concentração de poderes pela União em detrimento aos Estados e o fortalecimento das funções estatais no campo da economia e da regulação sobre aspectos da sociedade antes pouco significativos (regulamentação comercial, urbana, ferroviária, etc.).
Com o objetivo de discutir a questão da desobediência civil e amplificar a análise dos fenômenos jurídicos em torno desta, é que se deve buscar uma releitura histórica e filosófica do problema exposto, através do estudo dos textos de expressão politicamente liberal da corrente de pensamento conhecida como transcendentalismo na literatura americana do século XIX.
Além do notável valor filosófico dos textos, também o contexto é extremamente rico e diverso. Os Estados Unidos desses tempos traz consigo tradições e características construídas por uma história relativamente recente de independência, revolução e consolidação política e econômica e esse conjunto de características se quer e se faz mostrar muito desvinculada do padrão europeu de pensamento político e jurídico.
Destacadamente, o período definido como “renascimento americano” enuncia a singularidade do ambiente cultural dos EUA, sua emancipação e sua potencialidade1. É nos discursos realizados pelos “letrados americanos” que se encontravam fundidos os debates sobre os deveres civis, sobre o direito natural e sobre a democracia popular, mas também sobre a religião, a moral e a ciência modernas, tudo, em geral, sem profundas distinções entre as propostas científico-filosóficas, as criações da estética artístico-literária e até mesmo o ministério religioso.
Para uma análise densa de um texto-problema como este acima, aspectos que destacam a autonomia da obra literária devem ser destacados. Foi de maneira muito diversa, em comparação com os juristas e filósofos europeus, que os escritores americanos expuseram os problemas de uma época marcada pelo desenvolvimento econômico, pela expansão estatal, pela escravidão e pela perplexidade do homem comum perante o desencantamento do mundo.
Não foi através de uma rigorosa análise teórica que esses autores manifestaram suas posições e trouxeram suas propostas para o público e para o debate político, mas sim, por via de um sincretismo discursivo que se caracteriza pelo apelo retórico embasado na fusão entre filosofia (política, da história, da ciência) com a literatura de prosa e de poesia. Assim, diferentemente da leitura lógica e formal – de uma hermenêutica analítica – lançada sobre os textos jurídicos da tradição européia – marcados pela especificação dos termos e dos elementos teóricos delimitados em disciplinas cientificamente estruturadas – a interpretação dos textos aqui estudados, dos transcendentalistas norte-americanos, deve seguir então os mesmos critérios retóricos destes discursos enunciados, através de uma indissociação entre os gêneros da filosofia e da literatura – por uma hermenêutica sintética, por assim dizer.
Em outras palavras, para a melhor compreensão de um texto que enuncia conteúdos essencialmente filosóficos (da teoria política e do Direito) estruturados em um discurso amplamente retórico, deve-se levar em consideração que a análise dedicada ao texto não pode buscar um enquadramento cientifico paralelo ao modelo de análise adotado pela ciência do Direito positivo, e que as propostas daqueles textos transcendentalistas dificilmente se mostram teórica e logicamente estruturadas de modo a derivar suas conclusões “verdadeiras” das suas premissas “verdadeiras”; mais do que isso, buscam o sucesso retórico de suas posições através dos mais diversos recursos literários.
Por isso aqui já se propõe uma junção entre a análise literária e a análise filosófica para a interpretação de um texto de tais características, pois “assim como a filosofia e a ciência não constituem universos próprios, tampouco a arte e a literatura constituem um império da ficção que pudesse afirmar sua autonomia em face do texto universal” (HABERMAS, 2002, p. 268)2 e, desta forma, tanto a lógica quanto a retórica do discurso são elementos significativos para o estudo desses textos.
Esta base de análise literária serve não somente aos textos transcendentalistas, mas também para a interpretação compreensiva das diversas fontes escritas utilizadas nas pesquisas históricas e literárias acerca do direito.
As propostas dos filósofos como Emerson e Thoreau para a sociedade americana pertenciam com um maior ou menor grau de independência a uma corrente de pensamento comum na Nova Inglaterra, chamada de transcendentalismo. As escolas americanas do inicio do século XIX debatiam doutrinas morais e filosóficas que de certa forma contrapunham a produção intelectual dominante na Inglaterra, o empirismo epistemológico e o utilitarismo moral. Logo, a formação cultural e acadêmica dos pensadores liberais americanos como os transcendentalistas seria profundamente envolvida pela negação da tabula rasa, e a construção de uma proposta moral baseada no pensamento do indivíduo que percebe as verdades filosóficas através do exercício do próprio entendimento. Nas palavras de Howard:
“It [a tabula rasa] violated the well-established American belief in self-evident truths, and Harvard would have none of it as an absolute principle. The hard-headed New Englander was willing to assume that the external world was self-evident real, most of then were quite willing to accept God on the same basis, and they have found a school of kindred souls in Scotland who were willing to assert as much in an aggressive philosophical system” (1972. p. 138).
A base do pensamento moral e filosófico dos liberais americanos da corrente de Emerson e de Thoreau se sintetiza na doutrina que diz que a verdade é manifesta3 e acessível ao senso comum por todos os homens. O próprio Emerson conheceu a chamada Scottish Common-Sense school of philosophy, que defendia que todos os seres humanos, em todos os tempos e lugares, tinham um senso comum de realidade, de moralidade e de beleza ideal, destacando o papel determinante de toda a cultura sobre os aspectos da hermenêutica, da estética e da ética4.
Para Emerson, portanto, a consciência agiria como uma faculdade racional que transcendia o entendimento lockeano e daria acesso à natureza, ao conhecimento material do mundo através do conhecimento do próprio espírito da razão humana. O estudo da essência humana e da natureza se dá na relação entre esses dois elementos – o homem e a paisagem – mediados pelo pensamento. O conhecimento filosófico que é típico da cultura americana é a ênfase do estudo da natureza como fonte da verdade. Na análise de Fernandes Alves,
Se na tradição inglesa as primeiras obras se reportam aos séculos XVII e XVIII, na América a escrita sobre natureza surge associada à curiosidade acerca do Novo Mundo descoberto. Aos exploradores, cientistas e naturalistas eram pedidos mapas e inventários; dessas acções resultou a ideia de que a América era sobretudo natureza. Na base da escrita sobre a natureza encontra-se a vontade de narrar uma realidade completamente nova aliada à procura de palavras e perspectivas que efectivamente traduzam essa nova circunstância do homem no Novo Mundo. Consequentemente, a natureza e a forma – paradoxal – como tem sido lida e interpretada constitui um elemento essencial da matriz cultural americana (2006).
Esse conhecimento da existência não se confunde com o conhecimento das ciências exatas (ou naturais). Ele se baseia na vivência da natureza e da humanidade, não é uma experiência empírica objetiva. A experiência da paisagem, dos próprios atos e pensamentos pertence ao universo das sensações, mas não pode ser mesurada ou determinada em quantidades.
Não nos pode surpreender, portanto a ocorrência cultural de uma espécie de “regresso à natureza”, levado, por vezes, a formas radicais, como foi o caso do isolamento de Thoreau, durante dois anos, num bosque nas vizinhanças do lago Walden, perto de Concord, no Massachusets. Na obra que esse influente pensador norte-americano dedicou ao seu exílio voluntário numa paisagem, nessa altura, ainda natural, as razões apresentadas apontam para um dos desiderados patentes noutras meditações filosóficas sobre a paisagem, a saber, o desejo por uma vida autêntica e plena (SOROMENHO-MARQUES, 2001, p. 153).
É a partir do juízo crítico, da reflexão, que o filósofo transcedentalista encontra em si a idéia de transformação e de reconstrução como exigência.
Este é o âmago do livro de Thoreau; o autor parte da natureza para fazer o homem olhar-se a si mesmo, ou seja, o seu pensamento responde às associações que a paisagem lhe suscita. Se as águas de Walden são serenas, já as dos rios remetem para a passagem, para a fluidez: “Há no mundo um fluxo incessante de novidades” e “a vida em nós é como a água no rio”: repleta do que não sabemos (FERNANDES ALVES, 2006).
No ato de pensar, transforma a si e, assim, não é mais capaz de se omitir em relação ao mundo.
Textos como The American Scholar (EMERSON; WHICHER, 1957; EMERSON; MASTERS, 1965) reivindicam para o pensamento americano um título de original e independente. Para Emerson, o ser humano é capaz de compreender as leis da natureza, que são a organização das coisas do mundo que se inter-relacionam e interagem com aquele ser humano; essas leis são as leis do seu próprio pensamento. Por isso Emerson afirma que as sentenças “conhecer a natureza” e “conhecer a si mesmo” fazem parte do mesmo enunciado. Aquilo que os homens discutem, que é sempre tema de estudo e dedicação entre os pensadores, está sempre ligado à reprodução do que outrora se encontrou na busca por uma verdade qualquer. A filosofia, a história, os livros em geral adquirem este papel de caminho da verdade; mas a verdade não é reproduzida como as folhas de escrito, ela é experimentada constantemente no ato de pensar a vida, quando a vida passa a ser ela mesma uma manifestação da verdade.
Esta perspectiva filosófica de Emerson coloca o indivíduo no centro de toda a construção dos significados do mundo e da compreensão das leis da natureza. Apesar de culturalmente se desenvolver através do contato com os grandes pensadores5, esse indivíduo estará sempre e essencialmente sozinho, cabendo a ele definir as regras do mundo:
There are few masters or none. Religion is yet to be settled on its fast foundations in the breast of man; and politics, and philosophy, and letters, and art. As yet we have nothing but tendency and indication (Literary Ethics, 1838).
Deve-se perguntar, porém, como é tratado o direito e como é encarado o fenômeno jurídico da construção de um Estado interventor em plena ordem “liberal”. A noção central representada pela filosofia de Emerson é de que o Estado precisa ser tratado como algo posterior aos indivíduos, estes sim dotados de originalidade e força.
In dealing with the State we ought to remember that its institutions are not aboriginal, though they existed before we were born; that they are not superior to the citizen; that every one of them was once the act of a single man; every law and usage was a man's expedient to meet a particular case; that they all are imitable, all alterable; we may make as good, we may make better. (Politics, 1832)
O conflito de consciência do indivíduo diante da lei do Estado deve levar em conta que a “consciência” do legislador não é melhor, nem mais legítima, do que a do indivíduo – nada há na força da maioria dos cidadãos que legitime ditar as regras sobre tudo e sobre todos.
Republics abound in young civilians who believe that the laws make the city, that grave modifications of the policy and modes of living and employments of the population, that commerce, education, and religion, may be voted in or out; and that any measure, though it were absurd, may be imposed on a people if only you can get sufficient voices to make it a law. (Politics, 1832)
Sob essa perspectiva, cria-se moralmente o argumento retórico para frear a capacidade interventora do Estado e mesmo da sociedade sobre as escolhas individuais de cada um6. As leis devem ser somente um "memorando” para os homens, até mesmo porque, nas palavras de Thoreau, “a lei nunca fez os homens mais justos”.
Esse refreamento da capacidade interventora do Estado nos EUA do século XIX reflete no plano argumentativo uma realidade institucional que reforça essa contenção política.
A estrutura fragmentada das instituições políticas americanas caracterizou historicamente uma limitação para o desenvolvimento de um governo mais ativo no sentido intervencionista e provocou uma deficiência na capacidade política de formulação eficaz de políticas públicas de modo geral. Esta característica que tem suas origens já na própria elaboração do Estado federado americano é destacadamente visível no período que vai de 1787 até 1870, quando o arranjo institucional estadunidense se caracterizou principalmente pela divisão do poder e da capacidade jurídica e prática de implementar as políticas públicas básicas entre os Estados e a União (ROBERTSON; JUDD, 1989).
Tem-se, portanto, um contexto inicial em que o arranjo político-institucional – descentralização administrativa, autonomia estadual e federalismo – gera restrições práticas à implementação dos discursos pró intervenção estatal na sociedade americana do século XIX. Tendo em vista este cenário Thoreau traz uma intrigante questão para o seu tempo:
O progresso de uma monarquia absoluta para uma monarquia constitucional, e desta para uma democracia, é um progresso no sentido do verdadeiro respeito pelo indivíduo. Será que a democracia tal como a conhecemos é o último aperfeiçoamento possível em termos de construir governos? Não será possível dar um passo a mais no sentido de reconhecer e organizar os direitos do homem? Nunca haverá um Estado realmente livre e esclarecido até que ele venha a reconhecer no indivíduo um poder maior e independente - do qual a organização política deriva o seu próprio poder e a sua própria autoridade - e até que o indivíduo venha a receber um tratamento correspondente (A desobediência civil, 1848)
A questão de reconhecer os direitos dos indivíduos se desencadeia na consequência última de que o indivíduo possui direitos que são anteriores ao Estado e que incluem até mesmo o direito de não participar do Estado. Por isso que a desobediência civil vai ser pensada por Thoreau como uma ação moralizante do indivíduo, mas também do Estado. É moralmente necessário para o indivíduo que ele desobedeça a lei civil do Estado que criminaliza o acolhimento de escravos fugidos, mesmo quando o no Estado em questão (Massachusetts) não se permite a escravidão7, mas também é moralmente necessário para o progresso do Estado admitir a dissidência política e moral.
Quando se tem em mente analisar a discussão em torno do direito no contexto americano do século XIX é preciso levar em consideração o caráter elástico que é característico da linguagem jurídica e política moderna. A leitura da obra de autores ensaístas, poetas e romancistas se mostra um canal para a percepção da abrangência daquela linguagem e indicam um caminho interpretativo alternativo.
Na tradição literária americana, e já na Inglaterra do século XVIII,
a entrada em cena de uma nova elite governante (ou “interesses ricos e poderosos”) de acionistas e funcionários públicos de alto escalão, cujas relações com o governo eram de mútua dependência, foi contra-atacada por uma renovada (ou “neo-harringtoniana”) afirmação do ideal do cidadão, virtuoso em sua devoção ao bem-público e em seu envolvimento em relações de igualdade e no governar-e-ser-governado, mas virtuoso também em sua independência de qualquer relação que pudesse torná-lo corrupto. (POCOCK, 2003, p. 96).
O ataque à corrupção da política será o ponto de partida para a reformulação da argumentação moralizante do direito. A propriedade como direito individual era reivindicada nesse discurso como forma de proteger a virtude do cidadão. Distanciando-se do conceito de propriedade do direito civil, a autonomia do cidadão, necessária para assegurar essa virtude, requer uma propriedade que não se estabelece pelas relações governadas pela troca (propriedade não-comercial). Nem mesmo por relações de troca de obrigações entre o indivíduo e o Estado. Esta concepção levaria a certa “austeridade cívica” que se confrontaria diretamente com o cenário social e econômico moderno, marcado pela ascensão do comércio.
O que, em pensadores políticos como Locke, seria discutido em termos de direitos em relação ao Estado, pensadores como Emerson e Thoreau colocaram – através de sua crítica – acima da política do Estado. Ao invés da clássica questão do direito de se opor por consciência ao governo, debatida pelos calvinistas do século XVII, até a eclosão das guerras civis religiosas, o questionamento dos transcedentalistas ultrapassa o direito político de participar do governo e se coloca além, chegando até a necessidade moral de não participar do Estado, para proteger a independência necessária para não ser corrompido pelo Estado, e mesmo pela sociedade.