Novo Código de Processo Civil/2015: precedentes judiciais e incidente de resolução de demandas repetitivas

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20/03/2019 às 17:29
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As técnicas processuais trazidas pelos precedentes e pelo IRDR entreveem a celeridade processual, o tratamento isonômico e a segurança jurídica, e não o “engessamento” da atuação interpretativa dos juízes e tribunais, ou a supressão de direitos dos jurisdicionados.

RESUMO:O objetivo desse trabalho é analisar o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR), consolidado pelo Novo Código de Processo Civil de 2015 (NCPC/2015). Esse fenômeno processual é o corolário da importância do estudo dos precedentes judiciais e sua influência no ordenamento jurídico brasileiro, pois, por meio dos precedentes, torna-se possível ao juiz aplicar decisões semelhantes a casos análogos, respeitando-se de um lado o poder decisório, a motivação e o livre convencimento, e, de outro, privilegiando a isonomia, a celeridade e a economia processual. Metodologicamente, o estudo representa uma pesquisa bibliográfica, dotada de valor qualitativo e de cunho exploratório. Quanto aos resultados, nota-se que o IRDR representa um reflexo de um fenômeno patrocinado pelo Código de Processo Civil de 1973, acobertado pelo incidente de uniformização de jurisprudência (art. 476 do CPC/1973), julgamento de improcedência em casos idênticos (art. 285-A do CPC/1973) e o julgamento de casos repetitivos por amostragem (art. 543-B e 543-C do CPC/1973), que já apontavam para a positivação do IRDR. Conclui-se que o instituto é capaz de apaziguar as lacunas legislativas: ontológicas e axiológicas, proporcionar aos jurisdicionados um acesso à justiça conjugando instantaneamente o art. 5, inciso LXXVIII (razoável duração do processo) e o Art. 4º do NCPC/2015 (perspectivado em uma sentença de mérito). Cumpre ressaltar que a utilização dos precedentes judiciais evidencia que o sistema jurídico brasileiro não possui um sistema puro e sim misto, uma vez que há um diálogo entre os sistemas, e, por conseguinte, influências recíprocas do que Porto (2005), denomina de “commomlawlização”.

Palavras-chave: NCPC/2015. Incidente de demandas repetitivas. Precedentes judiciais. Acesso à justiça.

ABSTRACT:The objective of this paper is to analyze the Incidents of Resolution of Repetitive Claims (IRDR), consolidated by the New Civil Procedure Code of 2015 (NCPC / 2015). This procedural phenomenon is the corollary of the importance of the study of judicial precedents and their influence in the Brazilian legal system, since, through the precedents, it becomes possible for the judge to apply similar decisions to similar cases, respecting on the one hand the decision-making power, motivation and free convincing, and, on the other, privileging isonomy, celerity and procedural economy. Methodologically, the study represents a bibliographical research, endowed with a qualitative and exploratory character. Regarding the results, it is noted that the IRDR is a reflection of a phenomenon sponsored by the Civil Procedure Code of 1973, covered by the incident of uniformity of jurisprudence (article 476 of CPC / 1973), dismissal of similar cases (art. And the judgment of repetitive cases by sampling (articles 543-B and 543-C of CPC / 1973), which already pointed to the positivation of the IRDR. It is concluded that the institute is able to appease the legislative gaps: ontological and axiological, to provide the courts access to justice by instantly conjugating art. 5, item LXXVIII (reasonable duration of the process) and Art. 4 of NCPC / 2015 (contemplated in a judgment of merit). It should be noted that the use of judicial precedents shows that the Brazilian legal system does not have a pure system but a mixed one, since there is a dialogue between the systems and, therefore, reciprocal influences of what Porto (2005) calls " commomlawlization ".

Keywords: NCPC / 2015. Incident of repetitive demands. Judicial precedents. Access to justice


INTRODUÇÃO

A morosidade do Judiciário no Brasil é senso comum. Há uma quantidade elevada e gradativa de processos, por um lado, e uma defasagem de servidores e juristas, por outro; resultando em um déficit crescente. Nesse patamar, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) verificou que mais da metade das reclamações recebidas na ouvidoria dizem respeito à morosidade do judiciário1.

Não obstante, esse fenômeno se deve, além dos motivos citados, ao próprio procedimento, aos instrumentos processuais e à burocratização e aos muitos recursos (cujos fins são assegurar a segurança jurídica e uma prestação jurisdicional equânime e efetiva).

Seguindo a concepção adotada, Junquilho e Teixeira (2016) asseveram que a modernidade trouxe uma “litigiosidade de massa”, ou seja, “a judicialização dos inúmeros conflitos advindos de situações semelhantes e reiteradas”, principalmente na área consumerista.

A ampliação do conhecimento das leis, trazidas pelas tecnologias e redes sociais, contribui também para o ajuizamento de mais ações, uma vez que o cidadão está mais cônscio de seus direitos e vai ao encontro de novas possibilidades para que seja efetivado o acesso à justiça.

Esses “litígios de massa” já demandavam novos mecanismos processuais desde os idos do então Código de Processo Civil de 1973, dentre os quais: o incidente de uniformização de jurisprudência (art. 476 do CPC/1973), a possibilidade de suspensão de segurança em liminares (Leis 8.437/1992 e 12.016/2009), a uniformização de jurisprudência no âmbito dos Juizados Especiais (Lei 10.259/2001), julgamento de improcedência em casos idênticos (art. 285-A do CPC/1973), as súmulas vinculantes (art. 103-A da CRFB/1988) e o julgamento de casos repetitivos por amostragem (art. 543-B e 543-C do CPC/1973), que já apontavam para a positivação do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR), (JUNQUILHO; TEIXEIRA, 2016).

No bojo da judicialização, há um fortalecimento do precedente judicial plural, que se estabelece com mais prerrogativas no NCPC/2015, principalmente no tocante ao IRDR, que é um aparato utilizado como instrumento balizador, para reduzir o trâmite dos processos que podem representar um longo caminho, caso fosse mantido o sistema anterior, e pode, desse modo, favorecer a celeridade e a economia processual na resolução dos dissensos.

Assim, cabe, então, discutir sua importância como medida alternativa, isto é, como uma possibilidade para amenizar o acúmulo de demandas, uma vez que, julgando o incidente, aplica-se aos casos semelhantes a mesma solução, em harmonia com o que é delineado pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 em seu artigo 5º, inciso LXXVIII em parceria com o Art. 4º do Novo Código de Processo de 2015 (NCPC/2015). E ademais, o IRDR pode ser de fundamental importância para um tratamento isonômico no judiciário.

Nessa toada, Soares (2010, p.123) aponta que “o reconhecimento da mudança jurisprudencial só se afigura possível com a constatação de que a jurisprudência desponta como fonte de direito justo, capaz de acompanhar as exigências axiológicas da sociedade”.

Convém acrescentar que o Direito mostra-se lacunar, seja ontologicamente ou axiologicamente, cabendo à jurisprudência a tarefa de atualizar ou tornar o direito mais justo, aplicando a norma, quando for o caso, mas também os princípios gerais do Direito, os costumes, a analogia e a própria jurisprudência.

Oportuno, nesse ínterim, trazer a lume a existência de discussões acerca das decisões de instâncias superiores, Tribunais e, principalmente, do Supremo Tribunal Federal (STF), bem como sobre a normatividade da jurisprudência, reforçada recentemente com o advento do IRDR no NCPC/2015 (Lei nº 13.105/2015), previsto nos art. 976 a 987.

No bojo desse debate, vislumbra-se a força dos precedentes judiciais no NCPC/2015, bem como a aparente simbiose entre os sistemas jurídicos: civil law e commow law, constatando que:

Existe uma recíproca aproximação entre as tradições de civil law e de commow law no mundo contemporâneo. De um lado, a tradição commow law cada vez mais trabalha com o direito legislado, fenômeno que já levou a doutrina a identificar a statutorification do commow law [...]. De outro, a tradição de civil law cada vez mais se preocupa em assegurar a vigência do princípio da liberdade e da igualdade de todos perante o direito trabalhando com uma noção dinâmica do princípio da segurança jurídica, o que postula a necessidade de acompanharmos não só o trabalho do legislador, mas também as decisões dos tribunais, em especial das Cortes Supremas, como expressão do direito vigente. (MARINONI et. al., 2017, p.639-640)

Historicamente, e graças à previsão constitucional, “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (Constituição Federal de 1988, art. 5º, II), o sistema jurídico brasileiro afilia-se ao civil law, sendo a legalidade o princípio norteador, ou seja, no ordenamento jurídico brasileiro a lei é a fonte primária (DONIZETTI, 2015).

Os sistemas marcados pelo commow law e pela força dos precedentes judiciais priorizam a jurisprudência como fonte direta do Direito, enquanto no civil law, a jurisprudência é fonte indireta (SOARES, 2010).

Diante desse panorama, é preciso pesar a influência do stare decisis2 em um sistema civil law, haja vista o fato de que a Constituição Federal, lei maior e norteadora do ordenamento jurídico brasileiro, preceitua a lei como espécie legislativa, mas há a inevitabilidade do reconhecimento da força do precedente judicial, que também tem força no ordenamento (DONIZETTI, 2015).

Verifica-se que o sistema brasileiro, por vezes, aproxima-se do commow law ao prestigiar as súmulas dos tribunais superiores, em especial as do Supremo Tribunal Federal (STF), a súmula com efeito vinculante, claramente influenciada pelo stare decisis, além da consagração do poder normativo da Justiça do Trabalho e, mais recentemente, o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR), previsto nos art. 976 a 987, no Novo Código de Processo Civil.

Há, portanto, duas vertentes. A interpretação judicial pode ser entendida, conforme GRAU (2002), do ponto de vista de uma ideologia estática, que entende o conteúdo da norma jurídica como imutável, suscetível apenas “a interpretações sistemáticas e literais”, dentro daquilo que foi positivado; ou do ponto de vista dinâmico, para o qual a interpretação realizada pelo juiz é “atividade criadora”. No ponto de vista dinâmico, as decisões judiciais supõem a criação de normas gerais ou até normas novas, se assim for necessário para solucionar a demanda.

Não obstante, as teorias contemporâneas, entendem que o juiz tem papel construtivo no fomento da justiça (dinâmico). Assim, “a lei passa a ser apenas uma referência, dela devendo o juiz extrair a interpretação que melhor se ajuste ao caso concreto, ainda que, para tanto, tenha de construir um novo entendimento sobre a lei.” (SOARES, 2010).

O papel do juiz brasileiro contemporâneo assemelha-se, então, ao do juiz do sistema commow law, na medida em que lhe é concedido o poder de controlar a constitucionalidade da lei no caso concreto (DONIZETTI, 2015).

A preocupação primeira quando se propõe uma flexibilização das decisões, constituindo o magistrado um intérprete ativo da lei, é a insegurança jurídica, uma vez que se dará ao juiz a prerrogativa de “legislar às avessas”, ou incorrer em “ativismo judicial”, o que poderia gerar instabilidade institucional (TEIXEIRA, 2012).

Deve-se ressaltar, por oportuno, que não se trata aqui de suprimir a segurança jurídica em prol da realização do direito do indivíduo, pois, como é sabido, que, ela: (segurança jurídica) é o princípio basilar na garantia dos direitos fundamentais; mas de uma relativização necessária nos casos concretos, a fim de aplicar um direito justo. Ao pulso desse raciocínio, negar a força e a eficácia do precedente judicial seria aprisionar a justiça a uma abstração, que se realiza na lei, mas não na prática jurisdicional.

Desse modo, é preciso compreender-se que a previsão de se observar as Súmulas e Acórdãos, não suprime a interpretação. “O que fica explícito é a obrigatoriedade de os juízes e tribunais utilizarem os provimentos vinculantes na motivação de suas decisões para assegurar não apenas a estabilidade, mas a integridade e a coerência da jurisprudência.” (ABBOUD, 2016, p.68).

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É imperioso reter o que foi dito a pouco, aduzindo que o NCPC/2015 contempla mecanismos importantes do sistema commow law e do stare decisis, visando a uma uniformização e à estabilização da jurisprudência, nos artigos 976 a 987. Estabelecendo requisitos e efeitos da sentença por meio da aplicação do distinguishing, que é “o método de confronto pelo qual o juiz verifica se o caso em julgamento pode ou não ser considerado análogo ao paradigma” (DONIZETTI, 2015, p.10).

O IRDR, tal como disposto no NCPC/2015, contribui sobremaneira para a formalização do caráter paradigmático das decisões judiciais nos tribunais, fortalecendo os precedentes judiciais e revelando a importância do tema para conferir efetividade à isonomia e à celeridade processual, princípios tão caros no contexto judiciário brasileiro.

​A lei 13.105/2015 que regula o NCPC/2015, além das diversas mudanças trazidas, introduz o que Souza (2016) denomina de novo “conceito de precedentes no ordenamento jurídico pátrio”. Isso porque é inevitável a constatação de que a natureza jurídica do precedente foi alterada, quando a nova lei atribui caráter vinculante às decisões proferidas pelo STF e STJ em sede de recurso extraordinário ou demandas repetitivas.

O NCPC, então, dota o precedente de força “normativo-vinculante”, alterando não só a sua percepção enquanto procedimento, mas também a estrutura jurídica das resoluções de conflito.

Esses conflitos passam por uma massificação (JUNQUILHO; TEIXEIRA, 2016), e as medidas judiciárias tradicionais já não solucionam tais conflitos de relações jurídicas cada vez mais multitudinárias, como esclarece Teodoro Jr. (2017):

Os tribunais modernos, portanto, têm de se aparelhar de instrumentos processuais capazes de enfrentar e solucionar, com adequação e efetividade, os novos litígios coletivos ou de massa. Dessa constatação da realidade nasceram diversos tipos de tutela judicial coletiva, ora como modalidade de ações coletivas [...], ora como incidente aglutinador de ações originariamente singulares [...] (TEODORO JR. , 2017, p.920).

Coadunando com o sobredito, Wurmbauer Jr. (2014) aponta que o direito processual clássico apresenta um viés individualista, “estruturado para resolver os conflitos intersubjetivos singulares”, não resolvendo os conflitos cada vez mais coletivos e transindividuais3.

Nesse diapasão, fica evidente que o NCPC/2015 deu um grande passo no sentido da coletivização, e do fortalecimento dos precedentes, principalmente ao ampliar a aplicação do “incidente aglutinador”4, transmitindo os efeitos de uma decisão a diversas causas individuais que contenham o mesmo objeto.


EVOLUÇÃO DOS PRECEDENTES JUDICIAIS NO DIREITO BRASILEIRO

O direito brasileiro já apresentava indícios do fortalecimento da teoria dos precedentes judiciais, desde as alterações efetuadas no CPC/1973, como o art.285-A (Da improcedência liminar do pedido), o art. 481 parágrafo (sobre o acidente de arguição de inconstitucionalidade), o art. 475, §3º (sobre a remessa necessária), o art. 518, §1º e o art. 557.

Oportuno, nesse ínterim, trazer o escólio de Donizetti (2015) que considera que há mais de 20 (vinte) anos o Direito Brasileiro adota o sistema de obrigatoriedade dos precedentes, aduzindo que:

Basta lembrar que a Lei nº 8.038, de 28 de maio de 1990, permitiu ao relator, no Supremo Tribunal Federal ou no Superior Tribunal de Justiça, decidir monocraticamente o pedido ou o recurso que tiver perdido o objeto, bem como negar seguimento a pedido ou recurso manifestamente intempestivo, incabível ou improcedente, ou ainda, que contrariar, nas questões predominantemente de direito, súmula do respectivo tribunal (art.38). (DONIZETTI, 2015, p.16)

Cabe destacar ainda, pela relevância e importância para o fortalecimento da teoria dos precedentes, o que estabelece a Emenda Constitucional nº. 03 de 1993, que atribui no §2º, do art. 102 da CRFB/1988, efeito vinculante às decisões do STF em Ações Declaratórias de Inconstitucionalidade e a Emenda Constitucional nº 45/2004, a mais importante emenda no tocante aos precedentes judiciais, pois fomentou reformas e inseriu as súmulas vinculantes no ordenamento jurídico brasileiro.

Ao pulso desse raciocínio, Sousa (2016, p.5) afirma que tais alterações comprovam “o intenso diálogo entre processualistas e constitucionalistas na utilização da processualística como instrumento de concretização e aprimoramento da jurisdição constitucional”.

Os fatos jurídicos apontam, com base no exposto, para uma aproximação dos sistemas jurídicos em uma crescente e importante valorização do precedente judicial, como mecanismo de promoção da justiça.

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Sobre a autora
Fernanda Dias

advogada.

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