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As drogas e a farmacopeia penal

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A potencialidade lesiva das drogas (lícitas e ilícitas) e a efetividade SOCIAL da incriminação

Existe na doutrina um consenso de que a dependência física ou psíquica é o critério utilizado para determinar que uma certa substância seja catalogada como proibida na Lei de Drogas.

Todavia, observa Díez Ripollés, que a distinção entre drogas legais e ilegais não tem nada a ver com a sua potencialidade de criar a dependência. O álcool é a toxicomania mais comum na sociedade moderna, e que causa dependência física e psíquica. Contudo, por razões culturais impedem que ele ingresse na lista das substâncias proibidas nocivas à saúde pública. Esse fator fica mais evidente quando as drogas lícitas são comparadas com a cannabis, que é considerada de mínima lesividade. Essa diferenciação no tratamento penal nos diversos tipos de drogas provoca o enfraquecimento da proibição das drogas ilícitas[33].

 A doutrina tradicional entendia que compete ao juiz, no caso concreto, aferir apenas se a autoridade que editou o complemento da lei penal em branco é competente para sua edição, sendo-lhe vedado, no entanto, pronunciar-se acerca da oportunidade, conveniência e eficácia da medida[34]. No entanto, recentemente no Distrito Federal um réu confesso por tráfico ilícito de entorpecente foi absolvido em decisão monocrática proferida pela Quarta Vara Criminal do Distrito Federal ao ter considerado que o THC (substância ativa da maconha) não apresenta nocividade à saúde se comparada ao álcool e ao tabaco[35], de modo que o julgado revela que a inclusão de substância na lista da ANVISA não pode ser arbitrária em métodos científicos ultrapassados ou no preconceito porque o simples fato da substância constar da lista afeta direitos fundamentais do cidadão, sujeitando-se ao enjuizamento criminal com todas as suas consequências. Conforme a sentença citada “soa incoerente o fato de outras substâncias entorpecentes, como o álcool e o tabaco, sejam não só permitidas e vendidas, gerando milhões de lucro para os empresários dos ramos, mas consumidas e adoradas pela população, o que demonstra também que a proibição de outras substâncias recreativas, como o THC, são frutos de uma cultura atrasada e de política equivocada e violam o princípio da igualdade, restringindo o direito de uma parte da população de utilizar outras substâncias”.

Por isso, tem-se afirmado, conforme Bustos, que o discurso da droga tem servido para realçar o enfrentamento e para estigmatizar o outro. Essa situação se acirra ainda mais em virtude das constantes transculturações que se produzem e que de alguma maneira a droga serve para sinalizar o inimigo interno ou dissidente, ou melhor, simplesmente a existência de outra racionalidade (divergente) dentro do sistema. E nesse sentido, o fato que se proíbam certas drogas e não outras, que têm igual ou maior poder destrutivo sobre organismo, nos obriga a refletir sobre o tema e a considerar que o problema da droga está muito além da solução penal, ao qual só poderia aparecer em determinados aspectos[36].

Em brilhante tese de sociologia desenvolvida por Érica Resende e Lucas Leite verifica-se que “As construções negativas de ‘perigo’ e ‘ameaça’ dependem não apenas na exaltação do ‘Eu’, mas da construção de um espaço ou posição em que o ‘Outro’ passa a ser percebido como ‘mal/mau’ ou ‘inferior’ (...) A política externa passa, portanto, a ser concebida como prática social e política de construção de fronteiras ao produzir discursivamente diferenças com base em dicotomias do tipo ‘dentro/fora’, ‘amigo/inimigo’ e ‘Eu/Outro’, em que o nexo ‘identidade/alteridade’ atua na constituição e (re)afirmação de relações sociais entre entes políticos[37].”

Nesse sentir, Rosa del Olmo demonstrou no ensaio A Face Oculta da Droga (com tradução em português) os vários discursos dos poderes dominantes em relação às drogas, muitas vezes contraditórios entre si, mas que servem para criar estereótipos e dramatizar o problema e garantir a hegemonia econômica e política de grupos sociais[38].


A solução preconizada por Gimbernat

De uma forma original e com clareza ímpar de ideias, Enrique Gimbernat Ordeig, catedrático de Direito Penal da Universidade Complutense de Madri, apresentou o artigo intitulado “La Droga: Posibilidades y Límites del Derecho Penal” que foi publicado na primeira vez no jornal El País, de 22 de agosto de 1982, e incluído nas edições posteriores da coletânea Estudios de Derecho Penal (3 ed. Madri: Tecnos, 1990, pp. 47-50), que pode ser resumido nos seguintes pontos fundamentais:

Comprovadamente, o Direito Penal é um meio pouco eficaz para combater o problema da droga. Pese os países terem tratado de conter o fenômeno expansivo das drogas com uma política repressiva de endurecimento, o fracasso tem sido estrepitoso, porque em vez da diminuição, o que se assistiu foi um aumento espetacular e fora de controle do consumo de estupefacientes.

Nesse combate às drogas é falsa a afirmação de que o consumo de drogas leves encaminhe o usuário para o consumo de drogas pesadas. Pesquisas feitas demonstraram que embora 60% da juventude tenham provado pelo menos uma vez a cannabis nem por isso subiram na escala das drogas pesadas como a heroína e a morfina, e dentro das estatísticas somente um número reduzido de pessoas avançaram para o consumo de drogas pesadas. O consumo juvenil da maconha ou do haxixe só tem um caráter transitório dentro do marco do processo de autoafirmação frente ao mundo adulto, e a estigmatização de uma reação punitiva encerra o grave perigo de converter numa tragédia pessoal o que, sem esta reação estatal, não teria passado de ser uma simples “brincadeira”.

O autor chama atenção para uma repressão penal indiferenciada, punindo com igual rigor todas as drogas, sem fazer classificação entre drogas leves e pesadas. No caso da morfina e da heroína (drogas pesadas) elas exigem do dependente grandes somas de dinheiro, que para socorrer o seu vício acaba socorrendo-se na delinquência – quase sempre violenta. Esse fenômeno coloca o dependente em contato com o submundo da criminalidade e posteriormente com outro submundo: o carcerário (ainda mais corruptor ainda). Diante da proibição, o dependente somente pode comprar a droga no mercado clandestino, onde desconhece o grau de concentração da droga que adquire, e isso provoca em muitas ocasiões a morte por overdose.

De lege ferenda, Gimbernat propõe uma política de drogas de três níveis diferentes: (1) consumo, (2) tráfico de drogas leves e (3) tráfico de drogas pesadas.

Sobre o consumo, entende que, como cada um pode fazer com sua vida e com a sua saúde o que bem entender (e o Direito Penal é coerente com este princípio, porque não tipifica nem mesmo a autotentativa de suicídio nem a automutilação), o Direito Penal não pode proibir o consumo de drogas de qualquer classe que seja (leve ou pesada), porque ao fazer estar-se-ia intrometendo na esfera estritamente privada do indivíduo, e em vez de contribuir a combater a delinquência cria um fator criminógeno que não pode ser mais tolerado.

Com relação ao tráfico de drogas pesadas, faz uma distinção entre o traficante não-viciado, isto é, do mafioso, que elegeu essa atividade altamente lucrativa para enriquecer-se à custa da saúde, da felicidade e inclusive da vida de seus semelhantes e o toxicômano, que em geral vende a droga para tentar sustentar o próprio vício, e que se encontra no último estágio dessa cadeia comercial. O traficante mafioso deve ser tratado como delinquente perigoso. O dependente que trafica para sustentar o próprio vício o Direito Penal deve reagir frente a ele não com pena privativa de liberdade, mas com uma medida pós-delitual visando a sua reinserção, mediante tratamento hospitalar ou ambulatorial, mesmo sabendo-se de antemão que em muitos casos o êxito do tratamento não é alcançado.

Nesse caso, o autor recomenda que a solução menos mal é a de se administrar a curto ou longo prazo e sob controle médico produtos substitutivos como a metadona ou inclusive seguir ministrando a própria droga objeto da dependência, e isso pelas seguintes razões: porque desta maneira o toxicômano não tem que se afundar no tráfico de drogas, na criminalidade patrimonial ou na prostituição para poder pagar o preço do estupefaciente no mercado clandestino: se não existe alternativa, é melhor para a sociedade ter apenas um toxicodependente do que um toxicodependente delinquente, porque desta maneira se lhe resgata do submundo criminal e lhe possibilita a manutenção de uma vida profissional e familiar normal, contribuindo-se assim para sua reinserção social, e finalmente porque a administração da droga sob controle médico evita os acidentes por overdose.

Com relação ao tráfico de drogas leves, em que cita expressamente a maconha, entende que o caminho é a despenalização, porque: o uso de droga leve não supõe um trânsito para a droga pesada (morfina e heroína); estudos realizados nos Estados Unidos, na Alemanha e na Grã-Bretanha sobre a cannabis revelaram que a nocividade desta droga não é superior que a de outras drogas toleradas como o álcool e o tabaco; que é precisamente diante de sua escassa nocividade (o que explica a difusão que tem alcançado) não é legítimo que numa sociedade pluralista que o setor adulto se arrogue no direito de conservar suas próprias drogas (álcool e tabaco) e que trate de estigmatizar penalmente o setor juvenil que não se caracteriza por possuir uma toxicomania mais grave, mas simplesmente diferente.

Contudo, descriminalizar o tráfico das drogas leves em nome do princípio da intervenção mínima não significa o mesmo que fomentar o seu consumo em proporções inadmissíveis; não é porque um comportamento não alcance entidade penal que se deve promover sua difusão, e ainda, por mais que uma droga não seja mais nociva do que outras legalizadas não quer dizer que tenha que favorecer a generalização em nossa sociedade de uma terceira toxicomania, junto ao do álcool e a do tabaco; tampouco se trata de promover o consumo de um produto em definitivo prejudicial para a saúde, por mais que sua nocividade não ultrapasse a de outros tóxicos legalizados.

Diante dessas premissas, o autor chega as seguintes conclusões: a conduta que deve desencadear consequência jurídico-penal é a do comércio de drogas pesadas. Pena para o traficante não dependente e medida de segurança pós-delitual consistente no tratamento terapêutico para o pequeno traficante dependente. Para o tráfico de drogas leves propõe-se a descriminalização, porém não a sua legalização: o crime deve se converter em ilícito administrativo. Finalmente o consumo de qualquer classe de droga não deve ficar vinculado a qualquer consequência jurídica.

E a conclusão é que a solução do problema das drogas também deva ficar fora do alcance do Direito Penal, porque os remédios não devem ser buscados num excesso indiscriminado, contraproducente e fácil rigor, mas tendo imaginação, mas perguntando-se quais mudanças terão que ser introduzidas na sociedade para que a gente não se queira destruir nem fugir – porque não a suporta o peso da realidade: “aí está o caminho e não em conduzir o elefante do Direito Penal dentro de uma loja de porcelana onde se encontram os débeis e os angustiados”.

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Nessa linha de raciocínio, usando a criatividade, Frankfurt tem enfrentado com certo êxito o problema da sua cracolândia, porque ao menos a tem mantido as drogas ilícitas sob o controle das autoridades sanitárias diminuindo a violência.


Apêndice:

Como a Alemanha acabou com a sua 'Cracolândia'

Por Deutsche Welle

(07/06/2017 05h00 - atualizado há um ano)

No final da década de 1980, o maior ponto de uso de drogas a céu aberto da Alemanha ficava em Frankfurt: na região do parque de Taunusanlage, próximo à estação ferroviária central, viviam cerca de 1,5 mil dependentes de heroína, numa espécie de "Cracolândia" alemã.

Além de ser um problema social, Taunusanlage era uma questão de saúde pública: cerca de 150 dependentes morriam de overdose a cada ano. Atualmente, mais de 25 anos depois, a "Cracolândia" alemã faz parte do passado da cidade.

A extinção do ponto de uso de drogas foi alcançada graças a uma iniciativa que ficou conhecida como o "Caminho de Frankfurt" e serviu de exemplo para diversas cidades do país que enfrentavam problema semelhante.

"A mudança na política de drogas não ocorreu pela convicção nas opções que se tornavam populares, como terapias de substituição, mas pela necessidade de que algo novo precisava ser feito, já que o tradicional não estava funcionando", avalia Dirk Schäffer, assessor para drogas e sistema penal da organização de combate à aids Deutsche Aids-Hilfe (DAH).

No início da década de 1990, conta Schäffer, a situação era dramática em várias cidades da Alemanha, com alta taxa de mortalidade decorrente do uso de drogas e grandes concentrações de usuários em locais públicos. A isso, somava-se o advento da aids e o medo de que o vírus se espalhasse para além dos grupos de risco.

Diante da situação em Taunusanlage, Frankfurt iniciou em 1988 uma série de encontros mensais em busca de uma solução para o problema da heroína na cidade. Deles participavam não somente políticos e policiais, mas também representantes de organizações de ajuda a dependentes químicos e comerciantes locais.

A principal revolução da política adotada foi a percepção do vício como uma doença, possibilitando a descriminalização do dependente. Essa mudança gerou impactos em ações policiais, direcionadas a combater o tráfico e não mais o usuário, e em medidas de saúde pública, concentradas em oferecer alternativas – não somente de moradia, mas também locais de consumo e possibilidades de tratamento – para tirar das ruas dependentes químicos.

Alternativas para dependentes

Entre as estratégias adotadas em Frankfurt estavam o oferecimento amplo de terapias de substituição e a criação de salas supervisionadas para o consumo de drogas.

As terapias de substituição para usuários de heroína começaram a ser aplicadas na Alemanha no final dos anos 1980. Nela, a heroína é substituída por opioides, como a metadona, com quantidade estipulada e o uso monitorado por um médico. A abstinência não é necessariamente uma das metas visadas nesse tipo de tratamento, mas sim o controle do vício.

"Ao substituir heroína por opioides, o objetivo das terapias de substituição é melhorar as condições de saúde física e mental de dependentes e possibilitar sua reintegração social. Nesse sentido, essas terapias são as mais bem-sucedidas nos tratamentos de dependentes químicos", afirma Uwe Verthein, do Centro Interdisciplinar para Pesquisa sobre Dependência da Universidade de Hamburgo.

Apesar do sucesso, esse tratamento só é possível para dependentes de opiáceos, como a heroína. Ainda não há terapias semelhantes para outras drogas, como o crack. Primeiros experimentos para a substituição da cocaína estão sendo feitos na Holanda, mas Verthein destaca que essa pesquisa ainda está bem no início.

Atualmente, a terapia de substituição faz parte da política federal de drogas na Alemanha. O país oferece esse tratamento para cerca de 77 mil dependentes químicos.

Além desta terapia, o Caminho de Frankfurt abriu também as portas para as salas supervisionadas para o uso de drogas na Alemanha. Em 1994, a cidade, quase ao mesmo tempo que Hamburgo, abriu o primeiro estabelecimento deste tipo. No local, dependentes têm acesso a seringas e todo material esterilizado para o uso da substância e recebem acompanhamento médico em casos de overdose.

O espaço possibilita ainda que assistentes sociais façam contato com dependentes e possam apresentar a eles opções de tratamento para o vício. Além disso, as salas contribuíram para tirar das ruas a grande massa de usuários que se concentravam em parques e próximos a estações de trem e reduzir infecções causadas pela reutilização de seringas infectadas.

A iniciativa foi seguida por outras cidades, como Berlim. Mesmo sem uma base legal, essas salas eram toleradas pelas autoridades. Somente no ano 2000, o governo federal legalizou estes espaços. Atualmente, há 24 salas supervisionadas para o consumo de droga, distribuídas em 15 cidades da Alemanha. Em Frankfurt, há quatro, por onde passam anualmente cerca de 4,5 mil dependentes por ano. Em Berlim, são duas salas e uma estação móvel, que recebem anualmente aproximadamente 1,2 mil usuários.

Ações policiais em paralelo também foram importantes para a desocupação de Taunusanlage. Porém, elas ocorreram apenas depois da disponibilização de locais para o uso de droga e abrigos, e eram voltadas a informar os dependentes sobre essas alternativas. Assistentes sociais também foram engajados para o trabalho de informação.

"Os dependentes não foram simplesmente expulsos, o que os espalharia pela cidade, criando outros pontos de uso de drogas", destaca o sociólogo Martin Schmid, da Universidade de Ciências Aplicadas de Koblenz.

Exemplo para outros países?

"Ver o dependente como doente ajuda bastante a solucionar o problema das drogas, pois possibilita o desenvolvimento de políticas públicas adequadas para o apoio ao usuário. Simplesmente prendê-los ou interná-los à força não contribui para resolver essa situação", afirma Peter Raiser, do Escritório Central Alemão para Questões sobre Vício (DHS).

Schmid acrescenta que a abordagem da inclusão e da descriminalização do dependente pode ser a base, assim como foi na Alemanha, para países desenvolverem suas políticas de drogas de acordo com suas especificidades[39].

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Sobre o autor
Marcelo Murillo de Almeida Passos

Advogado. Especialista em Direito Penal e Processo Penal. Autor do livro: Direito Penal: uma introdução por seus princípios constitucionais, prefaciado pelo Dottore Luigi Cornacchia, 2015, ed. Lumen Juris.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PASSOS, Marcelo Murillo Almeida. As drogas e a farmacopeia penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5754, 3 abr. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/72834. Acesso em: 19 abr. 2024.

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