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A produção normativa na Câmara Legislativa do Distrito Federal:

um estudo sobre o dever-ser e o ser do processo legislativo

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14/09/2005 às 00:00
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Sumário: I. Introdução 1.Dever-Ser 1.1 A Processualidade no campo da produção normativa. 1.2 O Processo como Discurso 1.3 Controle Judicial 1.3.1 O Problema e a Solução 1.3.2 O remédio é o próprio sistema 1.3.3 Controle de constitucionalidade formal versus controle do processo legislativo 1.3.4 Questões Políticas, Matéria Interna Corporis e Mandado de Segurança 1.3.5 Jurisprudência 1.3.6 Uma visão crítica 2. Ser 2.1 Introdução 2.2 Relatório 2.3 Politéia 2.4 A Simulação 2.5 Diferenças e Semelhanças 3. Comentários Finais

            Palavras – Chave: Câmara Legislativa do Distrito Federal, Processo Legislativo, Controle de Constitucionalidade

            Sinopse: Estudo sobre o "Dever-Ser" (teoria) e o "Ser" (prática) do processo legislativo na Câmara Legislativa do Distrito Federal. O objetivo do trabalho foi juntar a abordagem jurídica com a sensibilidade das Ciências Sociais, relacionando, por um lado, as regras formais do processo legislativo e, por outro, a prática política que, efetivamente, faz com que uma proposição siga o curso regimental. Para esse entendimento interdisciplinar do processo legislativo dividiu-se o projeto em três capítulos: O Dever-ser, O Ser e os Comentários Finais. O capítulo do Dever-Ser descreve o aparato teórico do trabalho, dedicando especial atenção à doutrina que defende a necessidade de um rigor no rito legislativo, subsidiada pelas idéias de Marcelo Campos Galuppo (UFMG), a crença na democratização da discussão dos projetos de lei, inspirada, por sua vez, no filósofo alemão Jürgen Habermas, e a tese da necessidade de um controle judicial do processo legislativo mais amplo do que aquele realizado hodiernamente, defendido entre outros, por Cristiano Viveiros de Carvalho (UnB). O capítulo do Ser trata da efetiva prática do processo legislativo, sustentado por dois grupos de dados empíricos: um relatório–diagnóstico produzido pela própria Câmara e uma simulação legislativa promovida pelo Instituto de Ciência Política da UnB. Tais dados ensejaram, nos Comentários Finais, um confronto entre os dados do Dever-Ser e os do Ser. Foi possível aventar algumas conclusões, quais sejam: que a lógica legislativa é de uma particularidade que dificilmente é reduzida, de forma integral, à lógica jurídica; e que existe uma discordância patente entre o que pregam os discursos habermassiano e jurídico sobre o que deveria ser o processo legislativo, de um lado, e o que de fato acontece nas Casas Legislativas, de outro. As implicações desta discrepância, bem como a questão do controle judicial do processo legislativo, demandam estudos mais aprofundados.


I. Introdução

            Este texto é no fundo uma investigação sobre os limites da dogmática jurídica. Não era esse, o nosso objetivo, a princípio. Nosso pensamento inicial era acreditar que a correta aplicação do Direito fosse capaz de mudar a realidade da prática política para melhor. Ou seja, no caso objeto deste estudo, o Direito, por si só, poderia ser uma via para tornar o processo de elaboração das normas mais democrático. A experiência de pesquisa, no entanto, nos convidou a re-avaliar nossos conceitos apriorísticos.

            A nossa questão, portanto, começa com um desconforto: A natureza hermética do Direito. Natureza que se percebe nos programas acadêmicos, nas discussões e palestras, na doutrina e jurisprudência. A partir de nosso aprendizado, podemos sugerir que o culto ao texto (ou fetichismo da lei como diria Bobbio [01]) empregado hoje, prejudica seriamente a compreensão da realidade e a formação da crítica. A contribuição das Ciências Sociais, portanto, seria uma lufada de ar novo para o Direito e teria a capacidade de relativizar o dogmatismo cego de muitos juristas. Entretanto, isso não tem acontecido. O problema talvez seja a falta de reconhecimento, por parte do Direito, da validade dos estudos sociológicos; e, em parte, ele tem razão. Muitas vezes os antropólogos, sociólogos e filósofos não dão a devida atenção à importância e à técnica da dogmática jurídica.

            Subsidiado por textos sobre Antropologia Jurídica, formação do Estado e a questão da Justiça – entre outros assuntos – este projeto nasceu no seio dessas discussões, do grupo de pesquisa "Lei e Sociedade" ligado ao curso de Mestrado em Direito do UniCEUB. A proposta foi justamente abordar um tema que carece de bibliografia que conjugue a abordagem jurídica com a sensibilidade sociológica. Nossa tentativa foi enfrentar a problemática do processo legislativo, no âmbito do Distrito Federal. Esse processo é regulado por uma série de leis que formam o legalmente correto do referido processo. A observação empírica, entretanto, pôde nos levar à constatação de uma realidade diversa do ideal. As conseqüências dessa incongruência e as observações acerca dessa realidade são um farto material para pesquisa, como já nos mostrou Abreu. [02]

            O problema aqui é a correspondência entre como o processo de formação das leis deveria ser, e como ele é na pratica. Como exemplo das dificuldades em questão podemos começar com uma citação; podemos fazer nossas as palavras de Geertz: "A questão a qual quero[mos] [nos] endereçar é do relacionamento entre fato e lei. Como o problema do Ser/Dever-ser, Sein/Sollen, esta questão e todas as outras pequenas questões que dela se ramificam tem sido discutida na filosofia Ocidental desde Hume e Kant". [03] A partir daí, o objetivo desta pesquisa se dividiu em dois: 1. Verificar a aplicabilidade das leis que regem o Processo Legislativo no Distrito Federal. Ou seja, o Sollen. 2. A partir de dados empíricos observar como o Processo Legislativo acontece na prática, ou seja, o Sein; analisando as conseqüências de uma possível incongruência entre Sein e Sollen.

            A nossa angústia (por assim dizer), o sentimento que nos impulsionou adiante com o projeto, se intensificou ao lidarmos com a fundamentação teórica desta pesquisa. Encontramos um considerável número de trabalhos sobre o processo legislativo federal, mas uma quantidade muito reduzida de obras a respeito dos âmbitos municipais, estaduais e do Distrito Federal. E pior: nenhuma obra, dentre todas examinadas, satisfez o escopo desejado por nós.

            Podemos citar alguns exemplos. Do Processo Legislativo de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, perpassa historicamente as participações e conflitos dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, na busca pelo fortalecimento da Democracia no Ocidente. Tudo isso para depois expor consistentemente o aparelho dogmático que compõe o processo legislativo contemporâneo brasileiro [04]. Victor Fernandes Gonçalves trata do Controle de Constitucionalidade das Leis do Distrito Federal. Obra que nos interessa pelo enfoque que dá à evolução histórica do que era o chamado "município neutro", hoje Distrito Federal. [05] Já Márcia Maria Corrêa de Azevedo se aventura na difícil tarefa de desvendar o que ela chama de "Jogo Parlamentar", ou seja, a prática do processo legislativo. Com conceitos extremamente didáticos ela explica ao cidadão leigo a gênese do poder legislativo, o conceito de processo legislativo e apresenta idéias próprias para explicar os meandros de como as leis são feitas. [06] Os dois primeiros trabalhos abordam o tema de tal maneira que não satisfazem o propósito da presente pesquisa. Isso porque, ora se restringem apenas ao exame do aparelho dogmático, ora abordam de maneira parcial o âmbito local. Já a terceira autora se aproxima bastante da nossa proposta justapondo o dogmático (deveria ser) e a prática (o ser), ou seja, Sollen e o Sein. Essa comparação, contudo se faz, na nossa opinião, com pouco rigor científico.

            Em resumo, temos de lado o dogmatismo restrito e de outro, uma sociologia intuitiva. Isso faz parecer que a teoria e a práxis são distintas. Entretanto, a comparação entre o dever-ser e a o ser, como aspectos distintos da realidade social, não constituem um princípio da boa sociologia. Durkheim já argumentava com razão que "... Uma sociedade não pode criar-se nem recriar-se sem criar, ao mesmo tempo, alguma coisa de ideal. Essa criação não é para ela uma espécie de ato suplementar com o qual ela se completaria a si mesma uma vez constituída; é o ato pelo qual ela se faz e se refaz periodicamente. Assim, quando opomos a sociedade ideal à real, como duas antagonistas que nos arrastariam em dois sentidos contrários, realizamos e opomos abstrações. A sociedade ideal não está fora da sociedade real; faz parte dela." [07] Desta maneira entendemos a relação entre o ideal e o real, o Sollen e o Sein, e de como tratar esse binômio; não de maneira que ponha os dois em direções opostas, mas em uma mesma realidade. Esse foi o objetivo desta pesquisa.

            Nesse contexto, a fim de um entendimento interdisciplinar do processo legislativo (uma das nossas metas) dividimos o trabalho em três (3) tópicos: O Dever-ser, O Ser e os Comentários Finais. O tópico do Dever-ser descreve o aparato teórico do trabalho, dedicando especial atenção à doutrina que defende a necessidade de um rigor do rito legislativo, a democratização na discussão dos projetos de lei e um controle judicial do processo legislativo maior do é que feito hoje. O tópico do Ser trata da efetiva prática do processo legislativo, subsidiado por dados empíricos. Por fim, os Comentários Finais se dão a partir, justamente, da confrontação do Dever-Ser com o Ser.


1. O Dever - ser

            1.1 A processualidade no campo da produção normativa

            Em artigo [08], Marcelo Campos Galuppo expõe o que ele chamou, apropriadamente, de "elementos para uma compreensão metajurídica do processo legislativo". Citando Elio Fazzalari e Aroldo Plínio Gonçalves, Galuppo explica ao leitor sua posição sobre a processualidade no campo de produção das normas. Para tanto, o autor reconstrói alguns conceitos tradicionais do Direito Processual.

            O que nos interessa aqui é a defesa que o artigo faz da idéia de que o processo legislativo pode ser equiparado tecnicamente a um processo jurisdicional. Segundo Galuppo, a atividade de elaboração normativa cumpre, comparativamente, todos os pressupostos e condições necessárias. Vejamos: um processo é caracterizado por "uma seqüência de normas em que o validade de um ato ou norma depende do anterior e que visa a produção de um provimento" [09] (ou seja, uma sentença ou decisão. No nosso caso uma lei). Há mais um componente intrínseco ao processo, que é muito importante para sua composição: o contraditório, que pode ser caracterizado por "a) participação dos destinatários do ato final na fase preparatória do mesmo; b) simétrica paridade destes interessados; c) mútua implicação de seus atos; d) relevância de tais atos para o ato final." [10] A semelhança da atividade jurídica, com a atividade legiferante cumpriria, portanto todos esses papéis. O suposto básico seria o de que "...estejamos diante de um Estado Democrático de Direito, em que seja permitida a todos a participação, diretamente ou não nesta estrutura de produção de normas. No sistema representativo em especial, é essencial que todos os membros competentes (ou seja politicamente capacitados) possam potencialmente participar da discussão de uma lei para que, ao final, possa se falar em processo legislativo" (grifo nosso). [11]

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            Resta dizer que vista desta forma, assim como as etapas de um processo jurisdicional, as normas regimentais que ordenam a atividade legislativa não podem ser desobedecidas ad nutum (a qualquer tempo). Pelo contrario, um vigoroso rigor no rito é necessário, a fim de preservar a legitimidade das Casas Legislativas.

            1.2 O Processo como Discurso

            Iremos agora, tecer alguns comentários sobre as idéias de Jürgen Habermas, um filósofo alemão dando continuidade ao tópico anterior, que defende a processualidade da produção normativa. Habermas permite uma releitura do contraditório, um elemento imprescindível para a caracterização de um processo. Além do mais, sua obra permite um diálogo entre a dogmática jurídica e as ciências sociais, um objetivo do nosso trabalho. Nesse contexto, Habermas se propõe a responder perguntas interessantes, como por exemplo: podem as normas regular a vida em uma sociedade plural e heterogênea e fazer isso de maneira justa e legítima?

            A literatura jurídica que se apropria das idéias habermassianas propõe que somente através da teoria da ação comunicativa e sob o prisma do discurso é que se torna possível resolver esse problema. Por discurso, pode se entender um ato de comunicação destinado a fundamentar [a legitimidade] das opiniões e normas, organizado argumentativamente a fim de superar uma polêmica [12]. A teoria da ação comunicativa é efetivada na medida em que se delibere através do dialogo num modo que permita a todos exporem suas opiniões prevalecendo a que melhor se sustentar racionalmente. Essa idéia é um passo muito importante para a filosofia do Direito, pois contemporaneamente, cresceu a necessidade da elaboração normativa ser mais legitima e não apenas positivada. Assim Habermas tenta afastar o conceito de Weber para quem "direito é aquilo que o legislador, democraticamente legitimado ou não, estabelece como direito, seguindo um processo institucionalizado juridicamente". [13] Para Weber lei é "toda emanação que parte do Poder Legislativo, desde que sejam satisfeitas as condições processuais inerentes ao procedimento legislativo [14]". Habermas tenta demonstrar que a legitimidade não se encontra somente na formalidade do processo legislativo. A gênese democrática e legítima das leis se dá a partir de elementos como um espaço comunicativo aonde, através de ações recíprocas dos agentes, ocorram debates críticos e racionais com vistas a um consenso. [15]

            Promovido o respeito ao regimento interno da Casa Legislativa e um amplo debate das proposições, ambos incentivados e fiscalizados pela participação popular, pode-se falar – dizem os autores - até em co-autoria das leis pelos cidadãos. Essa é a exatamente a idéia. Cristiano Viveiros de Carvalho comenta: "O cumprimento das regras do discurso racional não garante a correção do resultado – ou seja, não se tem, como nas evidências das ciências naturais, a comprovação empírica objetivamente mensurável da ‘verdade’ -, mas o caracteriza (ao resultado) como racional, racionalmente fundamentável e, portanto apto a reivindicar validamente [uma maior legitimação]." [16]

            Portanto, segundo ensino dos autores comentaristas de Habermas, podemos concluir que, é assim, procedimentalmente, com cumprimento das regras do jogo, a desobstrução dos canais de comunicação e junto a um meio de aprimoramento argumentativo das proposições, é que se atingirá com maior facilidade um provimento (lei) bem mais legítimo e propício a ser mais respeitado e eficaz. Mas toda essa conjuntura funcionaria só naquele plano ideal de condições que Habermas estabelece (honestidade, clareza e mutuo entendimento entre os falantes) para que aconteça a ação comunicativa. O que aconteceria no plano prático de um legislativo que é composto por atores antagônicos e muitas vezes com agendas próprias, não interessados, portanto, em atingir um consenso?

            1.3 Controle Judicial

            1.3.1 O Problema e a Solução

            O problema que se põe então é o seguinte: "É que a teoria do discurso, ao trabalhar no plano ideal, embora não ignore a possibilidade de alguém manipular o processo, não trata de como evitá-lo. E nem deveria, porque não é este o seu escopo. [O próximo passo], logicamente necessário, se se pretende que essas regras do discurso vigorem, é estabelecer mecanismos que garantam a sua efetividade nos contextos práticos do processo legislativo". [17] Daí, na visão de alguns juristas, a necessidade de um controle jurisdicional do processo legislativo. Como veremos adiante não estamos falando de controle judicial lato senso, mas de um tipo especifico de controle: o controle incidental do processo legislativo.

            1.3.2 O remédio é o próprio sistema

            Um defensor do controle jurídico da elaboração normativa, Cristiano Viveiros de Carvalho expõe o porquê da crença nesse instituto. A observação aqui é que se trata de um instrumento que age sem rupturas institucionais. Interessante qualidade, já que quando o processo sofre distorções providas por interesse de grupos dominantes nas Casas Legislativas é natural a tendência de um sentimento de frustração. No caso do Distrito Federal há até grupo vindicando a extinção da Câmara [18]. Há aqui, um problema de cultura institucional. Carvalho aponta, assim como outros pensadores que defendem o controle jurisdicional do processo legislativo, que "...é possível corrigir essas distorções com instrumentos do próprio regime, por meio de um aperfeiçoamento gradual e perseverante das instituições. (...) Se essas correções, ademais, se têm de basear nos instrumentos do regime, devem-se realizar ou por alterações na lei, com o emprego do próprio processo legislativo, ou pela atuação de outro sujeito estatal – no caso específico, o Judiciário – ao fazer evoluir a jurisprudência". [19]

            1.3.3 Controle de constitucionalidade formal versus controle do processo legislativo.

            Na seara de um controle do processo legislativo, é mister a compreensão de um conceito do princípio do devido processo legislativo [20]. Este princípio prega um processo substantivo em oposição a um processo pro forma [21]. Isto significa a defesa das idéias de Fazzalari (rigor do rito legislativo) e Habermas, (amplo debate racional) consubstanciadas na prática dos trabalhos legislativos, a fim de se produzirem leis que seriam, adequadas regimentalmente e legitima junto a todos os possíveis concernidos. Nesse contexto, cabe esclarecer que tipo de controle – dentre os existentes no sistema jurídico brasileiro – satisfaria as exigências do devido processo legislativo.

            O controle de constitucionalidade formal ou a posteriori já não encontra oposições. É pacífico o seu uso tanto na doutrina quanto na jurisprudência. Já o controle incidental não goza deste mesmo privilégio. Como veremos mais adiante, a sua implementação encontra forte resistência. A questão é: o controle formal satisfaz "não apenas o que se refere à harmonização do ordenamento jurídico, mas também problemas relacionados com o descumprimento das regras do processo legislativo, no contexto de legitimação do Estado democrático de direito"? [22]

            Cristiano Viveiros de Carvalho aponta no sentido da resposta ser negativa. Duas razões se destacam para tanto: a)insuficiência ou limitação crônica do controle de constitucionalidade formal b)insuficiência de uma verificação a posteriori para a garantia do cumprimento do devido processo legislativo. A primeira razão configura-se na limitação encontrada pelo controle formal de se restringir na maioria das vezes, em vícios de iniciativa, invasão de competências ou inadequação de instrumentos legislativos. Por inadequação de instrumento legislativo pode se entender, por exemplo, lei ordinária que versa sobre matéria constitucionalmente atribuída a lei complementar. A segunda razão segue o raciocínio de que o controle de constitucionalidade a posteriori geralmente se limita a casos que envolvem sujeitos estatais diferentes. Um caso de uma controvérsia entre um determinado parlamentar ou grupo de parlamentares e a Mesa Diretora da Casa, por exemplo, foge do campo de um controle formal.

            1.3.4 Questões Políticas, Matéria Interna Corporis e Mandado de Segurança

            Existe tanto na doutrina, quanto na jurisprudência, uma discussão sobre o controle judicial incidental do processo legislativo. Neste tópico vamos explorar as repercussões desta discussão. Um ponto importante para o entendimento do controle judicial incidental é a questão das matérias interna corporis e questões políticas. Esses institutos são produtos do princípio da autolimitação judicial, que por sua vez repousa na idéia de que há determinadas controvérsias que são incompatíveis com o controle jurisdicional. Viveiro lembra que "No quadro institucional do Estado democrático de direito, entre cujos pilares, situa-se a separação de poderes, existem decisões submetidas à discricionariedade exclusiva de cada órgão, imunes, portanto, a qualquer forma de julgamento por órgão externo". [23] O perigo, segundo alguns juristas, é que o legislativo (ou grupos dominantes em seu âmago) pode praticar arbitrariedades se valendo dessa autonomia inviolável.

            A doutrina distingue sem maiores dificuldades conceitualmente, as questões políticas e matéria interna corporis. É o caso do administrativista José dos Santos Carvalho Filho: "Atos Políticos: trata-se daqueles atos produzidos por certos agentes da cúpula diretiva do país, no uso de sua competência constitucional; Atos Legislativos Típicos: Àqueles que dispõe de conteúdo normativo, abstrato e geral; Atos Interna Corporis: São aqueles praticados dentro da competência interna e exclusiva dos órgãos dos Poderes Legislativo e Judiciário. (...) como não pode existir ato sem controle, poderá o Judiciário controlar esses atos internos e exclusivos quando contiverem vícios de ilegalidade ou constitucionalidade ou vulnerarem direitos individuais." (grifo nosso) [24]

            Isto nos leva a outra questão. As controvérsias que envolvem esses atos internos e exclusivos têm sido levadas ao tribunal por meio do mandado de segurança. Aí reside uma polêmica. É que uma das condições para o uso deste instrumento é a existência de direito próprio, líquido e certo violado ou ameaçado por ato ou omissão de autoridade pública. Aqui cabe breve aclaramento de que esse direito é tido "como direito comprovado de plano, ou seja o direito comprovado juntamente com a petição inicial, de modo que havendo dúvidas quanto às provas produzidas na inicial, o juiz extinguirá o processo sem julgamento de mérito". [25]

            A doutrina e a jurisprudência mais conservadora não aceitam o emprego do mandado de segurança contra ato dos dirigentes das Casas Legislativas por acreditarem inexistir o direito próprio, líquido e certo dos parlamentares ao cumprimento do regimento interno de sua Casa. A doutrina moderna (Carvalho 2002, Cattoni 2000, Del Negri 2003) defende que tal posição não procede. É pacífico, contudo que a Constituição é hábil para dar ensejo ao writ, ou seja, ao direito subjetivo. Ora, o que gera tal direito é a incidência da norma jurídica no suporte fático conforme lição de Pontes de Miranda [26]. Os regimentos internos das Casas Legislativas são normas jurídicas; o seu desrespeito é o suporte fático necessário. Os autores defendem portanto que, a negativa ao direito subjetivo dos parlamentares de ver respeitado o regimento interno de sua Casa carece de substância lógica e jurídica.

            1.3.5 Jurisprudência

            A jurisprudência brasileira vem se posicionando pelo self-restraint (autolimitação) com as escusas vistas anteriormente. Veremos contudo, numa gradação de julgados, que já existe no Supremo Tribunal Federal preocupação com o princípio do devido processo legislativo. Destacam-se os Mandados de Segurança nº 20.471, 20.247 e 22.503. O primeiro é representativo do restraint, o segundo reconhece um certo grau de sindicabilidade judicial dos atos legislativos e o terceiro demonstra - embora por meio de votos vencidos - a defesa de um maior controle jurisdicional na elaboração das leis.

            O Mandado de Segurança nº 20.471, tratava "que fosse o presidente do Congresso Nacional instado a colocar em votação emenda constitucional de sua autoria instituindo eleições diretas para Presidente da República". [27] O recurso não foi conhecido por se tratar de teor revestido de matéria interna corporis segundo o tribunal. O relator do mandado se eximiu sequer de examinar informações prestadas pelo dirigente do Congresso.

            O mandado nº 20.247 "visava questionar o indeferimento pelo Presidente do Senado, quando no exercício da presidência de sessão do Congresso Nacional, de requerimento de anexação de determinada proposta de emenda constitucional à outra já em tramitação que convocava Assembléia Constituinte em 1984". [28] O recurso embora também não reconhecido, teve nas razões de sua decisão desfecho diferente, graças aos argumentos do relator, Ministro Moreira Alves, voto que foi decisivo para o posicionamento da Corte: "No caso, o Presidente do Senado (...) usando da competência de deferir, ou não, requerimento de parlamentar que alega existir projeto com matéria análoga ou conexa à de outro, para efeito de anexação, o indeferiu, por entender, fundamentadamente, que inexistia a pretendida analogia ou conexidade. Não pode o Judiciário (...) examinar o mérito de ato dessa natureza, para aquilatar seu acerto ou desacerto, sua justiça ou injustiça. Trata-se de decisão interna corporis...". [29] O relator então deixa claro que se isso tivesse sido feito sem nenhum fundamento, ai sim, seria suscetível de ser examinado pelo Judiciário. O que não pode ser discutido, é o mérito da fundamentação, e ainda sim só no que toca à discricionariedade legal do dirigente legislativo.

            Já o Mandado de Segurança nº 22.503 tinha como cenário a tramitação da Proposta de Emenda Constitucional nº 33-A/95 na Câmara dos Deputados. Os autores foram um grupo de deputados da oposição inconformados com o trâmite do processo, que segundo eles tinha violado o Regimento Interno. A decisão final foi pelo não reconhecimento do Mandado. Contudo os votos vencidos dos Ministros Marco Aurélio (relator) e Celso de Mello simbolizam a defesa do já frisado devido processo legislativo. O relator terminou seu voto com trecho de um parecer do professor Fábio Konder Comparato e Cármem Lúcia Antunes Rocha: "Direito é feito para ser seguido e por isso tem que ser controlado. E Constituição não é sugestão, ou aviso, ou convite. É norma jurídica de cumprimento obrigatório, necessário e insuperável, e nada há nela que diga respeito exclusivamente a alguns agentes públicos. Tudo o que se fizer contra a Constituição atinge todos os cidadãos, todas as pessoas, mais diretamente ainda, em alguns casos, como nesse que se dá a saber aqui, a quem tem o direito líquido e certo de ter um processo legislativo previamente definido pela norma magna. Nada há de interno a qualquer corporação. Os sinos tocam para todos. A constituição também..." [30]

            O caso do Distrito Federal não é diferente. O Tribunal de Justiça vem se posicionando de forma contundente pela autolimitação como demonstra, entre vários outros julgados, o Mandado de Segurança 132547 e o Agravo Regimental no Mandado de Segurança 178870.

            Há, contudo, um julgado que contraria a tendência: o mandado de segurança 291/95-DF. A controvérsia era sobre o desempate por "voto de Minerva" do então presidente da Casa, após ele próprio ter participado da votação inicial. O mandado foi reconhecido e o ocorreu nulidade do ato de aprovação dos projetos por desobediência a norma do devido processo legislativo como consta na ementa do mandado [31]. Apesar de contrariar posição majoritária, esse julgado, no entanto, não representa a evolução jurisprudencial que almejam os defensores do fiel cumprimento do regimento interno, pois se trata de decisão isolada.

            1.3.6 Uma visão crítica

            Tentamos mostrar ao leitor as informações teóricas deste trabalho com um certo distanciamento, embora sedutores sejam os argumentos de alguns juristas-autores, especialmente para um aluno iniciante e que almeja também, produzir doutrina no futuro. Esse distanciamento é importante para a composição de uma visão crítica sobre o objeto deste trabalho, especialmente na sua face teórica.

            A questão do controle jurisdicional do processo legislativo não se mostrou viável para nós. Os argumentos que defendem esse tipo de controle são contra-factuais. Isto é, embora exponham pontos válidos eles, requerem uma verificação de dados muito difícil de se fazer: de que o controle jurisdicional garante uma lei livre de defeitos jurídicos e mais legítima. Ora, quem garante a isenção dos operadores judicantes, que a doutrina aponta necessária para fazer esse tipo de controle? Será que, exercendo esse controle não seria o Judiciário, politizado ainda mais do que já é, e conseqüentemente transformado em uma outra arena política? [32] Concluímos que dificilmente, neste caso, a lógica parlamentar se reduziria integralmente à lógica judicial. A via possível aqui, seria algum controle. Mas qual seria sua medida, seu exato funcionamento e abrangência, são questões que merecem estudos mais aprofundados.

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Sobre o autor
Bruno Furtado Vieira

bacharelando em Direito pelo Centro Universitário de Brasília, participante do grupo de pesquisa "Lei e Sociedade" (vinculado ao Mestrado em Direito do UniCEUB)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VIEIRA, Bruno Furtado. A produção normativa na Câmara Legislativa do Distrito Federal:: um estudo sobre o dever-ser e o ser do processo legislativo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 803, 14 set. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7291. Acesso em: 28 mar. 2024.

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