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A produção normativa na Câmara Legislativa do Distrito Federal:

um estudo sobre o dever-ser e o ser do processo legislativo

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14/09/2005 às 00:00
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2. Ser

            2.1 Introdução

            Este tópico dedica-se a ponderar o aspecto do processo legislativo tal como ele ocorre, ou seja seu Sein (ser). A tarefa não é fácil. Como e por onde começar a incursão ao campo? Se lançar a todo um mundo – como é o caso do Poder Legislativo – e tentar entender o que por lá realmente acontece, é intimidador, especialmente para um aluno de iniciação científica.

            Tivemos sorte. Conseguimos acesso a dois grupos de dados que nos permitiram estabelecer um diálogo entre nosso aparato teórico e prático (objetivo inicial da pesquisa). Os dois grupos de dados possuem características próprias. O primeiro serviu como um "choque" que nos pôs face-a-face com elementos empíricos do processo legislativo. O segundo teve a função equivalente a um laboratório; que nos permitiu tanto entender melhor o que já tínhamos em mão, como também, perceber novas direções. Trata-se, respectivamente de um relatório–diagnóstico e de uma simulação legislativa.

            2.2 Relatório

            No dia 26 de setembro de 2003, participamos de um "seminário interno sobre processo legislativo da Câmara Legislativa do DF" promovido pela própria Câmara. O evento tratou, entre outros assuntos, de diagnosticar a qualidade do processo legislativo e de propor metas para a Câmara Legislativa do Distrito Federal atingir um modelo ideal de processo. A base do seminário foi um relatório produzido por auditoria com vistas a produzir uma "radiografia" não só do processo legislativo stricto sensu mas de seus suportes, como os recursos humanos técnicos e sistemas informatizados. Por meio de requerimento endereçado à presidência da Casa, tivemos acesso ao relatório. A parte que nos chamou mais atenção foi a que tratou da análise dos autos, ou seja um exame documental do tramite das proposições. Vale dizer que a análise se limitou às proposições de 2002 e início de 2003. Em 2002 foram analisados 188 projetos de lei ordinária (PL) e 88 projetos de lei complementar (PLC). Em 2003 foram analisados 4 projetos de lei ordinária e 1 projeto de lei complementar. Escolhemos alguns casos meramente exemplificativos dos exames feitos: Proposição relatada pelo próprio autor (PL 2869/02, PLC 1603/02); Ausência de registro de leitura em plenário (PL 2761/02); Prazos não cumpridos pelas comissões – parecer do relator fora do prazo (PL 2743/02, PL 2817/02, PL 3141/02); Ausência de demonstrativos legalmente exigidos na instrução dos processos (PL 3132/02, PL 3234/02, PL 1634/02); Ausência de folhas dos autos (PL 2944/02); Rasuras em folhas de votação (PL 2963, PL 3217/02 PLC 1547/02); Apreciação de veto fora do prazo legal (PL 2978/02, PL 3088/02, PLC 1911); Apreciação "em bloco de vetos" (PL 3011/02, PLC 1626/02, PLC 1737/02); Situação em que a redação final desconsiderou o substitutivo aprovado (PL 3000/02); Inclusão de documentos após o 1º turno de votação (PL 144/03, PL 148/03); Aprovação de projetos de desafetação de área sem prévia audiência pública (PLC 1601/02, PLC 1648/02, PLC 1737/02). [33]

            A importância destes casos para o nosso propósito, é que alguns deles incidem justamente nos pontos que tentamos frisar. São casos que exemplificam desprestígio com o rigor legislativo, defendido por Fazzalari e a busca pela celeridade incompatível com a qualidade discursiva do processo legislativo defendida por Habermas.

            A auditoria constatou ainda falhas como a falta de uma política de recursos humanos e "deficiências de treinamento, atualização e reciclagem, principalmente no que respeita ao conhecimento e aplicações do atual regimento interno". [34] Carece a Câmara também – segundo a auditoria - de um aprimoramento e otimização do sistema informatizado de apoio aos trabalhos legislativos: o "Sistema Legis".

            2.3 Politéia

            Foi com satisfação e curiosidade que, em julho de 2004, tomamos conhecimento de um programa de simulação do processo legislativo federal, (chamado Politéia) promovido pelo Instituto de Ciência Política da UnB. Essa simulação teve o mesmo status da bibliografia que trata do processo legislativo federal pois foi inteiramente aproveitada por motivos de semelhança ontológica com o processo local. Conforme explicações que constavam na página eletrônica do programa, [35] o objetivo do Politéia é proporcionar ao estudante a "oportunidade de se familiarizar com dois processos fundamentais da política: (i) o processo legislativo e (ii) o processo de formação das políticas públicas" Ao invés de fazer uso de aulas expositivas ou seminários, o Programa propicia ao participante uma realidade simulada; que permite a elaboração e apreciação de proposições próprias, contando com espaço físico do plenário da CCJ da Câmara dos Deputados, um regimento interno, assessores, ata e súmula das sessões, as comissões simuladas de assuntos sociais (CAS) e de constituição e justiça (CCJ). Enfim todo um esforço para o aluno entender a dinâmica do legislativo brasileiro. A experiência foi valiosa, e nos permitiu lançar novos olhares sobre nosso trabalho.

            A narrativa a seguir, assemelha-se a um relato etnográfico; e tenta demonstrar que o Politéia, embora seja uma experiência de valor limitado por se tratar de uma simulação, guarda importantes semelhanças com a realidade.

            2.4 A Simulação

            Bruno Furtado (...) Bruno Furtado (...) Bruno Furtado. Os votos eram lidos repetidamente em voz alta, em um dos microfones do plenário da CCJ da Câmara dos Deputados. Naquele momento chegava ao fim a apuração da eleição da Mesa Diretora da Casa. A negociação não tinha sido nada fácil. Tudo aconteceu muito rápido, no ritmo de celulares tocando, cochichos, reuniões. Depois de muitos cafés, telefonemas e stress a situação parecia estabilizada. O PMDB tinha sido isolado, graças a um esforço do bloco da maioria, encabeçado pelo PT que incluía ainda o PPS e o PSDB; e pelo bloco da minoria formado pelo meu partido, o PFL e pelo PL. O esforço garantiu uma eleição tranqüila. A disposição de cargos era regimental. O bloco da maioria ficou com a presidência da Casa e o meu bloco, o bloco da minoria, com a vice-presidência. Eu, vice-presidente e um amigo pessoal na presidência. Parecia que a simulação estava nas nossas mãos. Mas nos dias que se seguiram eu aprendi que no legislativo, nada – ou quase nada – é o que parece.

            Quando os trabalhos recomeçaram na manhã seguinte, havia uma nítida tensão no ar. Estava em andamento a negociação da pauta e a situação dos projetos nas comissões. Isso ocorreu mesmo depois de horas de conversas e barganhas na noite anterior. Acho que foi ali, quando primeiro percebi que o mérito dos projetos de lei às vezes perde muito o sentido diante da oportunidade e conveniência política. Em conseqüência disso, não só bons projetos ficariam fora da pauta, como as discussões acerca dos projetos incluídos perderiam muito, pois já tinham sido objeto de negociações e portanto tinham sua aprovação ou arquivamento aprioristicamente decididos. Essa impressão-hipótese foi confirmada durante o andamento dos trabalhos da Comissão de Constituição e Justiça. Como eu era Vice-presidente da Casa não participei como membro efetivo de nenhuma das duas comissões (CAS e CCJ). Por isso transitava entre as duas conforme a necessidade de atenção delas. A certa altura da manhã, fui chamado por um parlamentar da minha bancada que dizia mais ou menos:

            — Bruno, dá uma ajuda lá na CCJ. Não está tendo discussão nenhuma. A gente não se opõe a nada, tá tudo passando direto. Ajuda o pessoal lá, você que faz Direito.

            A situação melhorou um pouco. Tentamos ao máximo questionar formal e constitucionalmente as proposições, sem comprometer de maneira crônica nossa posição política firmada em acordos pretéritos.

            Dois dias depois, entrávamos na fase final da simulação. A tensão desta vez, não se limitava ao campo da percepção de um "sexto sentido"; ela se fazia sentir no andar frenético dos parlamentares de um lado para o outro, em grupos de 3 ou 4 deputados conversando desconfiados em um canto do plenário, em papeis e mais papeis passando nas mãos de todos com listas, rabiscos, projetos de lei. A pauta a ser votada em plenário justificava toda essa movimentação. Projetos que versavam sobre a proibição da pílula do dia seguinte, lobby, educação. Enfim, hoje era o dia em que seriam votadas em plenário as proposições que carregavam uma grande dose de polêmica. Em termos de laboratório o dia serviu, primordialmente, para duas coisas. Confirmação de uma hipótese levantada nos dias anteriores, e uma suscitada pouco depois. Respectivamente, hipótese que nos inclinava a pensar no desprestígio das discussões diante de acertos políticos e da preferência do legislativo pela celeridade em detrimento à qualidade do processo legislativo.

            Isso tudo foi percebido no tramite do projeto de uma parlamentar do meu bloco. O projeto almejava a proibição da pílula do dia seguinte alegando sua natureza abortiva e de conseqüente atentado a um direito fundamental que é a vida. O projeto sofrera emendas, mas mesmo assim, se revestia o seu destino de uma enorme incerteza, apesar de horas e horas de negociações. O presidente da Casa, um parlamentar do PT, havia se comprometido (com o nosso bloco) em fazer um esforço incomensurável para aprovar o projeto, e em troca esperava que os dois projetos de sua autoria recebessem igual tratamento da parte do nosso bloco. A situação era crítica. Para o nosso partido o conteúdo do projeto não era tão querido assim, mas como sofrêramos derrotas sucessivas antes, a aprovação deste projeto era questão de honra. A despeito de negociações prévias, o projeto não fora incluído na pauta de votação do plenário. Ficou claro, que o bloco da maioria (bloco do presidente da Casa) era contra o projeto.

            — Requerimento sobre a mesa, disse o presidente. Requerimento de inclusão na pauta do PL nº 4, que versa sobre a pílula do dia seguinte. Passaremos agora a votação deste requerimento, continuou o presidente em um tom tenso.

            Vale lembrar do interesse do presidente, para quem a aprovação da proposição da pílula do dia seguinte significaria também a aprovação dos seus próprios projetos.

            — Em votação, o requerimento de inclusão do PL nº 4 na pauta do dia. Os favoráveis permaneçam como estão, os contrários se manifestem, disse o presidente.

            O que aconteceu - como esperado – foi que a bancada do PT, PPS, PSDB (bloco da maioria) se manifestou em maior número contra o projeto. A despeito disso e contando com o enorme poder que a mesa diretora possui, o presidente interpretou a manifestação, deferindo (aprovando) o requerimento que incluiria o projeto na pauta. O bloco da maioria se revoltou. Agitados e inconformados exigiram uma nova votação. A verdade era que não existia essa possibilidade, regimentalmente. Uma vez aprovado, o requerimento está aprovado e ponto final. Mas, como mais tarde me confessou o presidente, aquela era uma hora delicada, principalmente para ele, e por isso houve nova votação. Contudo, o que aconteceu daquele ponto em diante mostrou que a simulação virará um verdadeiro jogo de xadrez.

            — Em votação, novamente, o requerimento do PL nº 4, para inclusão na pauta do dia. Os contrários permaneçam como estão, os favoráveis se manifestem, disse rapidamente o presidente.

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            Ele inverteu a frase usada de praxe nas votações. De modo que desatentos, os que tinham a intenção de votar contra – e eram maioria – permaneceram como estavam, desse modo votando a favor.

            — Aprovado, disse em tom exclamativo o presidente!

            Houve tumulto. O bloco da maioria novamente se indignou. Os ânimos ficavam cada vez mais acalorados. A situação era bastante tensa. Houve a exigência de uma votação nominal. Essa votação tinha como característica indagar, deputado por deputado, o seu respectivo voto. E foi assim que se deu por longos minutos a votação. Cada parlamentar deu seu voto. A votação foi igualmente tensa, pois não parecia nada garantido, nem a aprovação nem o arquivamento do requerimento. A votação estava muito apertada. Incrivelmente no resultado final houve empate. Nestes casos o regimento atribui prerrogativa ao presidente da Câmara dos Deputados para usar o chamado "Voto de Minerva" e desempatar a votação. Interessado de forma obstinada com a aprovação dos projetos de lei de sua autoria, o presidente, manteve sua palavra (com o bloco PFL-PL) e contrariando toda a sua bancada declarou:

            — O requerimento está aprovado!

            Dali em diante tudo aconteceu muito rápido. As coisas fugiram do controle. Membros do bloco da maioria gritavam e batiam nas mesas do plenário. Outros andavam em direção a mesa diretora exaltadíssimos. Todo o plenário virara um caos. O presidente rapidamente cortou o funcionamento de todos os microfones a exceção do seu próprio, por onde pedia calma e ordem. Nada acalmava, muito pelo contrário. Orientado por assessores e pelos secretários da mesa, o presidente suspendeu a sessão.

            Os parlamentares assumiram o compromisso, de que se o presidente voltasse a presidir haveria obstrução maciça das votações. Minutos depois, assumi a presidência, aonde permaneci até o final do dia. A situação foi se estabilizando paulatinamente, até que a ordem prevaleceu no restante da sessão plenária. No tempo remanescente da sessão, houve inúmeros pedidos de inclusão urgente, urgentíssimas de projetos na pauta, requerimentos de encerramento de discussões e incontáveis intervenções do tipo "pela ordem", e "questão de ordem", com obvias intenções protelatórias. Isso viria a confirmar nossa impressão, de que havia desprestígio ao andamento democrático do processo legislativo. Mas este não é o ponto central. A grande questão é: poderia ser diferente?

            2.5 Diferenças e Semelhanças

            As diferenças entre o Politéia e a Câmara Legislativa são obvias e descartam tomar algumas situações da simulação como correspondentes ao que realmente acontece. A falta de accountability jurídica e popular, permite que os participantes do Politéia tomem decisões que outrora certamente figurariam suicídio político. A falta da imprensa e de ações estratégicas a longo prazo são pontos importantes [36], porque influem na elaboração e votação das proposições. O fator econômico também é uma diferença gritante. É difícil imaginar um legislativo que não esteja intimamente entrelaçado ao poderio econômico de grupos e corporações. Esse tipo de relacionamento, de caráter financeiro, inexiste no Politéia.

            Contudo, há uma comunhão de semelhanças, e isso não pode ser descartado. Nos dois casos (realidade e simulação) tem mais poder quem conhece mais o regimento. O conhecimento da lei reguladora da casa é um diferencial enorme que se faz sentir especialmente, nas horas mais tensas dos trabalhos. A preferência pela celeridade em detrimento à qualidade do processo, parece prevalecer também nos dois âmbitos. Isso é percebido quando das votações "em bloco", os requerimentos de encerramento de discussões importantes e nas medidas de urgência. Por isso, torna-se claro o desprestigio dos debates acerca dos projetos de lei, especialmente nas comissões [37]. O fato de a simulação ser uma atividade eminentemente acadêmica, não excluiu do programa disputas por poder e diferenças ideológicas.

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Sobre o autor
Bruno Furtado Vieira

bacharelando em Direito pelo Centro Universitário de Brasília, participante do grupo de pesquisa "Lei e Sociedade" (vinculado ao Mestrado em Direito do UniCEUB)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VIEIRA, Bruno Furtado. A produção normativa na Câmara Legislativa do Distrito Federal:: um estudo sobre o dever-ser e o ser do processo legislativo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 803, 14 set. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7291. Acesso em: 27 abr. 2024.

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