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A presunção de vulnerabilidade ante a Lei nº 13.718/2018 e a hipervalorização do punitivismo na ordem jurídica brasileira

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5. DA RELATIVIDADE DA VULNERABILIDADE DA PESSOA MENOR DE 14 ANOS

A literalidade das Súmula n. 593 do Superior Tribunal de Justiça e a literalidade do § 5º do art. 217-A do Código Penal são compatíveis com o entendimento de que a vulnerabilidade da pessoa menor de 14 anos de idade seja relativa. Vejamos o que dispõe a referida súmula:

O crime de estupro de vulnerável se configura com a conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor de 14 anos, sendo irrelevante eventual consentimento da vítima para a prática do ato, sua experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso com o agente.

A Lei n. 13.718/2018 acresceu o § 5º ao artigo 217-A do Código Penal, estabelecendo:

§ 5º As penas previstas no caput e nos §§ 1º, 3º e 4º deste artigo aplicam-se independentemente do consentimento da vítima ou do fato de ela ter mantido relações sexuais anteriormente ao crime.

Uma suposta vítima, useira e vezeira do sexo, mediante a Síndrome de Münchhausen por transferência, eleger um o rapaz que a família dela deseja como marido para ser quem a desvirginou é algo complicado. Uma coisa é dizer que a experiência sexual da pessoa menor de 14 anos não excluirá o crime de estupro de vulnerável, outra será dizer que a vulnerabilidade da pessoa adolescente será relativa. Essa é uma vetusta discussão que está presente desde Nelson Hungria que expôs:

Segundo justamente opina Magalhães Noronha, a presunção estabelecida na letra “a” do art. 224 não é absoluta, mas relativa. É decisivo em tal sentido o elemento histórico. A supressão (propositada, como posso dar testemunho, na qualidade de membro da Comissão Revisora) da clausula “não admitindo prova em contrário”, do art. 293 (posteriormente 275) do Projeto Alcântara (que se inspirava no art. 539 do Código Italiano), visou justamente a abolir a inexorabilidade da presunção.[6]

Conforme afirmou Magalhães Noronha, o fundamento da presunção de violência em razão da idade, como se lê na exposição de motivos, é innocentia consilii do ofendido. Mas, ele continua para afirmar que a presunção de violência, do revogado art. 224, alínea “a”, do Código Penal, era relativa expondo:

Deve, entretanto, essa presunção ser absoluta, não admitir qualquer exceção? Será sempre exato que o menor de quatorze anos não atingiu satisfatório desenvolvimento físico e não idoneidade psico-ética para apreciar as regras atinentes à vida sexual?

Temos sérias dúvidas em opinar pela invariabilidade dessa norma, máxime nos dias que vivemos.[7]

Mencionar a jurisprudência em tais casos é algo complicado porque, conforme determina o art. 234-B do Código Penal, os processos relativos aos crimes contra a dignidade sexual correrão em segredo de justiça. Mas, há um caso notório em que o STJ decidiu que a vulnerabilidade da pessoa menor de 14 anos é relativa, o fundamento foi o de que prostituta Infantil não tem liberdade sexual a tutelar.[8] De modo diverso, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal esclarece: “Presunção de violência, do art. 224, "a", do código penal, somente afastável por exame da prova”.[9]

Uma pequena distância de idade entre a vítima e o suposto estuprador será relevante. Aliás a presunção de vulnerabilidade será até inconstitucional, até porque sobre o assunto, o saudoso Min. Cernicchiaro expôs:

RESP – PENAL – ESTUPRO – PRESUNÇÃO DE VIOLÊNCIA – O Direito Penal moderno é o Direito Penal da culpa. Não se prescinde do elemento subjetivo. Intoleráveis a responsabilidade objetiva e a responsabilidade pelo fato ao delinquente, deve ajustar-se à conduta delituosa. Conduta é fenômeno ocorrente no plano da experiência. É fato. Fato não se presume. Existe ou não existe. O Direito Penal da Culpa é inconciliável com presunções de fato. Que se recrudesça a sanção quando a vítima é menor ou deficiente mental, tudo bem.  Corolário do imperativo da justiça. Não se pode, entretanto, punir alguém por crime não cometido...[10]

Paulo Queiroz defende a relativização da presunção de vulnerabilidade, entendendo incompatível com o Direito tornar a presunção em absoluta, até porque fatos pouco significativos praticados entre adolescentes poderia levar à imposição indevidas de medidas socioeducativas. Concluindo:

E mais, os autores que sustentam o caráter absoluto da vulnerabilidade da vítima menor de 14 anos não raro admitem o caráter relativo dos demais casos, contraditoriamente, uma vez têm o mesmo tratamento legal, razão pela qual devem ser orientados segundo os mesmos princípios e terem uma mesma interpretação sistemática.

Além do mais, a proteção penal não pode ter lugar quando for perfeitamente possível uma autoproteção por parte do próprio indivíduo, sob pena de violação ao princípio de lesividade.

Finalmente, a iniciação sexual na adolescência não é necessariamente nociva, motivo pelo qual a presumida nocividade constitui, em verdade, um preconceito moral.

Assim, ao menos em relação a adolescentes (maiores de doze anos), é razoável admitir-se prova em sentido contrário à previsão legal de vulnerabilidade, de modo a afastar a imputação de crime sempre que se provar que, em razão de maturidade (precoce), o indivíduo de fato não sofreu absolutamente constrangimento ilegal algum, inclusive porque lhe era perfeitamente possível resistir, sem mais, ao ato.[11]

Imagine-se que alguém seja acusado, sem ter praticado conjunção carnal com a suposta vítima. Ela o acusou como tentativa de casar com o mesmo, até porque idealizado pelos pais como a pessoa ideal para ser seu marido.

Até recentemente, nos termos da literalidade do Código Civil, a pessoa menor de 14 anos de idade poderia casar, in verbis:

Art. 1.520. Excepcionalmente, será permitido o casamento de quem ainda não alcançou a idade núbil (art. 1517), para evitar imposição ou cumprimento de pena criminal ou em caso de gravidez.

Poder-se-ia até dizer que o preceito está revogado, mas não plenamente, conforme se vê:

Informei que não se pode mais casar com menor de 14 anos, a fim de elidir a punibilidade criminal, uma vez que foram revogados os incisos VII e VIII do art. 107 do CP. No entanto, o art. 1.520 do CC prevê outra hipótese em que a mulher pode casar com menos de 14 anos, que é a de gravidez. Imagine-se que, após o pai fazer representação criminal e o MP oferecer denúncia, ela se case com o agente e ele a acompanhe por toda gravidez. Ao final, venha a ser condenado. Ela e o filho terão que visitá-lo no presídio. Esse absurdo só pode ser evitado, se reconhecida a subsidiariedade da iniciativa pública.[12]

Uma suposta vítima que não teve relação sexual com um acusado e, quando seria desmascarada sobre defloramento anterior, indicar o nome de pessoa inocente, até em decorrência da Síndrome de Münchhausen por transferência (os pais terem o acusado como a pessoa ideal para casar com ela). Então, tentarem forçar o acusado a “corrigir o problema”, não mais poderia se concretizar “para evitar imposição ou cumprimento de pena criminal”, eis que a Lei n. 11.106, de 28.3.2005, revogou os dispositivos que levavam à extinção da punibilidade pelo casamento da vítima.

A Lei n. 13.811, de 12.3.2019, em defesa da tradicional família brasileira, fez mais do que simplesmente revogar o transcrito art. 1520 do Código Civil, cuidou de proibir o casamento da pessoa menor de 16 anos de idade. Isso é um contrassenso porque uma adolescente maior de 14 anos de idade poderá licitamente ter conjunção carnal com o namorado, mas se engravidar não poderá casar. Veja-se que há uma contradictio in terminis no novel dispositivo, uma vez que ao contrário de valorizar a tradicional família brasileira leva ao oposto, ou seja, leva à adolescente “mãe solteira”.

Em tempos em que a Psicologia vem indicando que a adolescência se estende até os 30 anos de idade,[13] a família de adolescente de 12 anos de idade, mediante evidente ameaça, exigir que o agente se case para não ser processado criminalmente será um absurdo, isso porque os crimes sexuais contra vulneráveis são de ação de iniciativa pública incondicionada e a idade núbil para o casamento será a de 16 anos de idade. Isso será o que se concretizará muitas vezes, especialmente nas regiões Norte e Nordeste do território nacional, o que é insustentável, seja do ponto de vista jurídico ou prático.

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O Código Penal da Nação Argentina previa, até o advento da Lei n. 25.087, de 2.5.1999, que a vulnerabilidade se dava em razão da idade inferior a 12 anos. Hoje, a lei dispõe:

Artigo 119. -Será reprimido com reclusão ou prisão de seis (6) meses a quatro (4) anos quem abusar sexualmente de uma pessoa quando essa for inferior a treze (13) anos ou quando por meio de violência, ameaça, abuso coativo ou intimidatório de uma relação de dependência, de autoridade, ou de poder, ou aproveitando-se que a vítima por qualquer causa não seria capaz de concordar livremente com a ação.[14]

Essa nova redação do Código Penal argentino é duramente criticada pela doutrina, sendo oportuna a lição de Arias e Gauna:

Enquanto a idade, chegava antes aos doze anos, e alcança agora as pessoas que não completaram os treze anos, para estabelecer abaixo de quanto o consentimento não será válido. Se se tem em conta que os “doze anos” foram os da versão de 1921, 1968, 1976 e 1984, ademais de que, fundamentalmente, a modificação não parece adequar-se à realidade senão contradizê-la (em 1921, uma pessoa de doze anos tinha o conhecimento e a experiência das questões sexuais que hoje pode ter uma pessoa de nove), não se pode aprovar a modificação.[15]

Nélson Hungria, comentando a redação de 1940, já percebia a relatividade da vulnerabilidade da pessoa menor de 14 anos. Guilherme de Souza Nucci, comentando o julgamento do Habeas Corpus n. 73.662-MG (mencionado anteriormente), demonstrou que aquele tribunal se apresentou dividido, com votos favoráveis à relatividade da presunção de violência dos Min. Marco Aurélio, Francisco Rezek e Maurício Correa; contrários Carlos Velloso e Néri da Silveira. E o autor toma partido expondo:

Partimos do seguinte ponto básico: o legislador, na área penal, continua retrógrado e incapaz de acompanhar as mudanças de comportamento reais na sociedade brasileira, inclusive no campo da definição de criança ou adolescente. Perdemos a oportunidade ímpar para equiparar os conceitos com o Estatuto da Criança e do Adolescente, ou seja, criança é a pessoa menor de 12 anos; adolescente quem é maior de 12 anos. Logo, a idade 14 anos deveria ter sido eliminada desse cenário.[16]

Uma suposta vítima que ingere bebida alcoólica, acostumada ao sexo, não poderá ser considerada vulnerável, especialmente quando apresentar como seu algoz pessoa eleita como ideal para casar pelos pais e pela adolescente para suportar seu desvirginamento precoce.

Alberto Silva Franco, transcrevendo parte do voto que ensejou o aresto do REsp n. 46.424-2/RO, anteriormente transcrito, sustenta que a presunção de violência de então, hoje presunção de vulnerabilidade, é inconstitucional, uma vez que crime é fato e fato se prova.[17] No mesmo sentido, Cezar Roberto Bitencourt, citando aresto do TJDFT, em que foi relator o Desembargador de Justiça Otávio Augusto, sustenta que a presunção é relativa e que a Constituição Federal não recepcionou a presunção juris et de jure.[18]

Evidenciando o quanto estamos distantes da lógica jurídico-criminal hodierna, transcrevemos a tipificação do estupro de vulnerável na legislação espanhola:

Artigo 181.

1. O que, sem violência ou intimidação e sem consentimento médio, realizar atos que atentem contra a liberdade sexual de outra pessoa, será punido como culpado de abuso sexual com a pena de multa de doze a vinte e quatro meses.

2. Em qualquer caso, consideram-se abusos sexuais não consentidos os que são executados:

1º Sobre menores de 12 anos de idade.

2º Sobre as pessoas que se achem privadas de sentido ou abusando de seu transtorno mental.

Nestes casos, será imposta uma sentença de prisão de seis meses a dois anos.

3. quando o consentimento for obtido pelo culpado de uma situação de superioridade que declara que a liberdade da vítima é punida, será imposta uma multa de seis a doze meses.

Veja-se o recrudescimento do rigor advindo com a Lei n. 12.015, de 7.8.2009, evidenciando o quanto estamos na contramão da história jurídico-criminal e, em um país em que um Ministro da Justiça reconhece serem as prisões medievais, em que o cárcere retira a dignidade da pessoa apenada, condenar alguém por crime que não cometeu será uma grande injustiça e, ainda que se caracterize a relação sexual com menor de 14 anos, essencial será verificar se a pessoa é concretamente vulnerável, o que a lei relativamente presume.

Condenar uma pessoa por crime hediondo (Lei n. 8.072, art. 1º, inc. VI), com os rigores do art. 2º da referida lei, será inviabilizar a vida lícita de alguém, especialmente, se for o agente menor de 21 anos de idade. Com efeito, será macular desnecessariamente o nome de alguém, quando a pessoa adolescente tiver praticado atos libidinosos quando, por exemplo, for prostituta infantil.

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Sobre os autores
Sidio Rosa de Mesquita Júnior

Procurador Federal e Professor Universitário. Graduado em Segurança Pública (1989) e em Direito (1994). Especialista Direito Penal e Criminologia (1996) e Metodologia do Ensino Superior (1999). Mestre em Direito (2002). Doutorando em Direito. Autor dos livros "Prescrição Penal"; "Execução Criminal: Teoria e Prática"; e "Comentários à Lei Antidrogas: Lei n. 11.343, de 23.8.2006" (todos da Editora Atlas).

Alessandro Rodrigues Faria

Professor Me. do UDF – Centro Universitário do Distrito Federal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa ; FARIA, Alessandro Rodrigues. A presunção de vulnerabilidade ante a Lei nº 13.718/2018 e a hipervalorização do punitivismo na ordem jurídica brasileira. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5762, 11 abr. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/73166. Acesso em: 22 nov. 2024.

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