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A alienação fiduciária do bem de família e a boa-fé objetiva da relação negocial

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13/04/2019 às 14:00
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O imóvel dado em garantia fiduciária

A Lei 8.009/90 de cunho eminentemente social, tem por escopo resguardar o direito à residência ao devedor e à sua família, assegurando-lhes condições dignas de moradia; mas não pode servir de meio para frustrar as legítimas pretensões dos credores.

Não obstante, a norma protetiva do bem de família, não pode conviver, tolerar e premiar a atuação dos devedores em desconformidade com o cânone da boa-fé objetiva.

Com efeito, a parte não pode se beneficiar da própria torpeza, ainda mais, quando deu o imóvel em garantia de alienação fiduciária, e assim, confessou a mora perante a instituição financeira credora. Isso afasta a ideia de que o bem pode ser protegido como bem de família.

Oportuno destacar nesta casuística que não está diante de penhora, mas de consolidação de propriedade fiduciária, em razão de mora confessada pelo devedor.

A penhora, consoante exaustivamente já elucidou a doutrina [9]:

“é ato executivo e não compartilha a natureza do penhor e do arresto. (…) Indubitavelmente, a penhora constitui “ato específico de intromissão do Estado na esfera jurídica” do obrigado, “mediante a apreensão material, direta ou indireta, de bens constantes no patrimônio do devedor”

Referida constrição pressupõe, assim, a invasão em patrimônio alheio, mas, no caso da alienação fiduciária em garantia, o bem em questão é do credor, não se podendo falar, por óbvio, em penhora dos próprios bens.

As alterações de titularidade na alienação fiduciária em garantia, com a consolidação do domínio nas mãos do credor se dão, segundo o art. 26, § 7º, da Lei 9.514/97, em sede cartorária, ou seja, no próprio registro de imóveis, cumprindo ao oficial, decorrido o prazo de purga da mora, certificar esse fato e promover a averbação, na matrícula do imóvel, da consolidação da propriedade em nome do fiduciário, tão logo realizado o pagamento do imposto de transmissão inter-vivos.


Conclusão

A boa fé objetiva impõe aos contratantes não só o cumprimento da prestação obrigacional principal, mas também a observância da lealdade no cumprimento de todas as prestações acessórias que emergem de uma obrigação complexa (art. 422 do CC), o que se refere à função integrativa do princípio da boa-fé contratual, que traduz a noção de deveres anexos.

A Doutrina [10] não diverge:

“O conteúdo da relação obrigacional é dado pela vontade e integrado pela boa-fé. Com isso, estamos afirmando que a prestação principal do negócio jurídico (dar, fazer e não fazer) é um dado decorrente da vontade. Os deveres principais da prestação constituem o núcleo dominante, a alma da relação obrigacional. Daí que sejam eles que definem o tipo do contrato. Todavia, outros deveres se impõem na relação obrigacional, completamente desvinculados da vontade de seus participantes. Trata-se dos deveres de conduta, também conhecidos na doutrina como deveres anexos, deveres instrumentais, deveres laterais, deveres acessórios, deveres de proteção e deveres de tutela. Os deveres de conduta são conduzidos ao negócio jurídico pela boa-fé, destinando-se a resguardar o fiel processamento da relação obrigacional em que a prestação se integra. Eles incidem tanto sobre o devedor quanto sobre o credor, mediante resguardo dos direitos fundamentais de ambos, a partir de uma ordem de cooperação, proteção e informação, em via de facilitação do adimplemento, tutelando-se a dignidade do devedor e o crédito do titular ativo”

A questão da proteção indiscriminada do bem de família ganha novas luzes quando confrontada com condutas que vão de encontro à própria ética e à boa-fé, que devem permear todas as relações negociais.

Voltando a tema do negocio fiduciário de imóveis, e, partindo da premissa acima exposta, não pode o devedor ofertar bem imóvel em garantia de uma dívida que é sabidamente residência familiar para, posteriormente, vir a informar que tal garantia não encontra respaldo legal, pugnando pela sua exclusão.

Tem-se, assim, a ponderação da proteção irrestrita ao bem de família, tendo em vista a necessidade de se vedar, também, as atitudes que atentem contra a boa-fé e a eticidade, ínsitas às relações negociais.

Ademais, tem-se que a própria Lei 8.009/90, com o escopo de proteger o bem destinado à residência familiar, aduz que o imóvel assim categorizado não será objeto de penhora por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, mas em nenhuma passagem dispõe que tal bem não possa ser alienado pelo seu proprietário.

Desta forma, não se pode concluir que o bem de família legal seja inalienável e, por conseguinte, que não possa ser alienado fiduciariamente por seu proprietário, se assim for de sua vontade, nos termos do art. 22 da Lei 9.514/97.

Neste sentido:

DIREITO PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE DE CLÁUSULA CONTRATUAL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. OMISSÃO, CONTRADIÇÃO OU OBSCURIDADE. NÃO INDICAÇÃO. SÚMULA 284/STF. PREQUESTIONAMENTO. AUSÊNCIA. SÚMULA 211/STJ. CONTRATO DE FACTORING. NULIDADE. QUESTÃO PRECLUSA. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE BEM IMÓVEL RECONHECIDO COMO BEM DE FAMÍLIA. POSSIBILIDADE. CONDUTA QUE FERE A ÉTICA E A BOA-FÉ.

1. Ação declaratória de nulidade de cláusula contratual, em razão de contrato de fomento mercantil firmado entre as partes.

2. O propósito recursal é, a par da análise da ocorrência de negativa de prestação jurisdicional, definir se é nulo o contrato de fomento mercantil firmado entre as partes, bem ainda se é válida a alienação fiduciária de imóvel reconhecido como bem de família.

3. A ausência de expressa indicação de obscuridade, omissão ou contradição nas razões recursais enseja o não conhecimento do recurso especial.

4. A ausência de decisão acerca dos argumentos invocados pela recorrente em suas razões recursais, não obstante a oposição de embargos de declaração, impede o conhecimento do recurso especial.

5. Apenas em sede de recurso especial a recorrente vem defender a inexistência de nulidade do instrumento celebrado entre as partes, mostrando-se inviável a sua análise, ante a inegável ocorrência da preclusão.

6. A questão da proteção indiscriminada do bem de família ganha novas luzes quando confrontada com condutas que vão de encontro à própria ética e à boa-fé, que devem permear todas as relações negociais.

7. Não pode o devedor ofertar bem em garantia que é sabidamente residência familiar para, posteriormente, vir a informar que tal garantia não encontra respaldo legal, pugnando pela sua exclusão (vedação ao comportamento contraditório).

8. Tem-se, assim, a ponderação da proteção irrestrita ao bem de família, tendo em vista a necessidade de se vedar, também, as atitudes que atentem contra a boa-fé e a eticidade, ínsitas às relações negociais.

9. Na hipótese dos autos, não há qualquer alegação por parte dos recorridos de que houve vício de vontade no oferecimento do imóvel em garantia, motivo pelo qual não se pode extrair a sua invalidade.

10. Ademais, tem-se que a própria Lei 8.009/90, com o escopo de proteger o bem destinado à residência familiar, aduz que o imóvel assim categorizado não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, mas em nenhuma passagem dispõe que tal bem não possa ser alienado pelo seu proprietário.

11. Não se pode concluir que o bem de família legal seja inalienável e, por conseguinte, que não possa ser alienado fiduciariamente por seu proprietário, se assim for de sua vontade, nos termos do art. 22 da Lei 9.514/97.

12. Reconhecida, na espécie, a validade da cláusula que prevê a alienação fiduciária do bem de família, há que se admitir que o imóvel, após a consolidação da propriedade em nome do credor fiduciário, seja vendido, nos termos do art. 27 da já referida lei.

13. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa extensão, provido.(REsp 1677015/SP, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, Rel. p/ Acórdão Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 28/08/2018, DJe 06/09/2018)

Nas operações de empréstimo bancário desta natureza, o devedor de forma livre, espontânea e consentida oferece o imóvel de sua propriedade como garantia fiduciária por meio de cédula de crédito bancário.

A indicação nesses termos implica em renúncia ao benefício da inalienabilidade, qual seja, o afastamento da norma protetiva do bem de família.

A fiduciante, antes da constituição da alienação fiduciária em garantia sobre o imóvel, poderia vendê-lo, se assim o quisesse, sendo que o instituto do bem de família não lhe retira a disponibilidade do patrimônio.

A propósito, pontifica Araken de Assis [11], tratando do inciso V do art. 3º da Lei 8.009/90:

“O inciso representa expressiva manifestação do princípio da disponibilidade da impenhorabilidade. Nada impede que o obrigado aliene a residência familiar para solver dívidas. Neste particular, a residência se distingue do bem de família, que é inalienável. Impenhorável que seja a residência, o proprietário pode realizar negócios jurídicos de disposição, e a regra cogita, dentre outros, da instituição de gravame real. É lícito, portanto, constituir hipoteca e predestinar a residência da própria família à execução, como decidiu a 3.a Turma do STJ. Todavia, calha assinalar que alguns sistemas jurídicos, incluindo o do Texas, proibiram tanto a alienação do bem de família, quanto a constituição de hipoteca, na suposição de que 1’hypothèque était considérée jadis comme plus dangereuse, au point de vue economique et social, que 1’aliénation directe”.385 Ao invés, a Lei 8.009/1990 autoriza ambos os negócios de disposição”

Em resumo, não pode o proprietário invocar o amparo legal se a ele espontaneamente renunciou. Ressalte-se que o acolhimento da sua pretensão em juízo ofenderia o princípio que veda o comportamento contraditório, expresso na máxima latina venire contra factum proprium non potest.

A devida efetividade jurisdicional, bem como, a garantia fiduciária, muitas vezes é colocada em risco nos certames judiciais, estimulando a inadimplência, encarecendo os financiamentos em detrimentos de todos aqueles cumpridores pontuais de suas obrigações nessa seara.

A regra do bem de família aplica-se às situações de uso regular do direito. A fraude e a má-fé do devedor conduzem à ineficácia da norma protetiva em discussão, que não pode conviver, tolerar e premiar a atuação do agente em desconformidade com o ordenamento jurídico.

O devedor não deve ser apenas portador de direitos e também, cumpridor de obrigações no âmbito civil. Para ser merecedor da tutela jurisdicional deve provar sua boa-fé, agindo de forma diligente e cautelosa em seus atos comerciais.

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Reprisa-se: a confiança é pressuposto de todo e qualquer negócio. É a força motriz da economia porquanto permite a troca de serviços e/ou produtos e benefícios mútuos entre as pessoas. É, de certo modo, um meio indispensável para o surgimento e conclusão de negócios.

Com efeito, a boa-fé do devedor é determinante para que se possa socorrer da regra protetiva do art. 1º da Lei 8.009/90, devendo ser reprimidos quaisquer atos praticados no intuito de fraudar credores, de obter benefício indevido ou de retardar o trâmite do processo de cobrança/execução de dívidas.

A boa-fé objetiva foi consagrada como um dos princípios fundamentais do direito privado, cuja função é estabelecer um padrão ético de conduta para as partes nas relações obrigacionais. Todavia, não se restringe a esta área do Direito, ecoando por todo o ordenamento jurídico.

Conclui-se, portanto, que a norma protetiva bem de família não é irrestrita, porquanto a confiança é pressuposto de todo e qualquer negócio.

Assim sendo, em face da renúncia do devedor, representada pela indicação do bem imóvel, em sede de garantia de débito por alienação fiduciária, afasta-se a norma protetiva, podendo, desta forma, ser alienado fiduciariamente por seu proprietário, se assim for de sua vontade, nos termos do art. 27 da Lei 9.514/97.


Referências bibliográficas

[1] REALE, Miguel. A função social dos contratos. Disponível em: http://www.miguelreale.com.br/artigos/funsoccont.htm. Acessado em 29/08/2017.

[2] WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Primeiros Comentários ao Novo Código de Processo Civil Artigo por Artigo. 1. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.

[3] JUNIOR, Nelson Nery. Código Civil comentado. 2 edição. Editora RT. Página 339.

[4] [8] VENOSA Silvio de Salvo. Direito Civil. São Paulo, 5º Volume, Ed. Saraiva, 3ª ed., pg. 550 e 1º volume, pg. 345.

[5] GOMES, Orlando. Direitos Reais. 8ª. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 325.

[6] SILVA, Bruno Mattos e. Compra de imóveis: aspectos jurídicos, cautelas devidas e análise de riscos. 5ª edição. Atlas. Pg. 20-21.

[7] BRASIL. Lei n. 10.931 de 02 de agosto de 2004. Dispõe sobre o patrimônio de afetação de incorporações imobiliárias, Letra de Crédito Imobiliário, Cédula de Crédito Imobiliário, Cédula de Crédito Bancário, altera o Decreto-Lei no 911, de 1o de outubro de 1969, as Leis no 4.591, de 16 de dezembro de 1964, no 4.728, de 14 de julho de 1965, e no 10.406, de 10 de janeiro de 2002, e dá outras providências.

[9] ASSIS, Araken de. Manual da Execução, ed. RT, 2ª ed. em e-book, 2017, item 266.

[10] ROSENVALD, Nelson. Código Civil Comentado: doutrina e jurisprudência, Manole, 6ª ed., p. 489.

[11] ASSIS, Araken de. Manual da Execução, 1ª ed. em e-book, Ed. RT, 2015, item 43.11.5.5.

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Sobre o autor
Alexandre Assaf Filho

Pós-Graduado em Direito Societário - Instituto Insper (SP). Especialização em Processo Civil (Lato Sensu) - FAAP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ASSAF FILHO, Alexandre. A alienação fiduciária do bem de família e a boa-fé objetiva da relação negocial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5764, 13 abr. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/73169. Acesso em: 27 abr. 2024.

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