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Dos reflexos jurídicos, políticos, sociais e ambientais da constitucionalização do direito à moradia

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26/09/2005 às 00:00
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O Brasil, em decorrência dos compromissos internacionais assumidos e da imposição externa visando à segurança da posse, incluiu o direito à moradia" no rol dos direitos fundamentais sociais.

RESUMO

            A urbanização ocasionou o incremento das ofertas no mercado de trabalho, as possibilidades e facilidades da vida urbana, mas nem todas as pessoas que habitam as cidades e centros urbanos usufruem destas facilidades e oportunidades. Dentre as grandes problemáticas resultantes da urbanização destaca-se em especial a inerente à moradia, ou seja, o elevado déficit habitacional e a inadequação das moradias existentes em virtude da precariedade, insalubridade, ilegalidade ou ainda da irregularidade. O déficit habitacional brasileiro é de sete milhões e duzentas e vinte três mil moradias, além do também elevado número de habitações inadequadas. Em decorrência destes números, nos últimos anos, os governos, a sociedade civil e movimentos populares, vêm buscando alternativas e soluções para este quadro que não se restringe ao Brasil. Neste diapasão, inúmeros tratados e convenções foram assinados buscando soluções, estratégias, mas principalmente o comprometimento dos governos visando a promoção de melhorias. O Brasil, principalmente em decorrência dos compromissos internacionais assumidos e da imposição externa visando a "segurança da posse", incluiu através da Emenda Constitucional nº 26, de 14 de fevereiro de 2000, o "direito à moradia" no rol dos direitos fundamentais sociais (art. 6º, da CF/88). A não efetivação deste direito propicia a violação a inúmeros outros direitos e valores que visam assegurar a dignidade do ser humano, tais como: direito à identidade, à qualidade de vida, à segurança, à saúde, às oportunidades de trabalho, à inclusão social, cidadania, entre outros. Assim sendo este estudo visa a analisar os reflexos jurídicos, políticos, sociais e ambientais decorrentes da constitucionalização do direito à moradia e principalmente analisar se a positivação do direito à moradia proporcionou a efetividade deste direito. Para a consecução dos objetivos propostos foi realizada intensa pesquisa bibliográfica, documental e legal, adotando-se um enfoque multidisciplinar com auxílio do Direito Constitucional, Urbanístico, Civil, Ambiental, Internacional e Administrativo.

            Palavras-chave: direito à moradia. flexibilização normativa. políticas públicas.


1. INTRODUÇÃO

            O processo de urbanização foi intenso nos séculos XVIII e XIX, mas atualmente, os seus reflexos, bem como o seu constante desenvolvimento continua sendo sentido em todos os cantos do Planeta.

            No Brasil o crescimento das cidades intensificou-se a partir da década de 30, do século XX. Em 1950, o índice de urbanização do país era de 36%; em 1970, 56%; em 1990, mais de 77% e atualmente o índice supera os 80%, ou seja, dos mais de 176 milhões de habitantes mais de 140 milhões habitam as cidades brasileiras.

            A urbanização ocasionou o incremento das ofertas no mercado de trabalho, as possibilidades e facilidades da vida urbana, mas nem todas as pessoas que habitam as cidades e centros urbanos usufruem destas facilidades e oportunidades, pois para boa parte dos cidadãos a realidade urbana é degradante e desumana. Além do desequilíbrio proporcionado pelo abandono do meio rural e o uso intenso e irracional do solo urbano inúmeras outras conseqüências negativas atingem grande parte dos cidadãos urbanos, ou seja, a grande massa que está à margem do lucro e dos benefícios da urbanização. Dentre as grandes problemáticas resultantes da urbanização destaca-se em especial a inerente à moradia, ou seja, o elevado déficit habitacional e a inadequação das moradias existentes em virtude da precariedade, insalubridade, ilegalidade ou ainda da irregularidade.

            Todavia, o problema de moradia não é recente, teve seu início com a Revolução Industrial e desde lá, vem se agravando (LEFEBVRE, 1991). A Revolução Industrial aumentou a oferta de trabalho nas cidades, provocando a urbanização, ou seja, grande parte dos moradores da zona rural, transferiram-se para as cidades, sem muito capital e não ganhando o suficiente para sustentar a família e alugar ou comprar uma casa. Deste modo, começaram as ocupações dos morros, encostas, terras públicas, terrenos privados abandonados, ou seja, de todos os lugares estratégicos, próximos às fábricas e outras formas de trabalho, e baratos, pois não precisariam alocar recursos com os meios de transporte e não precisariam comprar ou alugar um lugar para morar.

            O elevado déficit habitacional e a inadequação da moradia não são problemas isolados, recentes e restritos ao Brasil. Ao contrário, são problemas mundiais históricos que se originaram com a urbanização provocada pela Revolução Industrial e desde lá, somente vem se agravando e se difundindo (LEFEBVRE, 1991).

            Importante salientar que nos últimos anos, a problemática da moradia vem despertando a atenção dos governos e da sociedade civil em nível internacional e nacional. E neste sentido, inúmeros tratados e convenções foram assinados buscando soluções, estratégias, mas principalmente o comprometimento dos governos visando a promoção de melhorias no quadro.

            O Brasil, principalmente em decorrência dos compromissos internacionais assumidos incluiu através da Emenda Constitucional nº 26, de 14 de fevereiro de 2000, o direito à moradia no rol dos direitos fundamentais sociais (art. 6º, da CF/88).

            Destaca-se que o "Direito à Moradia" (art.6º, CF/88) não se confunde com o "Direito à Propriedade" (art.5º, XXII, da CF/88), assim sendo, a constitucionalização desse direito não assegura ao cidadão o efetivo acesso à propriedade, mas visa a efetivar o acesso à moradia.

            A moradia digna constitui-se num direito humano positivado na Constituição Federal brasileira de 1988, portanto, um direito fundamental do cidadão brasileiro, além de revestir-se em um direito inerente à personalidade humana. A não efetivação deste direito propicia a violação a inúmeros outros direitos e valores que visam assegurar a dignidade do ser humano, tais como: direito à identidade, à qualidade de vida, à segurança, à saúde, às oportunidades de trabalho, à inclusão social, cidadania, entre outros.

            A efetivação do Direito à Moradia está ligada diretamente a solução de dois problemas. Primeiramente, o problema do acesso à moradia, ou seja, do elevado déficit habitacional brasileiro e também o problema resultante da inadequação das moradias existentes, ou seja, do elevado número de moradias precárias, insalubres, ilegais e irregulares.

            O presente trabalho visa a estudar os reflexos jurídicos, políticos, sociais e ambientais decorrentes da positivação do direito à moradia na Constituição Federal brasileira de 1988, como também, analisar a efetividade deste direito desde sua positivação. E para tal escopo, estudar-se-á as políticas públicas e os instrumentos jurídicos criados pelo Estado brasileiro visando a promoção do acesso à moradia urbana, ou seja, a redução do déficit habitacional brasileiro e a melhoria das condições das moradias urbanas, e ainda os valores e direitos conexos com a imprescindível efetivação do direito à moradia.

            Para a consecução dos objetivos propostos foi realizada intensa pesquisa bibliográfica, documental e legal, adotando-se um enfoque multidisciplinar com auxílio do Direito Constitucional, Urbanístico, Civil, Ambiental, Internacional e Administrativo.

            O trabalho está dividido em 5 partes, sendo que a primeira é a introdução; a segunda trata do déficit e da inadequação habitacional urbana brasileira; a terceira versa sobre a positivação do direito à moradia e sobre os direitos e valores conexos a este; a quarta estuda os reflexos jurídicos, políticos, sociais e ambientais decorrentes da positivação do direito à moradia e por último as considerações finais.


2. DO DEFICIT E DA INADEQUAÇÃO HABITACIONAL URBANA

            Conforme salientado, a efetivação do direito à moradia depende da resolução das duas problemáticas enfocadas, quais sejam, o elevado déficit habitacional brasileiro e o elevado índice de inadequação das moradias urbanas, seja por questões de salubridade, precariedade, ilegalidade e ou irregularidade.

            Importante destacar que, entende-se por déficit habitacional a demanda, a necessidade de novas moradias, enquanto que por inadequação das moradias não a sua inexistência, mas as péssimas condições das moradias existentes, tanto por precariedade (insegurança, alto grau de riscos ao morador), insalubridade (péssimas condições de higiene), ilegalidade (moradia inexistente juridicamente), e irregularidade (contrária às normas jurídicas).

            O déficit habitacional brasileiro é de sete milhões e duzentas e vinte três mil moradias (7.223.000), sendo que o déficit urbano é de cinco milhões e quatrocentas e setenta mil unidades (5.470.000), enquanto que nas áreas rurais o déficit é de um milhão e setecentos e cinqüenta e duas mil unidades (1.752.000), principalmente em função do déficit rural da Região Norte, que soma 342 mil unidades.

            Em números absolutos as regiões Nordeste e Sudeste lideram as necessidades habitacionais e representam 71.9% do total do país. A distinção entre elas é que enquanto no Nordeste grande parte do problema se localiza em áreas rurais, no Sudeste é eminentemente urbano. Entre as unidades da Federação destacam-se São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, na região Sudeste, com as demandas habitacionais concentradas nas áreas urbanas. Na região Nordeste, o déficit se localiza principalmente no Maranhão, Ceará e na Bahia e com participação relevante das áreas rurais.

            A unidade da Federação com maior déficit habitacional é São Paulo, sendo este de setecentos e setenta e três mil e quatrocentas e noventa unidades (773.490), sendo que setecentas e dezoito mil e duzentas e oitenta e três unidades (718.283) em áreas urbanas. A seguir vem o Maranhão, com carência de seiscentos e seis mil e trezentas e quarenta e quatro unidades (606.344). A maior parte delas trezentas e vinte e duas mil cento e cinqüenta e seis unidades (332.156) em áreas rurais.

            Percentualmente, o déficit habitacional é mais relevante na Região Norte, 29%, e na Nordeste, 22.1%. A seguir vêm a região Centro-Oeste, 12.2%; a Sudeste, 8,2% e a Sul 7.2%. Entre as unidades da Federação sobressaem o Maranhão, 49,1%, com mais 36.2% nas áreas urbanas e 69,5% nas rurais; o Pará 36.3%, com 28.4% nas áreas urbanas e 54.3% nas rurais; e o Amazonas, 29.6%, com 23.9% nas áreas urbanas e 51,5% nas rurais.

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            No Brasil, 5.8% dos domicílios urbanos apresentam inadequação fundiária, a maior parte localiza-se em regiões metropolitanas (55,1% do total), resultado diretamente vinculado ao grande número de domicílios nessas condições situados na Região Sudeste.

            O Relatório da Fundação João Pinheiro indica a existência de 3.3 milhões de domicílios no Brasil sem banheiro. Os domicílios sem banheiro concentram-se nas regiões Nordeste e Norte do Brasil, sendo que o maior número é observado nos municípios menores (população sede inferior a 20 mil habitantes em 2000) da Região Nordeste. A percentagem de domicílios sem banheiro atinge mais da metade dos domicílios localizados em área urbanas dos municípios menores (com população sede inferior a 20 mil habitantes em 2000) da Região Norte e um terço daqueles pertencentes a este mesmo estrato situados na Região Nordeste. Nos estados do Maranhão, Acre, Amapá mais de 40% do total dos domicílios não possuem banheiro (49.9%, 48.9% e 40.8%, respectivamente), situação que apresenta um grande contraste com aquela existente em alguns estados do Sul e Sudeste, onde as proporções são inferiores a 5% do total dos domicílios, sendo 1.3% no estado de São Paulo, 2.3% no Rio de Janeiro e 3.5% em Santa Catarina).

            A carência de infra-estrutura nas cidades reflete, em geral, a situação de domicílios localizados em áreas precárias em termo urbanísticos, onde redes de água e esgoto, sistemas de coleta de lixo e iluminação pública não se encontram implantados. A carência de qualquer dos itens de infra-estrutura considerados atinge 12.1 milhões de domicílios particulares urbanos no Brasil distribuídos quase igualmente entre as regiões metropolitanas, o grupo dos municípios com população da sede igual ou superior 20 mil habitantes e o dos municípios com população inferir a esse limite. Já a carência simultânea de abastecimento de água e esgotamento sanitário adequados atinge 2,3 milhões de moradias. A carência de infra-estrutura em qualquer dos critérios adotados, em termos da quantidade absoluta de domicílios, está concentrada nas regiões Nordeste e Sudeste.Todavia, na primeira região essa inadequação é generalizada a todos os grupos de municípios, enquanto na segunda concentra-se nas regiões metropolitanas. Quando são consideradas as carências simultâneas de água e esgoto, a Região Nordeste é novamente destacada, sobressaindo os municípios com população da sede inferior a 20 mil habitantes. O menor número de domicílios inadequados segundo esse critério encontra-se no Sul do país.

            O Ministério das Cidades estima-se que 84% do déficit habitacional total é de famílias com renda de até três salários mínimos e que dos 5.560 municípios brasileiros mais de 40% possuem loteamentos irregulares e que aproximadamente 25% das cidades brasileiras possuem favelas. O Censo do IBGE 2000 revela que todas as cidades com mais de 500.000 habitantes apresentam assentamentos irregulares.

            Os dados apresentados retratam a situação caótica vivenciada no Brasil por milhares de famílias que não têm moradia e, portanto, vivem em ruas, praças, de baixo de pontes, em locais improvisados pelo poder público ou por organizações, e também por aquelas que mesmo tendo moradia sofrem com a precariedade, insalubridade, irregularidade e ilegalidade das suas moradias. A ausência de moradia ou a sua inadequação constituem violações aos direitos humanos, fundamentais e aos direitos da personalidade, refletindo negativamente em todos os setores da vida das pessoas atingidas, conforme será analisado em seguida.


3. DA POSITIVAÇÃO DO DIREITO À MORADIA E DOS VALORES E DIREITOS CONEXOS

            Diante dos índices demonstrados que refletem a situação subumana vivenciada por milhares de pessoas e famílias em todo Brasil não é surpreendente que movimentos populares tenham levantado a "bandeira" e assim também paulatinamente, organizações de defesa dos direitos humanos e da cidadania, bem como, algumas administrações públicas. Edésio Fernandes relata o despertar desta consciência no Brasil:

            Foi somente nas últimas décadas que, com as mudanças no quadro político maior do país – causadas inicialmente, dentre outros fatores, pelo fortalecimento dos movimentos populares-, algumas administrações locais começaram a reconhecer os direitos dos favelados de terem acesso ao solo urbano e à moradia. Vários programas de regularização de favelas já foram formulados com vistas a promover tanto a urbanização quanto a legalização das favelas existentes. (in SAULE JÚNIOR, 1999, p. 130) (grifo nosso).

            O autor menciona ainda que:

            Ao reconhecerem os direitos dos favelados de terem acesso ao solo urbano e à moradia,

bem como a obrigação do poder público de urbanizar as favelas, mesmo antes da promulgação da CF/88 as leis de Belo Horizonte e Recife constituíram um avanço significativo no reconhecimento dos direitos sociais no Brasil. Tais leis contribuíram não apenas para a caracterização dos favelados como sujeitos de direitos, mas também provocaram uma importante mudança de enfoque: enquanto cidadãos, os favelados devem ter acesso garantido a um lugar na sociedade urbana – e um espaço na cidade. (in SAULE JÚNIOR, 1999, p. 134). (grifo nosso).

            Saule Júnior (in SAULE JÙNIOR, 1999, p.74-75) entende que "a Declaração Universal dos Direitos Humanos, fonte inspiradora dos sistemas de proteção internacional dos direitos humanos, é a fonte inspiradora do direito à moradia como um direito humano, com base no artigo XXV" que assim prescreve:

            Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família, saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, o direito à segurança e em caso de desemprego, doença, invalidez, velhice, ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle. (grifo nosso).

            Saule Júnior (in SAULE JUNIOR, 1999) leciona que os problemas urbanos e o futuro das cidades foram temas da última Conferência das Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos II, realizada em Istambul, em 1996. Essa Conferência teve dois temas básicos: "Adequada Habitação para Todos" e "Assentamentos Humanos Sustentáveis em um Mundo em Urbanização". Segundo o mesmo autor o direito à moradia foi reafirmado como um direito humano, o que significa que os Estados Nacionais têm obrigações e responsabilidades para assegurar esse direito.

            Além da Conferência das Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos II, inúmeras outras declarações, convenções e tratados internacionais do final do século XX e limiar do século XXI, proclamaram o direito à moradia como um direito fundamental do ser humano a ser efetivado pelos Estados.

            Neste sentido podemos mencionar primeiramente o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que em seu artigo 11, dispõe: "Os Estados Partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa a um nível de vida adequado para si próprio e sua família, inclusive à alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim como uma melhoria contínua de suas condições de vida" (grifo nosso). O Brasil aderiu a este pacto através do Decreto 591, de 06 de julho de 1992.

            A respeito da responsabilidade quanto ao cumprimento das suas obrigações ante a assinatura dos tratados internacionais assinados pelo Brasil, Saule Júnior (in SAULE JÚNIOR, 1999, p. 77) dispõe: "Os Estados não podem se isentar das obrigações e responsabilidades decorrentes do Pacto, sob pena de descumprir e desrespeitar os compromissos que legalmente assumiu perante a comunidade internacional". E ainda: "Os Estados Partes têm a obrigação legal de instituir organismos e instrumentos para a promoção de políticas públicas de modo a tornar pleno o exercício desses direitos" (SAULE JÚNIOR, in SAULE JUNIOR, 1999, p.77-78).

            Outro documento internacional assinado pelo Brasil foi a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, que no seu artigo V, estabelece:

            De conformidade com as obrigações fundamentais enunciadas no artigo 2, os Estados Partes comprometem-se a proibir e a eliminar a discriminação racial em todas as suas formas e garantir o direito de cada um à igualdade perante à lei sem distinção de raça, cor ou de origem nacional ou étnica, principalmente no gozo dos seguintes direitos: [...]; (e) direitos econômicos, sociais e culturais, principalmente [...] (iii) direito à moradia. (SAULE JÚNIOR, IN SAULE JÚNIOR, 1999, p. 79). (grifo nosso).

            Além desses documentos a Declaração sobre Assentamentos Humanos de Vancouver (1976); Declaração sobre o Desenvolvimento (1986) e a Agenda 21 (1992) prescrevem o direito à moradia como um direito fundamental.

            Acerca da responsabilidade do Brasil ante a comunidade internacional no que tange a efetivação do direito à moradia à guisa de conclusão Saule Júnior prescreve que:

            [...] o outro aspecto da obrigação do Estado Brasileiro de promover e proteger o direito à moradia é de intervir e regulamentar as atividades do setor privado referente à política habitacional, como a regulamentação do uso e acesso a propriedade imobiliária, em especial a urbana de modo que atenda a sua função social, regulamentar o mercado de terra, dispor sobre sistemas de financiamento de habitação de interesse social, regulamentar e dispor sobre o uso do solo urbano, sobre o direito de construir, dispor sobre instrumentos tributários, dispor sobre os regimes de concessão de moradia. (in SAULE JUNIOR, 1999, p.78).

            Em decorrência das obrigações assumidas perante a comunidade internacional o Brasil inseriu no texto da Carta Magna, através da Emenda Constitucional 26/2000, o direito à moradia como um direito fundamental dos cidadãos brasileiros. O artigo 6º, da CF/88 assim prescreve: "São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição". (grifo nosso).

            O direito à moradia é um direito social e os direitos sociais são direitos fundamentais de 2ª dimensão. Importante destacar que os direitos fundamentais de primeira dimensão são os direitos civis e políticos; sendo que os de 2ª dimensão são os direitos sociais, culturais e econômicos; já os de 3ª dimensão são os inerentes a fraternidade e solidariedade, ou seja, os direitos difusos. Há quem reconheça a existência dos direitos fundamentais de 4ª e 5ª dimensão. (WOLKMER in WOLKMER e LEITE, 2003; SILVA, 2000; BONAVIDES, 2002).

            Sarlet (1998) esclarece que os direitos sociais são caracterizados por sua dimensão positiva, ou seja, devem ser efetivados, assegurados pelo Estado, ou seja, não se trata da não intervenção do Estado no agir individual, mas do agir do Estado para propiciar melhores condições de vida ao cidadão, visando a igualdade material entre todos. Neste sentido, em decorrência do status de direito social, direito fundamental de 2ª dimensão, do direito à moradia cabe ao Estado brasileiro assegurar este direito aos cidadãos destituídos de moradia ou com moradias precárias. O artigo 21, XX, da CF/88, dispõe acerca da competência da União para "instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos". (grifo nosso).

            Destarte, são indiscutíveis a necessidade e obrigatoriedade do Brasil em efetivar a moradia aos cidadãos que necessitarem, não somente em razão das obrigações assumidas com a comunidade internacional em decorrência da assinatura de convenções e tratados e da inserção deste direito na CF/88, mas principalmente, em virtude dos reflexos decorrentes da inexistência de moradia ou de uma moradia em condições inadequadas à vida do cidadão e à comunidade.

            É negado ao cidadão brasileiro sem moradia o direito a uma existência digna, assim sendo, assegurar à moradia é assegurar dignidade, cidadania, melhores condições de saúde, inserção social, trabalho, conhecimento e identidade. Neste sentido De Souza destaca:

            De fato, há que se conceber o direito à moradia como elemento principal do reconhecimento de sua dignidade enquanto pessoa, já que a questão da dignidade, não obstante tratar-se de um valor espiritual e moral, também é instituto de proteção jurídica, daí o direito à moradia estar intimamente relacionado a outros direitos, já que pelo fato de morar sob um teto, em um local determinado, tem-se também direito a outros direitos, como o direito à vida privada, à intimidade, à honra, à imagem, ao sigilo de correspondência de sua residência, ao segredo doméstico, ao sossego, à educação, à saúde, pois não há como admitir o exercício de um direito sem o outro, porquanto são tão essenciais que se unem em um só indivíduo, de forma que não se pode separa-los integralmente ou definitivamente.Não há como obter vida digna dentro de situações subumanas, como aquelas em que falta, por exemplo, saneamento básico. (2004, p.135).

            Não se pode esquecer a lição de Milton Santos que assim dispõe:

            E o direito de morar? Confundido em boa parte da literatura especializada com o direito a ser proprietário de uma casa, é objeto de um discurso ideológico cheio, às vezes, de boas intenções e mais freqüentemente destinado a confundir os espíritos, afastando cada vez para mais longe uma proposta correta que remedeie a questão. (1998, p.45).

            Cada homem vale pelo lugar onde está: o seu valor como produtor, consumidor, cidadão, depende de sua localização no território. Se o valor vai mudando, incessantemente, para melhor ou para pior, em função das diferenças de acessibilidade (tempo, freqüência, preço), independentes de sua própria condição. Pessoas, com as mesmas virtualidades, a mesma formação, até mesmo o mesmo salário têm valor diferente segundo o lugar em que vivem: as oportunidades não são as mesmas. Por isso, a possibilidade de ser mais ou menos cidadão depende, em larga proporção, do ponto do território onde se está. Enquanto um lugar vem a ser condição de sua pobreza, um outro lugar poderia, no mesmo momento histórico, facilitar o acesso àqueles bens e serviços que lhes são teoricamente devidos, mas que, de fato, lhe faltam. (1998, p.81). (grifo nosso).

            E ainda:

            Por exemplo, na esteira do que escreveu Henry Lefebvre, muito se fala em "direito à cidade". Trata-se, de fato, do inalienável direito a uma vida decente para todos, não importa o lugar em que se encontre, na cidade ou no campo. Mais do que um direito à cidade, o que está em jogo é o direito a obter da sociedade aqueles bens e serviços mínimos, sem os quais a existência não é digna. Esses bens e serviços constituem um encargo da sociedade, através das instâncias do governo, e são devidos a todos. Sem isso, não se dirá que existe o cidadão. (1998, p.129). (grifo nosso).

            Saule Júnior e Pinho ressaltam:

            A interpendência entre o direito à vida, o direito à saúde, o direito à moradia e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, significa que somente se estes direitos forem garantidos, o direito à vida estará sendo respeitado. A salvaguarda do direito à vida é de todas as pessoas humanas como das coletividades humanas. (in SAULE JÙNIOR, 1999, p.280)

            Ainda acerca da interdependência entre o direito à moradia com outros direitos fundamentais e da personalidade Schreiber conclui que:

            [...] avulta em importância a habitação, que repita-se, é requisito inerente à formação e ao desenvolvimento da personalidade humana. Não bastasse a idéia já implícita na lei fundamental, a Emenda Constitucional 26, de 14 de fevereiro de 2000, veio inserir expressamente no rol de direitos sociais (art.6º) o direito à moradia, com aplicabilidade direta e imediata. (in RAMOS, 2002, p. 84)

            A não-habitação ou habitação das ruas representa não apenas a perda da moradia, mas a perda da própria condição de pessoa. De fato, todo o indivíduo tende naturalmente a delimitar um espaço de ocupação que lhe possa servir de referência à sua própria identidade. (in RAMOS, 2002, p. 84)

            De Souza em obra dedicada ao "Direito à moradia e de habitação" ressalta outras interdependências entre estes e os direitos da personalidade, vejamos algumas:

            [...] o direito à moradia enquadra-se como fator da integridade física [...].É a hipótese em que certo indivíduo sofre com omissões do Estado para criação de albergues, ou ainda galpões, evitando o abandono em viadutos ou locais ermos, ou, ainda, quando determinado indivíduo vive em favelas sem qualquer proteção e assistência do Estado, sem higiene ou com um conforto mínimo admitido para uma qualidade de vida, se não enriquecida ou farta, mas ao menos digna, tendo as condições mais elementares que uma pessoa necessita para a sua sobrevivência, como luz, água, saneamento, construções resistentes que o protejam do tempo e das suas variações previsíveis. (2004, p.157).

            Também o direito à moradia pode ser mencionado como elemento tipificado da integridade moral do indivíduo. Isso porque não há como conceber o direito ao segredo pessoal, doméstico e profissional, direito à intimidade pessoal, familiar e social, se não for concebido, primeiramente ou paralelamente, o direito à moradia. (2004, p.157).

            A moradia constitui-se como essência do indivíduo, de modo que sem ela a existência digna de outros direitos, como o direito à vida e à própria liberdade, não é exercida satisfatória e plena. (2004, p. 159 e160).

            Não se pode esquecer que o exercício do direito à moradia efetiva na maioria das vezes o princípio da função social da propriedade, outro fator que faz com que o mesmo deva ser assegurado.

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Sobre a autora
Silviana Lúcia Henkes

advogada em Santa Catarina, especialista pela UFPEl, mestre e doutoranda pela UFSC e bolsista do CNPQ.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HENKES, Silviana Lúcia. Dos reflexos jurídicos, políticos, sociais e ambientais da constitucionalização do direito à moradia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 815, 26 set. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7327. Acesso em: 25 dez. 2024.

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