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Crime, castigo e erro judiciário

30/06/2019 às 11:00
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A todos assusta e angustia o espectro do erro, sobretudo àqueles que foram investidos da terrível quão bela função de julgar, que é atributo próprio só da Divindade.

I – Ainda que Deus tenha dado ao homem, único entre todas as criaturas, porte ereto, com preceito de contemplar os céus e fitar os olhos nas estrelas, como em elegante ritmo cantou o poeta[1], são porém mais que muitas as vezes em que, deslembrado de sua augusta predestinação, abdica da própria dignidade e, insensato, inclina-se para a terra. E, o que é mais, obrando já com soberba desconsideração das regras do convívio social, arroja-se perdidamente à carreira dos delitos.

Aí, como a organismo doente que lhe importa curar, entra o Estado a aplicar-lhe sua medicina; e o estipêndio do crime sabe-se que é, pelo comum, o castigo ou pena.

Posto se proclame, e com alguma verdade, que a história da pena é a de sua paulatina abolição, não há entretanto eliminá-la do corpo das leis repressivas, que isto implicaria retorno da civilização à barbárie[2].

Mas seu caráter não é só aflitivo, ou de retribuição pelo mal cometido; é, sobretudo, o fim da pena reeducar o delinquente pela disciplina da vontade, prática da virtude e amor do trabalho, este o principalíssimo dos fatores de promoção humana[3].


II – De ser a pena um imperativo legal não procede, contudo, deva infligir-se ordinariamente em grau extremado. Ao invés, nisto de imposição de castigo deve-se atender sempre à moderação.

As penas de duração longa padecem de inconveniente conspícuo, uma vez que, na conformidade das palavras do ilustre Juiz João Baptista Herkenhoff, “retirariam dos réus todo sentido de esperança: por mais hediondos que tenham sido os crimes praticados, esse sentimento não pode ser eliminado do homem”[4]. E não o pode porque, profundo que seja o abismo em que um dia se precipitara, ao homem nunca lhe adormece no peito o desejo ardente de retomar o curso da vida e tornar aos seus.

Por mais forte razão, ela não poderá desamparar aquele que, tendo perdido a liberdade, foi como se tudo já perdera: o encarcerado.

Em suma: a pena demasiado severa, sobre não recuperar o infrator (esforçado argumento para que se não aplique), ainda “mata a esperança, que é o último remédio que deixou a natureza a todos os males”, como pregou o sublime Vieira[5].


III – Mais que a sentença draconiana — que impõe ao réu pena que, de muito rigorosa, antes parece perpétua —, é para recear a que condena o inocente. Gênero de desgraça grande é esse, que, por evitá‑lo, o emprego de diligência, ainda em seu grau máximo, sempre se teve por muito pouco.

A condenação do inocente à pena última não raro meteu em escrúpulo até a corações empedernidos. De Nero, monstro coroado, refere com efeito Suetônio que, certo dia, em que o convidaram a assinar uma condenação capital, disse: “Tomara não soubesse escrever!”[6] Outro tanto passou com o imperial Pedro II. Constando-lhe que Mota Coqueiro, a quem se dera morte no patíbulo, fora vítima de erro judiciário, no mesmo ponto mandou quebrar a pena com que lhe negara pedido de clemência e “nunca mais quis assinar nenhuma condenação”[7].

A todos assusta e angustia o espectro do erro, no entanto, mais àqueles que foram investidos da terrível quão bela função de julgar, que é atributo próprio só da Divindade.

De feito, julgando sempre, estão os juízes, mais que ninguém, sujeitos à tirania implacável dessa contingência humana que é o erro.

Não é tudo. Ouçamos a esse varão abalizado em virtudes e letras, de quem justamente se orgulha e ufana a Magistratura brasileira, Eliézer Rosa, cujas palavras vêm aqui de molde: “Nos tribunais, o medo de errar é muito mais oprimente que num juiz de primeiro grau. Saibam todos que é esta uma imensa e dolorosa verdade. Ser relator dum feito é terrivelmente penoso, pela consciência que tem de que seu voto pode ser acompanhado e, por mais e melhor que tenha pensado em acertar, o insidioso erro pode esconder-se na pureza de seu pensamento”[8].

Este mesmo temor de errar foi, decerto, o que inspirou à sabedoria humana a regra comum de interpretação da dúvida — “In dubio pro reo” —, porque “a condenação do inocente constitui maior desgraça para a sociedade do que para o condenado, sendo preferível, segundo a velha sentença de Berryer, ficarem impunes muitos culpados, do que punido quem devera ser absolvido”[9].


Notas

[1] Ovídio, Metamorfoses, I, 85.

[2] “Suprima-se a pena (quod Deus avertat) e o crime seria, talvez, a lei da maioria. É indubitável a eficácia inibidora do castigo” (Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, 1978, vol. I, t. II, p. 196).

[3] Doutrina é esta que geralmente professam aqueles a quem tocou a meritória tarefa de recuperar os desajustados sociais, como se tira do dístico expressivo gravado no frontão da antiga Penitenciária de São Paulo: “Aqui, o trabalho, a disciplina e a bondade resgatam a falta cometida e reconduzem o homem à comunhão social”.

[4] Uma Porta para o Homem no Direito Criminal, 2a. ed., p. 163.

[5] Sermões, 1959, t. III, p. 278.

[6] Cf. As Vidas dos Doze Césares, 1955, p. 269; trad. Sady Garibaldi.

[7] Raimundo de Menezes, Crimes e Criminosos Célebres, 2a. ed., p. 123.

[8] A Voz da Toga, 2a. ed., p. 50.

[9] Firmino Whitaker, Júri, 6a. ed., p. 89.

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Sobre o autor
Carlos Biasotti

Desembargador aposentado do TJSP e ex-presidente da Acrimesp

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BIASOTTI, Carlos. Crime, castigo e erro judiciário. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5842, 30 jun. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/73335. Acesso em: 5 nov. 2024.

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