MONOPÓLIO DE LOTERIAS NO BRASIL
Rogério Tadeu Romano
Como acentuou editorial do Jornal do Brasil, em 16 de junho de 2018: “Abre-se excelente oportunidade para se dar a conhecer um setor que diariamente opera milhões e milhões de reais da população, sem que preste suficientes contas de seu trabalho. Afinal, trata-se de uma atividade que atrai e domina um povo campeão em alternar esperanças em meio às suas desesperanças.”
As loterias estão sob a gestão da Caixa Econômica, o suficiente para que a sociedade tenha acesso mais amplo aos relatórios e ao processamento dos sorteios. Longe de ser uma atividade privada, não seria cobrar muito. Na verdade, o que se deseja, nada mais, é ver coincidindo o dever de quem presta serviço público com o direito dos cidadãos. Nada mais que isso.
A Caixa é, nesse particular, grande cassino, explorando uma atividade proibida em todo o território nacional. Explora um mercado que nega acesso à iniciativa privada, desde o governo Dutra, que não demorou em proibir os cassinos e os jogos de azar.
Disse o Ministro Oswaldo Trigueiro, em parecer: “O Brasil sempre reconheceu a competência dos Estados no concernente às loterias, tanto que elas, até 1967, funcionavam regularmente. Não havia qualquer restrição a respeito”.
Nesse sentido era a opinião de Themistocles Brandão Cavalcanti, em A Constituição Federal Comentada(ed. 1951, volume I, pág. 227) quando dizia que: “Aos Estados são permitidos todos os poderes que não estejam vedados implícita ou explicitamente, isto é, aqueles que não estejam atribuídos expressamente à União, ou que não decorram do próprio sistema do governo e que, por isso mesmo, sejam deferidos à União”.
Concluiu o Ministro Oswaldo Trigueiro(Loteria Estadual, in Revista de Direito Público, 76, 1985, pág. 38) que: “Desta forma, em nosso Direito – como em toda a doutrina do federalismo, com a exceção assinalada – o poder constituinte criou a União e lhe atribuiu apenas determinados poderes, reservando aos Estados tudo quanto não constar, expressa ou implicitamente, desta outorga de competência. Os poderes da União são apenas os que lhe são delegados pela lei federal. Já os dos Estados abrangem todos os resíduos, isto é, todos os que não foram delegados, ou proibidos, pelo texto constitucional. Consequentemente, os poderes da União definem-se por enumeração; os dos Estados, por exclusão. Como é intuitivo, essa regra definem-se por enumeração; os dos Estados por exclusão. Como é intuitivo, essa regra não se infirma pela circunstância de que os poderes da União sejam os mais importantes, enquanto os dos Estados sejam os menores, porém os mais numerosos.
Era essa a posição sob o império da Constituição de 1967, Emenda Constitucional n. 1/69.
Haveria contravenção no exercício dessas loterias pelo Estado?
A Caixa Econômica Federal tem o monopólio das loterias desde 1961.
A regulação do segmento de loterias, vigente no Brasil, é a realizada pelo Decreto-Lei nº 204, de 27 de fevereiro de 1967 , que estabeleceu, entre outras disposições, que: Art. 1º A exploração de loteria, como derrogação excepcional das normas do Direito Penal, constitui serviço público exclusivo da União não suscetível de concessão e só será permitida nos termos do presente Decreto-lei. Os concursos de prognósticos foram acrescentados, como modalidade da Loteria Federal, pela Lei nº 6.717, de 12 de novembro de 1979: Art. 1º A Caixa Econômica Federal fica autorizada a realizar, como modalidade da Loteria Federal regida pelo Decreto-lei nº 204, de 27 de fevereiro de 1967, concurso de prognósticos sobre o resultado de sorteios de números, promovido em datas prefixadas, com distribuição de prêmios mediante rateio. (...) Art. 3º O concurso de prognósticos de que trata esta Lei será regulado em ato do Ministro de Estado da Fazenda, que disporá obrigatoriamente sobre a realização do concurso, a fixação dos prêmios, o valor unitário das apostas, bem como sobre o limite das despesas com o custeio e a manutenção do serviço. (grifos nossos).
Ainda sob o regime da Constituição de 1967, foi editado o Decreto-lei nº 759, de 12 de agosto de 1969, que “Autoriza o Poder Executivo a constituir a emprêsa pública Caixa Econômica Federal e dá outras providências” 5 : Art. 1º Fica o Poder Executivo autorizado a constituir a Caixa Econômica Federal - CEF, instituição financeira sob a forma de emprêsa pública, dotada de personalidade jurídica de direito privado, com patrimônio próprio e autonomia administrativa, vinculada ao Ministério da Fazenda. (...) Art. 2º A CEF terá por finalidade: a) explorar, com exclusividade, os serviços da Loteria Federal do Brasil e da Loteria Esportiva Federal nos têrmos da legislação pertinente.”
A competência para legislar sobre loterias e sorteios, no Brasil, é reservada à União, por expressa disposição do inciso XX do art. 22 da Constituição Federal de 1988 (in litteris, “sistemas de consórcios e sorteios”). A regulação da modalidade por outro ente da federação foi rechaçada pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 2847-21 e 2948-72
Assim foi dito pelo Relator Ministro Ayres Britto:.
“(...) Ora, como na Constituição brasileira não há: 1º) norma que tenha por conteúdo a instituição em si de atividade lotérica ou sorteio; 2º) norma caracterizadora da exploração de sorteio enquanto espécie de serviço público; 3º) norma excludente dos sorteios como atividade passível de protagonização econômica privada —— como não existe nada disso, repito, a conclusão a que chego é mesmo esta: impossível a configuração de antinomia frontal entre as duas tipologias de comando: a infraconstitucional e a constitucional. É como falar: se alguma ofensa ao inciso I do art. 22 da Lei Maior do País é de se detectar na materialidade das leis distritais que se fizeram alvo da ADI sub judice, isto somente poderá ocorrer por comparação entre essas leis e a legislação federal que faz da prática de jogos de azar uma contravenção. Que já é uma forma indireta ou reflexa de agressão ao Texto Magno. Equivale a dizer: o desrespeito à Constituição dar-se-á por negação de vigência a diploma federal, é certo, mas diploma de índole simplesmente infraconstitucional. 8. Convém insistir nesta minha mais que tudo respeitosa divergência ao primeiro calço jurídico de que se valeu o insigne relator do feito para emitir o seu respeitável decisum, pois é fato que ele próprio, relator, funda o seu juízo de inconstitucionalidade no raciocínio de que instituir loteria é forma excepcional de derrogação de normas de Direito Penal (...). Mas de que normas de cunho penal? Seguramente as veiculadas pelo Decreto-Lei federal nº 204, de 27 de fevereiro de 1967, cujos arts. 50 e 513 fazem da prática de “jogos de azar” uma contravenção.
Daí a conclusão ora contrabatida: o Distrito Federal excepcionou regra tipificadora de conduta contravencional, cujo caráter penal somente comporta legiferação de matriz subjetiva congressual. Jamais distrital, sob pena de inconstitucionalidade por usurpação competencial da União. Que é vício formal insanável.. Suponho que tudo fica mais fácil de entendimento se o raciocínio partir da consideração de que, fora das hipóteses em que a própria Constituição criminaliza um dado comportamento, a simples outorga de competência à União para legislar sobre Direito penal opera como induvidosa cláusula aberta. Isto no sentido de que somente depois que a União faz o efetivo uso dessa aptidão normante é que se tem uma específica regra de Direito Penal. E enquanto essa regra não se positiva, a conduta humana resta amparada pela fórmula altissonante de que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (inciso II do art. 5º do Código Supremo). (...) . Nesse tipo de conjectura, o abalroamento da Constituição por uma lei simplesmente infraconstitucional se configuraria por dispensa de qualquer mediação normativa. Ocorreria por forma direta, e a Magna Carta do País, somente ela, é que permaneceria como parâmetro do controle de constitucionalidade do diploma jurídico de menor hierarquia. Sem que o vôo do raciocínio hermenêutico tivesse que fazer escala em outro campo de pouso que não fosse a Constituição Nacional. E sem que a própria Ordem Jurídica experimentasse o estonteante vaivém que resultaria, ainda por hipótese, de uma revogação pura e simples da legislação federal que faz da prática dos jogos de azar uma contravenção. Pois a consequência de tal ab-rogação não seria outra senão a instantânea revalidação, a automática repristinação de todas as questionadas leis do Distrito Federal (com o quê todos os processos de controle de constitucionalidade que se sucedessem no tempo operariam do lado de dentro de leis da União, mas sempre do lado de fora da Constituição). (...). Encerro esta primeira parte do meu voto, portanto, no claro sentido de proclamar um óbice formal instransponível e que me força a não conhecer, no ponto, da ação direta sub judice. Passo, agora, a examinar a segunda causa de decidir, já verbalizada no retrospecto do feito. E já antecipo que ela me convence. Convence-me, sim, esta segunda base jurídica do voto que traz a luminosa assinatura do eminente relator Carlos Mário Velloso, recebendo e em seguida julgando procedente a presente Ação Direta de Inconstitucionalidade. Mas recebendo e julgando procedente a Ação Direta para declarar a invalidade de todas as leis distritais impugnadas em face da Constituição Federal de 1988, indistintamente, pela consideração de tratar-se de leis de conteúdo pro-indiviso; quer dizer, diplomas legais que se desdobram em dispositivos materialmente imbricados, de modo que a derrocada do primeiro deles acarreta a necessária queda dos demais, em processo de mortal efeito dominó (o que de pronto afasta a preliminar de inépcia da inicial, esgrimida nas informações que prestou o Poder Executivo Distrital). E esses diplomas distritais são, confirmativamente, os seguintes: Lei nº 232, de 14.01.92; Lei nº 1.176, de 29.07.96; Lei nº 2.793, de 16.10.2001; e Lei nº 3.130, de 16.01.2003, todas elas tidas como expressão de uso transbordante da capacidade legislativa do Distrito Federal, porquanto veiculadoras de regramento que só à União foi outorgado: legislar sobre sorteios.. Com efeito, os dispositivos das quatro leis objeto da presente argüição de inconstitucionalidade ornam-se de compleição normativa quanto à matéria central e aos temas laterais que lhes animam os imbricados relatos. Mais que autorizar a instituição de várias modalidades de jogo de resultado aleatório (seis, ao todo), mediante paga por parte dos eventuais apostadores, elas normatizam os assuntos que lhes servem de substrato.”
A conclusão nos traz Milso Veloso de Andrade(Exploração de Loterias e Autorização de sorteios pela Caixa Econômica Federal):
A norma concedeu à CEF, diretamente, a exclusividade para exploração das loterias federais, em todo o território nacional, entre outros serviços, como monopólio de penhores civis e também aqueles que “se adaptem a sua estrutura de natureza financeira, delegados pelo Governo Federal ou por convênio (...)”. A legislação que disciplina as loterias define - a nosso ver, paradoxalmente - a exploração de loterias como “serviço público” e, simultaneamente, como “derrogação excepcional de normas de direito penal”. No exercício de sua competência legal, a CEF pode delegar a comercialização, por terceiros, de bilhetes lotéricos e formas assemelhadas, que permitam a participação nos concursos que promove, e a contratação de serviços ou aquisição de bens destinados à instrumentalização e operação da atividade principal. O credenciamento de revendedores (art. 21 do Decreto-Lei nº 204, de 1967) deve obedecer ao disposto no art. 175, caput 20, da Constituição Federal, mas a realização dos sorteios deve ser feita diretamente pela CEF, não podendo ser delegada, consoante o disposto no art. 13 do decreto-lei acima referido. O regime de permissão aplicável obedece ao disposto na Lei nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, com especial atenção para o disposto nos arts. 1º e 14, que exigem a aplicação da legislação própria de licitação e contratos da administração pública. A CEF está obrigada, assim, à observância da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, por força do disposto em seus arts. 1º, parágrafo único, e 6º, XI, por ser empresa pública e integrante da administração indireta da União. O art. 119 do estatuto das licitações atribui competência às empresas estatais para editar regulamento próprio, desde que devidamente aprovado pela autoridade superior a que se vincula (Ministro de Estado da Fazenda) e publicado na imprensa oficial (sujeito, porém, o texto, às disposições da referida lei).
Quanto a competência para organização de sorteios, com fundamento na Medida Provisória nº 2.216-37, de 31 de agosto de 2001, as competências encontram-se hoje transferidas para a Caixa Econômica Federal, exceto nos casos em que seja ela a interessada ou outra instituição financeira, casos em que as competências serão exercidas pela Secretaria de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda.