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Dever de urbanidade do advogado

28/09/2005 às 00:00
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Sumário:Índice, Apresentação , Capítulo I – O termo dever, Capítulo II – O termo urbanidade, Capítulo III – O respeito e a tolerância, Capítulo IV – A linguagem polida, Capítulo V – O dever de zelo na condução da causa, Capítulo VI – Conclusão, Bibliografia


Apresentação

            O Capítulo VI do Título I do Código de Ética e Disciplina trata do dever de urbanidade na advocacia. Em síntese, os artigos 44, 45 e 46 disciplinam o dever de respeito no trato com as pessoas, o emprego de linguagem correta e cortês na execução dos serviços e o comportamento diligente na relação de patrocínio.

            Iniciamos o nosso trabalho analisando o termo dever numa perspectiva kantiana. Ainda numa abordagem filosófica, consideramos urbanidade enquanto civilidade, polidez. Depois, discorremos sobre o respeito e a tolerância. Mudando de enfoque, comentamos alguns julgados disciplinares acerca da contundência da linguagem e da omissão do dever de zelo durante a relação de patrocínio.

            Não pretendemos esgotar o tema, tampouco realizamos densas pesquisas ou alçamos inovações; há mais doutos para isto. Sem falsa modéstia, buscamos, de forma didática, explanar aspectos os quais a precária formação profissional decorrente do banalizado ensino jurídico, relegam senão ao esquecimento, ao desdém face a ousada inversão de valores.

            Nestes instantes em que escritórios de advocacia são violados ao arrepio de nosso Estatuto, possam estas repetidas idéias de noção de dever, lhaneza, empenho não permitir o esmorecimento da moral censora da categoria, indispensável à administração da justiça, guardiã da dignidade da pessoa humana entre outras tantas lutas porquanto, uma geração futura é o exemplo daquilo que a anterior lhe relegou.


Capítulo I

O termo dever

            O termo dever implica a presença de duas forças contrárias. De um lado temos nossos desejos, sentimentos e interesses espontâneos __incluindo nossos medos e ódios, nossos ciúmes e inseguranças. Do outro lado, há o que alguém acredita que deve fazer e o tipo de pessoa que deve ser. O termo dever sugere que essas duas forças vivem em constante conflito; e, conseqüentemente, fazer o que se deve fazer e tentar ser o que se deve ser pode ser difícil ou doloroso, envolvendo sacrifícios de vários tipos. O indivíduo que se compromete a manter um ponto de vista moral é aquele que resolve subordinar e sacrificar, se necessário, os desejos, sentimentos e interesses pessoais em nome do dever __para fazer a coisa certa ou se tornar o tipo certo de pessoa.

            O comportamento deontológico é um comportamento obrigatório e devido; isto é, o agente é obrigado a comportar-se de acordo com uma regra ou norma de ação e a excluir ou evitar os atos proibidos por ela. Por conseguinte, a obrigatoriedade moral impõe deveres ao sujeito. Toda norma funda um dever.

            As teorias deontológicas da norma sustentam que o dever em cada caso particular deve ser determinado por normas que são válidas independentemente das conseqüências de sua aplicação. Em outras palavras: quando é possível dizer que atuamos realmente por dever e não obedecendo a uma inclinação ou a um interesse, por temor do castigo ou calculando as conseqüências vantajosas ou prejudiciais de nossos atos? Quando agimos como seres racionais.

            Como a razão é a faculdade do universal, dizer que a boa vontade age por dever significa que age apenas de um modo universal, ou seja, de acordo com a máxima universalizável (válida não só para mim, mas para aos demais; não admite exceções). A exigência da razão é uma exigência da universalidade, e esta exigência com a qual apresenta a sua lei __lei moral "a priori", válida para todos os seres racionais __ à vontade do homem, que é, ao mesmo tempo, racional e sensível, assume a forma de um mandamento ou imperativo. Todos os imperativos expressam o que deve fazer uma vontade subjetiva imperfeita que, pertencendo a um ser ao mesmo tempo racional e sensível, não está infalivelmente determinada por uma lei racional objetiva. Os imperativos indicam portanto um dever à vontade imperfeita (humana, neste caso).

            A fórmula suprema do mandamento da razão é aquela na qual a universalidade é absoluta; ela prescreve o seguinte: "Age de maneira que possas querer que o motivo que te levou a agir seja uma lei universal". Esta formula kantiana permite deduzir todas as máximas de onde provêm nossas ações morais; mas não o seu conteúdo, e sim a sua forma universal. Por isto, é o princípio formal de todos os deveres, ou a expressão da própria lei moral.

            Agir por dever é operar puramente conforme a lei moral que se expressa nos imperativos universalizáveis, e a vontade que age desta maneira, movida pelo sentimento do dever, independentemente de condições e circunstâncias, interesses ou inclinações, é uma vontade "boa". O dever não é outra coisa senão a exigência de cumprimento da lei moral, em face da qual as paixões, os apetites e inclinações silenciam. O dever se cumpre pelo próprio dever, pelo sentimento do dever de obedecer aos imperativos universalizáveis.


Capítulo II

O termo urbanidade – À guisa de virtude

            As virtudes são independentes do uso que delas se faz, como do fim a que visam ou servem. A faca não tem menos virtude na mão do assassino do que na do cozinheiro, nem a planta que salva mais virtude do que a que envenena. Uma faca excelente na mão de um homem mau não é menos excelente por isso. Virtude é poder, e o poder basta à virtude.

            A virtude de um homem é o que o faz humano, ou antes, é o poder específico que tem o homem de afirmar sua excelência própria, sua humanidade. A virtude é uma maneira de ser, explicava Aristóteles, mas adquirida e duradoura, é o que somos (logo o que podemos fazer), porque assim nos tornamos. É nossa maneira de ser e de agir humanamente. "Não há nada mais belo e mais legítimo do que o homem agir bem e devidamente", dizia Montaigne.

            A virtude é uma disposição adquirida de fazer o bem. O bem não é para se contemplar, é para se fazer. Assim é a virtude: é o esforço para se portar bem, que define o bem nesse próprio esforço.

            A polidez é a primeira virtude e, quem sabe, a origem de todas. É também a mais pobre, a mais superficial, a mais discutível. A polidez faz pouco caso da moral, e a moral da polidez. É uma virtude puramente formal. A aparência, pois, de uma virtude, e somente a aparência.

            A palavra polidez aqui é tomada como sinônima de urbanidade. Com efeito, urbanidade, substantivo feminino, é a qualidade ou condição de ser urbano. Tem por derivação o sentido figurado de revelar o conjunto de formalidades e procedimentos que demonstram boas maneiras e respeito entre os cidadãos, afabilidade, civilidade, cortesia. Etimologicamente vem do latim urbanìtas,átis que significava morar em Roma. Figurativamente denota polidez, maneiras delicadas.

            Se a polidez é um valor, o que não se pode negar, é um valor ambíguo, em si insuficiente __pode encobrir tanto o melhor, como o pior__ e, como tal, quase suspeito. Como o sangue se vê melhor nas luvas brancas, o horror se mostra melhor quando é cortês. Um ser grosseiro, podemos acusar o seu lado animal, a ignorância, a incultura, pôr a culpa numa infância devastada ou no fracasso de uma sociedade. Um ser polido, não. A polidez é, nesse sentido, como que um circunstância agravante, que acusa diretamente o homem, o povo ou o indivíduo, e a sociedade, não em seus fracassos, que poderiam servir de desculpa, mas em seus sucessos.

            "O homem só pode tornar-se homem pela educação", reconhece por sinal Kant, "ele é apenas o que a educação faz dele", e é a disciplina que primeiro "transforma a animalidade em humanidade". Em outras palavras, o uso é anterior ao valor, a obediência ao respeito, e a imitação ao dever. A polidez, por conseguinte ("isso não se faz") é anterior à moral ("isso não se deve fazer"). As boas maneiras precedem as boas ações e levam a estas. A moral é como uma polidez da alma, um saber viver de si para consigo. Inversamente, a polidez é como uma moral do corpo, uma ética do comportamento, um código de vida social, um cerimonial do essencial.

            A moral começa, pois, no ponto mais baixo __pela polidez__ e de algum modo tem de começar. Nenhuma virtude é natural; logo é preciso tornar-se virtuoso. Mas como, se já não somos? Explicava Aristóteles que "é fazendo que aprendemos". Como fazê-las, porém, sem as ter aprendido? Há um círculo vicioso aqui, do qual só podemos sair pelo a priori ou pela polidez. Mas o a priori não está a nosso alcance, a polidez sim. Continuava Aristóteles que "é praticando as ações justas que nos tornamos justos, praticando as ações moderadas que nos tornamos moderados e praticando as ações corajosas que nos tornamos corajosos". Mas como agir justamente sem ser justo? Pelo hábito, parece responder Aristóteles: o hábito supõe a existência antecedente daquilo a que nos habituamos.

            Kant nos esclarece melhor, ao explicar esses primeiros simulacros da virtude pela disciplina, isto é, por uma coerção externa: o que a criança, por falta de instinto, não pode fazer por si mesma, "é preciso que outros façam por ela", e é assim que "uma geração educa outra". Ora, o que é essa disciplina na família, senão, antes de tudo, o respeito dos usos e das boas maneiras? Disciplina normativa mais do que coerciva, que visa menos à ordem do que a certa sociabilidade amável __disciplina não de polícia, mas de polidez.

            É inútil falar de dever com as crianças. Mas quem renunciaria, por isso, a lhes ensinar a polidez? E que teríamos aprendido, sem ela, sobre nossos deveres? Se podemos nos tornar morais __e temos de nos tornar, para que a moral, e mesmo a imoralidade, sejam simplesmente possíveis __, não é por virtude mas por educação, não pelo bem mas pela forma, não por moral mas por polidez __ por respeito, não de valores, mas dos usos. É imitando a virtude que nos tornamos virtuosos.

            A polidez nem sempre inspira a bondade, a eqüidade, a complacência, a gratidão; pelo menos dá uma aparência disso e faz o homem parecer por fora como deveria ser por dentro. Por isso ela é insuficiente no adulto e necessária na criança. É apenas um começo, mas o é. Dizer "por favor" ou "desculpe" é simular respeito, dizer "obrigado" é simular reconhecimento. É aí que começam o respeito e o reconhecimento.

            A polidez é anterior à moral e a permite. Trata-se, primeiro, de assumir os modos do bem, não, claro, para contentar-se com eles, mas para alcançar, por meio deles, o que eles imitam __ a virtude __ e que só advém imitando-os. "A aparência de do bem nos outros", escreve ainda Kant, "não é desprovida de valor para nós: desse jogo de dissimulações, que suscita o respeito sem talvez merecê-lo, pode nascer a seriedade", sem a qual a moral não poderia se transmitir nem se constituir em cada um. A polidez é essa aparência de virtude, de que as virtudes provêm.

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            O fato é que ser bem-educado é antes de tudo ser polido. O saber-viver não é a vida; a polidez não é a moral. Mas não quer dizer que não seja nada. A polidez é uma pequena coisa, que prepara as grandes coisas.


Capítulo III

O respeito e a tolerância – Ainda à guisa de virtude

            Os conceitos de tolerância e de respeito necessitam de uma definição prévia para evitarmos cair num dos maiores males da vida intelectual contemporânea: o mau uso e o abuso dos conceitos.

            Ser tolerante implica que se aceite que os outros pensem de maneira diferente de nós, sem por isso os odiarmos. Podemos ser tolerantes dentro do mesmo grupo, por exemplo, face aos pequenos defeitos e diferenças de caráter; ser tolerantes face aos que não pertencem ao nosso grupo; e tolerar as convicções e crenças dos outros que sejam diferentes das nossas.

            Por sua vez, respeito tem a seguinte definição: tomar em consideração e preocupar-se com. É uma atitude que consiste em não prejudicar alguém ou uma coisa.

            Tolera-se aquilo de que não se gosta, mas que se é obrigado a aceitar e, na melhor das hipóteses, a compreender, para evitar o conflito e a violência. Comparada com o respeito, a tolerância não passa de um valor de resistência, o qual não pode deixar de ocupar uma posição subordinada ao respeito. Ou seja, embora o respeito implique um uso equilibrado, isto é, sem excesso e sem defeito, da tolerância, com o respeito estamos perante um valor ativo, profundamente abrangente, estruturante tanto do campo pessoal como do campo social da ética e mobilizador de uma ética máxima norteada pela finalidade culminante do amor.

            A tolerância obriga a respeitar a regra de ouro: "não faças aos outros o que não queres que te façam a ti". Neste sentido, estamos perante uma ética do dever, deontológica portanto, que se limita a evitar fazer o mal aos outros. Trata-se de uma polaridade meramente passiva.

            O respeito, ao invés da tolerância, carrega uma polaridade ativa, marcada pela preocupação com os outros e na qual vem impressa a indelével marca do amor. O respeito é governado pela atividade, e é por isso que a máxima que melhor se lhe aplica é "ama ao próximo como a ti mesmo". É por isso que o respeito constitui uma virtude estruturante de uma ética do amor e da benevolência.

            Enquanto o respeito constitui uma virtude que nunca pode pecar por excesso, porque quanto mais respeito se tem mais se ama, a tolerância é o exemplo de uma virtude que se obriga ao meio termo porque, em excesso, resulta em indiferença, e, em falta, traz o sabor da intolerância.

            A atual vaga de indiferença, isto é, de tolerância em excesso, é preocupante por duas razões: 1ª) conduz à aceitação e proliferação do que é intrinsecamente mau, ou seja, violador da dignidade da pessoa, e a banalização dos valores inferiores, os quais por terem mais força, são mais facilmente captados e preferidos pelas pessoas; 2ª) revela uma certa incapacidade de amar as pessoas e as coisas verdadeiramente boas.

            A gravidade da generalização da indiferença resulta do fato de que à medida que vamos sendo cada vez mais indiferentes, sobre cada vez mais coisas, aumenta a nossa insensibilidade ao amor e àquilo que vale a pena.

            Tolerar é bom, mas respeitar é melhor. Respeitar é bom, mas amar é sublime.


Capítulo IV

A linguagem polida

            A dignidade da pessoa humana é princípio fundamental do Estado Democrático de Direito (art. 1º, III, CF). O advogado é indispensável à administração da justiça (art. 133, CF). No seu ministério privado, ele presta serviço público e exerce função social (art. 2º, § 1º, EAOAB). Deve, portanto, ter consciência de que o Direito é um meio de mitigar as desigualdades para o encontro de soluções justas e que a lei é um instrumento para garantir a igualdade de todos (art. 3º, CED). A arte e ofício da advocacia implicam embate constante de paixões, contudo, é de rigor o comedimento das atitudes.

            Em "O nome da rosa", Umberto Eco nos conta que os monges minoritas e dominicanos passaram a noite discutindo sobre a pobreza de Jesus. Eram tempos difíceis aqueles... por fim chegaram às vias de fato!

            Nos dias de hoje, entre nós, lamentavelmente, outros não são os indesejáveis exemplos:

            "PATROCÍNIO - URBANIDADE NO EXERCÍCIO PROFISSIONAL. Dever de urbanidade, lhaneza, respeito ao trabalho do ex-adverso são postulados guindados como valores a serem observados pelos advogados. A confiança, a lealdade, a benevolência, devem constituir a disposição habitual para com o colega. Deve o advogado tratar os colegas com respeito e discrição empregando o uso de linguagem escorreita e polida na execução dos serviços (arts. 44 e 45 do CED). A interposição de recurso sobre a fixação sucumbencial do valor da verba honorária não constitui infração ética, desde que respeitados os valores éticos contidos nos artigos apontados". Proc. E-2.140/00 - v.u. em 15/06/00 do parecer e ementa do Rel. Dr. LUIZ ANTÔNIO GAMBELLI - Rev.ª Dr.ª MARIA CRISTINA ZUCCHI - Presidente Dr. ROBISON BARONI.

            "CONSULTA INEPTA – NÃO CONHECIMENTO – INEXISTÊNCIA DE DÚVIDA DEONTOLÓGICA - NECESSIDADE DE LINGUAGEM ESCORREITA – DEVER DE URBANIDADE. Inconveniência ética na inserção, com destaque, do nome da advogada em papel timbrado oficial de associação de inativos e pensionistas de uma categoria de servidores públicos. Propósito velado e vedado de promoção profissional. Faculdade assegurada apenas a advogados integrantes de sociedades de advogados, legalmente constituídas. Consulta formulada com erros idiomáticos grosseiros, no fundo e na forma. Deslizes vernaculares primários e numerosos, em nível incompatível com condições mínimas de habilitação do exercício advocatício. Procedimento ética e tecnicamente repreensível, atentatório ao prestígio e dignidade da classe dos advogados. O uso de forma escorreita do idioma se inclui entre os deveres cívico-profissionais. Remessa de traslado do processo para a seção disciplinar competente do Tribunal de Ética e Disciplina para avaliação e deliberação". Proc. E - 1.536 – v.m. em 22/05/97 – Rel. Dr. ELIAS FARAH – Rev. Dr. GERALDO JOSÉ GUIMARÃES DA SILVA – Presidente Dr. ROBISON BARONI.

            "DEVER DE URBANIDADE – ‘ADVOGADINHO DE PORTA DE CADEIA’ - CARÁTER OFENSIVO E PRECONCEITUOSO DA EXPRESSÃO. O advogado é servidor da lei e exerce função essencial à administração da Justiça (CF, art. 133). No seu ministério privado, presta serviço público e exerce função social (EAOAB, art. 2º, §1º). Na fase do inquérito policial, a presença e acompanhamento do advogado revelam-se tão imprescindíveis para a tutela das liberdades públicas do acusado quanto no curso da defesa criminal, porquanto constitui garantia de natureza indisponível. Deve o advogado atuar com nobreza e destemor, sob o manto da inviolabilidade profissional e demais prerrogativas inscritas no art. 7º do EAOAB. O advogado criminal enfrenta mais intensamente o preconceito que, revestido de chavões e epítetos, não se coaduna com a relevância de sua função no Estado de Direito. A utilização da expressão ‘porta de cadeia’ ou equivalente constitui odiosa discriminação e ofensa contra a honra e esfera moral do profissional, além de macular a dignidade da advocacia e das demais carreiras jurídicas que atuam conjuntamente em prol da realização dos ideais da Justiça". Proc. E-2.826/03 - v.u. em 18/09/03 do parecer e ementa do Rel. Dr. LUIZ FRANCISCO TORQUATO AVÓLIO – Rev. Dr. JOÃO TEIXEIRA GRANDE – Presidente Dr. ROBISON BARONI.

            Erros gramaticais e palavras insensatas em nada preservam a honra, a nobreza e a dignidade da profissão; ao revés, aviltam o caráter de essencialidade e indispensabilidade pelos quais deve o advogado zelar. Outrossim, o desvelo vernacular é próprio da reputação do causídico, o qual também deve empenhar-se permanentemente em seu aperfeiçoamento.

            Conta-se que Esopo era um escravo de rara inteligência que servia à casa de um conhecido chefe militar da antiga Grécia. Certo dia em que o patrão conversava com outro companheiro, discorrendo sobre os males e virtudes do mundo, Esopo foi chamado a dar sua opinião, ao que respondeu:

            - Tenho a mais absoluta certeza de que a maior virtude da Terra está à venda no mercado.

            - Como pode podes afirmar tal coisa? Interrogou o amo.

            - Não só afirmo, como se meu amo me conceder a autorização, irei até lá e trarei, à vossa presença a maior virtude da Terra.

            - Estás autorizado. Mas, caso for brincadeira, punir-te-ei com castigos.

            Saiu Esopo e, dali a minutos, voltava carregando um pequeno embrulho nas mãos. Ao abrir o pacote, o velho chefe encontrou vários pedaços de língua, e, enfurecido, pediu explicações ao escravo.

            - Meu amo, não vos enganei. A língua é, realmente, a maior das virtudes. Com ela, podemos consolar, ensinar, esclarecer, aliviar e conduzir. Pela língua, os ensinos dos filósofos são divulgados, os conceitos religiosos são espalhados, as obras dos poetas se tornam conhecidas de todos. Acaso podeis renegar essas verdades?

            - Boa, meu caro, retrucou o amigo do amo. Já que és tão desembaraçado, que tal trazer-me agora o pior vício do mundo, ou achas que o nosso mercado não o tem em estoque?

            - É-me perfeitamente possível, Senhor, e, com nova autorização de meu amo, irei novamente ao mercado e de lá trarei o pior vício de toda a Terra.

            Concedida a permissão, saiu novamente Esopo, e, dali a minutos, voltava com outro pacote muito semelhante ao primeiro. Ao abri-lo, os dois amigos encontraram novamente pedaços de língua. Desapontados, interrogaram o escravo e obtiveram dele surpreendente resposta:

            - Por que vos admirais de minha escolha? Do mesmo modo que a língua, bem utilizada, se converte numa sublime virtude, quando relegada a planos inferiores se transforma no pior dos vícios. Através dela, tecem-se as intrigas e as calúnias, as mentiras cruéis, as injúrias e as violências verbais. Através dela, as verdades mais santas podem ser corrompidas. Através dela, estabelecem-se as discussões infrutíferas, os desentendimentos prolongados e as confusões populares que levam ao desequilíbrio social. Acaso podeis refutar o que digo?

            Impressionado com a inteligência invulgar do serviçal, o velho senhor reconheceu a contradição que era ter um homem tão sábio como escravo e deu-lhe a liberdade. Esopo com o tempo tornou-se o mais conhecido fabulista da antigüidade.

            Essa pequena história encerra um valioso ensinamento moral. A palavra, enquanto instrumento de comunicação é, em si mesma, neutra. O uso que fazemos dela, tonificada pela ação dos nossos sentimentos, torna-la-á construtiva ou depreciativa, esperançosa ou pessimista, sábia ou destruidora....


Capítulo V

O dever de zelo na condução da causa

            Encerra o capítulo do dever de urbanidade a disposição referente ao zelo, no qual deve o advogado empenhar-se na relação de patrocínio, a fim de transmitir segurança técnica ao seu constituinte.

            Hoje, não se exige que o advogado jure que a causa é boa. Aconselha-se a que alerte o cliente quanto a eventuais riscos da sua pretensão, e das conseqüências que poderão advir da demanda (art. 8º, CED). Zelará o advogado pela sua competência exclusiva na orientação da causa, reservando ao cliente a decisão do que lhe interessar pessoalmente.

            Os deveres do advogado para com o cliente, antes e mesmo durante a aceitação da causa, se baseiam em dois grandes princípios, que regulam e informam toda a vida profissional da advocacia: confiança e independência. Confiança do cliente no advogado, e independência deste para com aquele.

            Para as primeiras relações com o cliente, o mais importante, o fundamental para o advogado é a acuidade, a perspicácia e mesmo a paciência em destrinchar a questão de fato e de direito que se apresenta.

            Ouvir o cliente, com paciência. Primeiro porque só o pleno conhecimento de todos os detalhes dá ao advogado a visão de conjunto. Segundo porque o cliente precisa desabafar.

            O advogado depende, em sua vida profissional, do cliente. Este é que lhe confia a defesa de seus direitos. Logo, precisa ele saber receber o cliente, em seu escritório, com ele dialogando, infundindo-lhe por fim, a confiança, sem a qual difícil ou quase impossível será o seu êxito. Uma atitude fria, dura, distante, nunca o identificará com o cliente.

            Não se ausentar injustificadamente e tampouco perder prazos processuais; atuar com destemor e veracidade; estimular a conciliação entre os litigantes, prevenindo, sempre que possível, a instauração de litígios, aconselhar o cliente a não ingressar em lide temerária; abster-se de vincular o seu nome a empreendimentos de cunho manifestamente duvidoso são, entre outras posturas preconizadas enquanto fundamentais ao exercício da advocacia, o sinônimo mínimo da urbana independência do ministério privado do advogado.


Capítulo VI

Conclusão

            A urbanidade é a salvaguarda da dignidade e da independência da profissão; ela empresta suas forças à moderação, à delicadeza, ela esparge sobre o exercício profissional um elemento facilitador que estreita as relações e anula as dificuldades. Ela mina as animosidades e espalha sobre as lides uma docilidade, sem o que, seriam insuportáveis. Com ela o advogado não é apenas um miles legalis, é um homem honrado; um homem afável e cortês.

            Sem esse dever a nossa profissão seria um rosário de amargores, um suplício a ser exercido em clima de ódios e rancores. Entre os advogados deve reinar o espírito de civilidade e respeito mútuo, sem que estejam influenciados pela malevolência existente entre os seus clientes.

            A atitude vigilante da Ordem é um freio aos desmandos de colegas que, apaixonados pela causa que defendem como próprias, se investem contra colegas ex-adversos, transgredindo os mais elementares princípios que informam e conceituam o dever de urbanidade.


Bibliografia

            BITTAR, Eduardo C. B. Curso de Ética Jurídica, 2ª edição, Editora Saraiva, São Paulo: 2004

            Comte-Sponville, André. Pequeno Tratado das Grandes Virtudes, 1ª edição, 11ª reimpressão,Editora Martins Fontes, São Paulo: 2004

            Eco, Umberto. O nome da rosa, s.n.e., Editora Record/Altaya, Rio de Janeiro: 1986

            LÔBO, Paulo Luiz Netto. Comentários ao Estatuto da Advocacia e da OAB, 3ª edição, Editora Saraiva, São Paulo: 2002

            MARQUES, Ramiro. O livro das virtudes de sempre, 1ª edição, Editora Landy, São Paulo: 2001

            SODRÉ, Ruy de Azevedo. A ética profissional e o estatuto do advogado, s.n.e., Editora LTr, São Paulo: 1984

            Schweitzer, Albert. Cultura e ética, 1ª edição, Editora Melhoramento, São Paulo: 1953

            VÁSQUEZ, Adolfo Sánchez. Ética, 5ª edição, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro: 1982

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Sobre o autor
Rony Alibert Hergert

advogado criminalista, professor especialista de Processo Penal da USF/Pari, especialista em EPB pela Mackenzie, especialista em Ciências Criminais pela UBC, especialista em Processo Civil pela USF, especializando em Direito Penal Econômico pela FGV, assessor do Tribunal de Ética IV da OAB/SP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HERGERT, Rony Alibert. Dever de urbanidade do advogado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 817, 28 set. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7349. Acesso em: 19 nov. 2024.

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