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Capa: Anselmo Mourão / Prefeitura de Maricá
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Saúde: conceito e atribuições do Sistema Único de Saúde

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02/10/2005 às 00:00
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DA INTEGRALIDADE DA ASSISTÊNCIA

Vencida esta etapa, adentramos em outra, no interior do setor saúde - SUS, que trata da integralidade da assistência à saúde. O art. 198. da CF determina que o Sistema Único de Saúde deve ser organizado de acordo com três diretrizes, dentre elas, o atendimento integral que pressupõe a junção das atividades preventivas, que devem ser priorizadas, com as atividades assistenciais, que também não podem ser prejudicadas.

A Lei n. 8.080/90, em seu art. 7º (que dispõe sobre os princípios e diretrizes do SUS), define a integralidade da assistência como "o conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema".

A integralidade da assistência exige que os serviços de saúde sejam organizados de forma a garantir ao indivíduo e à coletividade a proteção, a promoção e a recuperação da saúde, de acordo com as necessidades de cada um em todos os níveis de complexidade do sistema.

Vê-se, pois, que a assistência integral não se esgota nem se completa num único nível de complexidade técnica do sistema, necessitando, em grande parte, da combinação ou conjugação de serviços diferenciados, que nem sempre estão à disposição do cidadão no seu município de origem. Por isso a lei sabiamente definiu a integralidade da assistência como a satisfação de necessidades individuais e coletivas que devem ser realizadas nos mais diversos patamares de complexidade dos serviços de saúde, articulados pelos entes federativos, responsáveis pela saúde da população.

A integralidade da assistência é interdependente; ela não se completa nos serviços de saúde de um só ente da federação. Ela só finaliza, muitas vezes, depois de o cidadão percorrer o caminho traçado pela rede de serviços de saúde, em razão da complexidade da assistência 17.

E para a delimitação das responsabilidades de cada ente da federação quanto ao seu comprometimento com a integralidade da assistência, foram criados instrumentos de gestão, como o plano de saúde e as formas de gestão dos serviços de saúde.

Desse modo, devemos centrar nossas atenções no plano de saúde, por ser ele a base de todas as atividades e programações da saúde, em cada nível de governo do Sistema Único de Saúde, o qual deverá ser elaborado de acordo com diretrizes legais estabelecidas na Lei n. 8.080/90: epidemiologia e organização de serviços (arts. 7º VII e 37) 18. O plano de saúde deve ser a referência para a demarcação de responsabilidades técnicas, administrativas e jurídicas dos entes políticos.

Sem planos de saúde -- elaborados de acordo com as diretrizes legais, associadas àquelas estabelecidas nas comissões intergovernamentais trilaterais 19, principalmente no que se refere à divisão de responsabilidades -- o sistema ficará ao sabor de ideologias e decisões unilaterais das autoridades dirigentes da saúde, quando a regra que perpassa todo o sistema é a da cooperação e da conjugação de recursos financeiros, tecnológicos, materiais, humanos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, em redes regionalizadas de serviços, nos termos dos incisos IX, b e XI do art. 7º e art. 8º da Lei n. 8.080/90.

Por isso, o plano de saúde deve ser o instrumento de fixação de responsabilidades técnicas, administrativas e jurídicas quanto à integralidade da assistência, uma vez que ela não se esgota, na maioria das vezes, na instância de governo-sede do cidadão. Ressalte-se, ainda, que o plano de saúde é a expressão viva dos interesses da população , uma vez que, elaborado pelos órgãos competentes governamentais, deve ser submetido ao conselho de saúde, representante da comunidade no SUS, a quem compete, discutir, aprovar e acompanhar a sua execução, em todos os seus aspectos.

Lembramos, ainda, que o planejamento sendo ascendente, iniciando-se da base local até a federal, reforça o sentido de que a integralidade da assistência só se completa com o conjunto articulado de serviços, de responsabilidade dos diversos entes governamentais .

Resumindo, podemos afirmar que, nos termos do art. 198, II, da CF, c/c os arts. 7º, II e VII, 36 e 37, da Lei n. 8.080/90, a integralidade da assistência não é um direito a ser satisfeito de maneira aleatória, conforme exigências individuais do cidadão ou de acordo com a vontade do dirigente da saúde, mas sim o resultado do plano de saúde que, por sua vez, deve ser a conseqüência de um planejamento que leve em conta a epidemiologia e a organização de serviços e conjugue as necessidades da saúde com as disponibilidades de recursos 20, além da necessária observação do que ficou decidido nas comissões intergovernamentais trilaterais ou bilaterais, que não contrariem a lei.

Na realidade, cada ente político deve ser eticamente responsável pela saúde integral da pessoa que está sob atenção em seus serviços, cabendo-lhe responder civil, penal e administrativamente apenas pela omissão ou má execução dos serviços que estão sob seu encargo no seu plano de saúde que, por sua vez, deve guardar consonância com os pactos da regionalização, consubstanciados em instrumentos jurídicos competentes 21.

Nesse ponto, temos ainda a considerar que, dentre as atribuições do SUS, uma das mais importantes -- objeto de reclamações e ações judiciais -- é a assistência terapêutica integral. Por sua individualização, imediatismo, apelo emocional e ético, urgência e emergência, a assistência terapêutica destaca-se dentre todas as demais atividades da saúde como a de maior reivindicação individual. Falemos dela no tópico seguinte.


DA INTEGRALIDADE DA ASSISTÊNCIA TERAPÊUTICA

A assistência terapêutica integral compreende o conjunto de ações e serviços que visam ao tratamento das doenças e agravos à saúde, subseqüentes ao procedimento diagnóstico, destinadas a garantir ao indivíduo a proteção do seu potencial biológico e psicossocial e a recuperação de sua saúde.

O cidadão tem o direito de obter do serviço público de saúde, após o diagnóstico, a atenção terapêutica individualizada, de acordo com as suas necessidades. Para cada caso, segundo as suas exigências, e em todos os níveis de complexidade dos serviços. Entretanto, esse direito deve pautar-se por alguns pré-requisitos, dentre eles, o de o cidadão, livremente, ter decidido pelo sistema público de saúde e acatar os seus regramentos técnicos e administrativos.

O direito à integralidade da assistência terapêutica não pode ser aleatório e ficar sob a mais total independência reivindicatória do cidadão e da liberdade dos profissionais de saúde indicarem procedimentos, exames, tecnologias não incorporadas no sistema, devendo a conduta profissional pautar-se por protocolos, regulamentos técnicos e outros parâmetros técnico-científico-biológico 22. E esses documentos, orientadores do sistema, devem ser elaborados de forma a serem capazes de conjugar tecnologia, recursos financeiros e as reais necessidades terapêuticas, sem acrescentar o que possa ser considerado supérfluo ou desnecessário ou retirar o essencial ou relevante.

Gilson Carvalho, em palestra proferida no Ministério da Saúde, em junho/2005, declarou que a integralidade sonhada e inscrita na lei e na Constituição pressupunha, para os ideólogos da Reforma Sanitária:

- "a integralidade incluindo promoção, proteção e recuperação da saúde;

- a integralidade com regulação da incorporação tecnológica (MBE) 23;

- a integralidade da atenção protocolizada com base na evidência científica, nem sempre impoluta, mas com mais chance de acerto;

- a integralidade da assistência farmacêutica discutindo-se a desmedicalização e a indicação correta dos medicamentos;

- a integralidade de exames precedida da discussão de "quê exames" e "de quando" fazê-los;

- integralidade da hospitalização precedida pela universalidade da atenção primária;

- integralidade das UTIs com discussão de quê agravos precisam de UTIs e o bem morrer daqueles fora de possibilidade terapêutica;

- integralidade com o uso de especialistas, após acesso primeiro aos cuidados primários".

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Discorrendo, ainda, sobre o tema, ele mencionou as distorções que vem ocorrendo com o conceito da integralidade, as quais denominou de "integralidade turbinada" e "integralidade partida".

"Integralidade turbinada:

- turbinada pela voracidade de alguns produtores e mercadores de equipamentos, medicamentos e material de saúde;

- turbinada pela influência direta e indireta do complexo industrial, comercial e midiático de saúde (CICMS 24);

- sobre os profissionais de saúde (desde as escolas de saúde, seus currículos, professores e formadores de opinião até o profissional responsável direto pelos pacientes);

- sobre a população, induzida ao consumo por certa mídia paga a peso de ouro;

- sobre o Judiciário (estima-se em 250 mil ações em 2005)".

"Integralidade partida:

- integralidade partida pela iniqüidade do Estado brasileiro com suas diferenças abissais entre estados e cidades;

- integralidade partida pela iniqüidade da distribuição de recursos federais para a saúde, onde sempre se deu mais para quem mais teve e tem;

- integralidade partida pela diferença de alocação de recursos humanos e técnicos de saúde (conseqüência dos acima);

- integralidade partida por se garantir apenas parte, para seres humanos e cidadãos iguais".

Sem critérios para a incorporação da infinidade de recursos tecnológicos 25 hoje existentes – que talvez sejam "quase" infinitos, não haverá equidade 26 na organização dos serviços de saúde. Uns terão talvez, até o desnecessário, e outros, não terão nem o essencial.

Não podemos conviver, num mesmo sistema de saúde, com o acesso a um aparato tecnológico que muitas vezes, ao invés de garantir qualidade de vida até irá afastá-la, a um custo que certamente prejudicará a organização do sistema em sua totalidade, convivendo lado a lado, pessoas que não têm acesso a uma consulta de especialidade e que morre por desidratação com pessoas que, muitas vezes, em razão de tantas intervenções médicas e cirúrgicas podem até ser qualificadas de "biônicas".

Esse liame é de difícil precisão. Não é fácil definir o que deve e o que não deve ser colocado à disposição da população. Mas, nem mesmos os países ricos que mantém sistemas públicos de saúde, de acesso universal, oferecem tudo para todos. Oferece para todos aquilo que, com seriedade e de acordo com critérios técnicos, científicos, médicos, biológicos, entende como necessário à garantia da assistência integral, sem o excesso do mundo tecnológico-capitalista que mais pretende vender do que curar. Alias, a indústria muitas vezes é mais da doença do que da cura. Estudos e análises de profissionais, que devem ouvir os reclamos da população e conhecer a sua real demanda, são imperiosos num sistema público de saúde que tenha como pauta respeitar a dignidade das pessoas.

Não queremos com isso dizer que as pessoas não devem ter acesso a serviços de ponta, de qualidade, com o direito ao prolongamento de suas vidas, mas sempre com os olhos voltados para um sistema que deve ser coerente, conseqüente, igualitário, equânime e humano. A indicação de determinadas condutas profissionais deve pautar-se por parâmetros, diretrizes, protocolos que visem garantir a todos a dignidade humana.

Nem sempre há dignidade em morrer em um hospital, numa UTI, ligado a tubos, longe do afeto familiar, tudo em nome de uma falsa ou suposta possibilidade de prolongamento da vida (ou prolongamento do sofrimento?). A vida, por si só, despida de dignidade, nem sempre é o maior bem. O sofrimento moral, muitas vezes, é pior do que o sofrimento físico. Elisabeth Roudinesco 27, historiadora e psicanalista, afirma, com muita propriedade, que "assim, quanto mais a medicina enriquece em resultados diante da doença, mais ela empobrece em sua relação com o paciente."

Além do mais, não podemos deixar de considerar que os serviços públicos de saúde são para todos . O SUS há de ofertar serviços de saúde para todos aqueles que pretenderem a sua atenção. Daí os regramentos que devem ser impostos. Não se pode garantir o direito de um cidadão de se tratar no exterior enquanto o sistema público não conseguir dar conta de evitar a morte de bebes indígenas por desnutrição ou por falta de UTI, sob pena de a igualdade pretendida no SUS não ser equânime. Não é justo, não é razoável organizar um sistema que possibilita, de um lado, pacientes tratando-se no exterior e de outro, gestantes morrendo nas salas de parto por falta de atendimento adequado. Aqui, cadê a justa igualdade, a justa medida, a razoabilidade centrada em parâmetros éticos?

Com isso não estamos defendendo uma saúde pobre para pobre. Mas, se não se organiza o sistema público, fatalmente teremos uma saúde pobre para todos, uma vez que a desorganização contribuirá para o enfraquecimento do sistema, predominando numa sociedade injusta, "tudo" para alguns e o "pouco" para muitos, reproduzindo a desigualdade existente.

Além do mais, o cidadão que pretender utilizar os serviços de saúde estará obrigado a observar os regramentos técnicos e administrativos, não podendo, aleatoriamente, utilizar seus serviços, sem observância da organização estabelecida pelos entes públicos. Um cidadão não pode, no sistema público, buscar apenas um exame, um medicamento, uma intervenção cirúrgica, sem, contudo, querer submeter-se ao diagnóstico e tratamento prescritos pelos especialistas desses serviços públicos.

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A assistência terapêutica é integral: -- integral no sentido da melhor terapêutica para o paciente e integral no sentido de sua vinculação com o sistema; ou se opta pelo público ou se escolhe o privado; e paga-se por ele. O SUS é integral e não "complementar" do setor privado, além de ser de livre escolha do paciente; sempre que esse quiser poderá optar pelo serviço público, só que terá de fazê-lo de maneira integral e não de forma fracionada.

A assistência terapêutica, garantida como direito universal e gratuito, será aquela ministrada pelos órgãos e entidades que integram o Sistema Único de Saúde, sob responsabilidade de seus profissionais, não podendo ser ofertada terapia fracionada de procedimentos ou medicamentos para pacientes que estejam sob tratamento e responsabilidade de profissionais que não pertencem ao SUS. Aqui a integralidade da assistência se esfacela, uma vez que o paciente não estará submetido ao tratamento que o profissional de saúde do SUS lhe prescreveria.

E isso tudo deve ser discutido com a população em seus conselhos de saúde e em outros fóruns representativos da sociedade, devendo o plano de saúde expressar a necessidade da população, balanceada com a disponibilidade de recursos financeiros 28.

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Sobre a autora
Lenir Santos

advogada em Campinas (SP), especialista em Direito Sanitário, membro do Instituto de Direito Sanitário Aplicado (IDISA)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Lenir. Saúde: conceito e atribuições do Sistema Único de Saúde. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 823, 2 out. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7378. Acesso em: 15 nov. 2024.

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