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A crise da democracia representativa e a reforma política

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05/10/2005 às 00:00

Resumo:


  • A democracia representativa enfrenta uma crise de legitimidade, com a população cada vez mais descrente na eficácia de sua participação política por meio das eleições concorrenciais.

  • O sistema eleitoral brasileiro apresenta distorções que agravam a crise da democracia representativa, como a infidelidade partidária, as eleições por lista aberta e o financiamento privado das campanhas.

  • Propostas como o fortalecimento da fidelidade partidária, a adoção de listas fechadas ou preferenciais e o financiamento público exclusivo de campanha são vistas como possíveis melhorias para o aperfeiçoamento da democracia representativa.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

2 – A Fidelidade e as Listas Partidárias

Um dos fatores que mais tem contribuído para corroer a estabilidade política brasileira é a infidelidade partidária e a sistemáticas de eleições por lista aberta, notadamente agraciadas pela Lei, privilegiando o mandato individual do parlamentar em detrimento do partido. Tal sistema, tal qual retratado na obra de Quincas Borba de Machado de Assis, conduz os partidos a buscarem candidatos entre personalidades de destaque social, como representantes dos meios de comunicação, de igrejas ou desportistas, que acabam se tornando, em face desta situação, independentes dos próprios partidos. Ironicamente, é exatamente este modelo que incentiva a formação das chamadas siglas de aluguel, sem nenhuma base programática, que apenas objetivam conduzir determinadas figuras aos postos de poder.

O modelo eleitoral proporcional com listas abertas só existe no Brasil e na Finlândia, e não cria uma ligação política entre o eleitor e o seu represente que permita uma cobrança para solução dos problemas que afetam a sociedade, e quando esta existe, fica adstrita a problemas de natureza paroquial, ou a meros favores. Via de regra, dada a prevalência do personalismo das lideranças, os candidatos são eleitos sem maiores compromissos com os eleitores ou com os problemas enfrentados por sua base eleitoral. É comum, por exemplo, vermos a formação de verdadeiras estruturas de troca de favores ligadas a determinados parlamentares, que fornecem serviços que compreendem desde uma simples liberação de documentos, que podem ser perfeitamente obtidos junto aos órgãos da administração pública, ao fornecimento de estadia em determinadas cidades para a realização de exames de saúde. Isto tudo às custas do dinheiro do contribuinte, dos altos subsídios parlamentares, do apoio privado de grupos de empresários ligados ao parlamentar, ou ainda graças à influência midiática.

O resultado deste sistema é a formação de partidos muito heterogêneos, além de propiciar que determinados candidatos, campeões de voto auxiliem a eleição de outros de pouca densidade política, quando não de perfil oposto, que vão engrossar as fileiras do baixo clero. Outro problema grave ocasionado pelo sistema de lista aberta consiste na dificuldade que o eleitor passa a ter para conhecer a plataforma programática de cada um dos candidatos, num universo que só tende a aumentar progressivamente. Segundo o Art. 10 da Lei 9.504, de 30 de setembro de 1997, cada partido poderá inscrever nas eleições para Deputado Federal até 150% dos números de vagas a serem preenchidas, sendo que este número aumenta para o dobro do número de vagas, quando se tratarem de coligações. Se tomarmos como exemplo o Estado de São Paulo, que tem direito a 70 deputados, considerando que oito partidos e duas coligações disputem as vagas existentes no parlamento, chegaremos ao incrível número de 1.120 candidatos, o que inevitavelmente impede que o eleitor tenha conhecimento de todos candidatos, motivo pelo qual a preferência de escolha passa a depender do poderio econômico da candidatura, ou do grau de influência do candidato por outros meios, como o rádio, a televisão ou a igreja.

Em contraposição ao modelo de lista aberta, existem outros dois modelos importantes, que atuam no sentido de fortalecer os partidos e induzir a escolha racional e programática dos eleitores. O primeiro é o sistema de listas fechadas ou bloqueadas, onde os partidos apresentam aos eleitores uma lista previamente ordenada hierarquicamente aos eleitores que através do voto impessoal na lista (legenda partidária de sua preferência), determinam o número de vagas que cada partido terá no parlamento. Embora este sistema, adotado na maior parte dos países, destacadamente nos países europeus, fortaleça os partidos e a discussão programática nos mesmos, qualificando o processo eleitoral, tem recebido sistematicamente críticas pelo fato de diminuir a identidade do eleitor com o candidato e o de fortalecer os chefes partidários que utilizariam a burocracia interna para se manterem permanentemente no poder [21]. O segundo modelo é o de listas preferenciais, que nada mais é do que uma variação do sistema de listas fechadas. Neste último modelo os partidos também oferecem aos eleitores listas previamente ordenadas hierarquicamente, contudo o eleitor tem a possibilidade de alterar esta ordenação na medida em que lhe é facultado votar no candidato que poderá ser reposicionado na lista final, desde que receba votos suficientes para tanto. Desta forma, neste modelo, além de escolher o partido, o eleitor também poderá escolher o candidato de sua preferência dentro da lista partidária.

Em qualquer das hipóteses, para o correto funcionamento do sistema é essencial o fortalecimento da fidelidade partidária. Trata-se, na realidade, de uma medida que visa inibir a troca constante de legendas. Ocorre que num sistema eleitoral de lista aberta, como já foi dito anteriormente, há um privilegiamento do candidato em relação ao partido, o que determina a verdadeira dança das cadeiras que acontece todos os anos no parlamento brasileiro. Embora o sistema eleitoral não possa agir como uma "camisa de força" ideológica, a infidelidade, prática que, como adverte Otávio DULCI [22], foi reforçada pelo período da ditadura militar, "significa renúncia ao mandato obtido nas urnas. É como se começasse subitamente outro mandato, sem nenhuma delegação formal". Aliás, como destaca o referido autor, "é surpreendente a naturalidade com que essa questão tem sido encarada no país, pois ela é talvez o principal fator de descrédito dos partidos entre os brasileiros".


3 – Financiamento de Campanha

Um dos pontos que tem ganhado relevância nos últimos anos, sob inspiração do princípio da equidade, é a substituição do atual sistema de financiamento privado dos partidos existente no Brasil, pelo financiamento público exclusivo de campanha [23], idéia esta que foi reforçada com a última crise política. Além de estabelecer uma maior igualdade no acesso aos recursos financeiros para os partidos, o financiamento público também objetivaria a diminuição da interferência dos interesses privados e de grupos econômicos sobre os partidos, governos e parlamentos.

Tal medida, adotada em vários países, como Alemanha e Japão, embora seja considerada boa, deve antes ser submetida a algumas considerações prévias. A primeira como bem adverte Otávio DULCI, é com relação à legitimidade, na medida em esta proposta

"não é de fácil aplicação e precisa ganhar legitimidade popular para funcionar bem. Em época de ajuste fiscal, com cortes de gastos do Estado, diante das críticas endereçadas aos políticos por conta de seus vencimentos e das despesas dos órgãos legislativos, como fazer para tornar essa medida aceitável pela opinião pública? (DULCI, 2005)

Outra questão importante se refere à distribuição dos recursos entre as agremiações partidárias, considerando que nas propostas dominantes a repartição deverá ser feita proporcionalmente de acordo com a representação de cada partido no Congresso, o que acabará indubitavelmente privilegiando as grandes agremiações partidárias, situação esta agravada com a adoção da cláusula de barreira. Outro aspecto importante se refere à distribuição dos recursos dentro das próprias estruturas partidárias, principalmente se mantido o sistema de listas abertas, que por natureza é incompatível com o financiamento público de campanha, na medida em que haveria uma tendência a privilegiamento de determinadas candidaturas em detrimento de outras.

Há ainda dois debates diretamente ligados a esta proposta que devem ser realizados. Um consiste na necessidade clara de redução das despesas de campanha eleitoral, tendo em vista que o atual valor das despesas, principalmente os gastos com publicidade, propaganda e mídia é incompatível com o uso de recursos públicos. Na outra ponta encontramos a necessidade de aperfeiçoamento dos mecanismos de controle e fiscalização da aplicação dos recursos, já que a simples adoção do financiamento público não impede a possibilidade de determinados partidos e candidatos virem a utilizar recursos de caixa dois, obtidos por fora do sistema oficial.

Por fim, e não menos importante, o fato de ser adotado um sistema de financiamento público não impede eventuais doações da iniciativa privada, desde que os recursos sejam diretamente direcionados para o Fundo Partidário. A doação NÃO deve estar condicionada ao oferecimento de benefícios fiscais, sob pena de desvirtuamento do mecanismo de financiamento público, sem contar um antipático prejuízo para o restante da sociedade.


4 - Considerações Finais

Segundo o publicista gaúcho Juarez FREITAS, "a democracia representativa é vital. A direta, também" [24]. Para ele, um dos desafios mais complexos e facinantes da atualidade reside em fazer completares os instrumentos da democracia direta e da democracia representativa, como forma de superar o formalismo da legitimação pelo procedimento, característico da tradicional e antiga democracia representativa. Seguindo o mesmo caminho, André Ramos TAVARES afirma que:

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"A vontade de participar do poder, na democracia representativa, nos moldes atuais, é restritivista, visto que cessa no momento em que ocorre o provimento eleitoral. De maior duração e profundidade é a vontade de exercer o poder na democracia semidireta, na qual se vai além do mero voto, galgando intersecções e imbrincações necessárias com a esfera pública representativa do exercício do poder pelos representantes do "soberano" (povo) (TAVARES, 2004:352).

O certo é que, diferentemente de uma crise da Democracia, atravessamos uma série crise de legitimidade da Democracia Representativa, que á agravada no país pelas distorções existentes no sistema eleitoral. Esta perda de legitimidade, nada mais é do que, também, uma perda de legitimidade dos poderes executivo e legislativo, componentes essenciais da democracia representativa, que se afastam cada vez mais do conjunto da sociedade, característica esta peculiar ao movimento globalizante, fortalecendo os aspectos burocráticos da gestão pública em detrimento das garantias políticas da cidadania. Motivado por esta crise, Paulo BONAVIDES aponta que é necessário repolitizar a legitimidade da nossa democracia. "Repolitizar a legitimidade equivale a restaurá-la, ou seja desmembrá-la dessa legalidade onde ela na essência não existe, porque o povo perdeu a crença e a confiança na república das medidas provisórias e na lei dos corpos representativos, cada vez mais em desarmonia com a sua vontade, suas aspirações, seus interesses existenciais" [25]. Esta medida consistiria no alargamento dos mecanismos de democracia participativa, que deveriam ser estendidos para os altos poderes da República.

A crise da Democracia Representativa não é um privilégio brasileiro, mas em nosso país as amarras do patrimonialismo burocrático a tornaram ainda mais injusta. Embora várias das propostas que giram em torno da Reforma Política, se aplicadas, acabem de alguma forma contribuindo para o aperfeiçoamento das regras do jogo eleitoral, o fortalecimento dos mecanismos de democracia participativa, poderiam ajudar a romper com o imobilismo que é dominante na sociedade presa ao formalismo da democracia representativa, principalmente quando esta é reduzida a eleições concorrênciais. A Democracia Participativa tem como papel superar a limitação "das regras do jogo", e servir como mecanismo de inclusão dos anseios populares.

Por fim, como ensina o professor espanhol Tomás VILLASANTE, não podemos esquecer que uma democracia não é algo estático, é um processo.

"Um processo na história que se está construindo e em relação aos problemas concretos que deve ir resolvendo. É portanto uma coisa construída, que não cai do céu por milagre. [...] A democracia não está tanto em representar as opiniões, mas sim em como elas são construídas. Porque as opiniões, como tudo mais, não estão aí preexistentes, à espera de que venhamos descobri-las, mas estão em permanente construção, e o interessante é que se possa construir livremente e com a maior informação possível. A democracia não é uma coisa abstrata realmente existente ou não, mas sim processos que se constroem ou destroem, dependendo do papel desempenhado pelas diferentes forças sociais, em cada situação concreta e complexa." (VILLASANTE, 1999:98-100);

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Sobre o autor
Sandro Ari Andrade de Miranda

Advogado no Rio Grande do Sul, Doutorando em Sociologia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MIRANDA, Sandro Ari Andrade. A crise da democracia representativa e a reforma política. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 824, 5 out. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7386. Acesso em: 18 dez. 2024.

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