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O direito do intersexual à identidade de gênero e ao registro civil

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3. Conclusão

A primeira vez que nos propomos a discorrer sobre um tema que ainda não dominamos completamente e que ainda não existe uma certa compreensão do destinatário do texto sobre o sentido de nossas ideias, vem-nos a inevitável sensação de estarmos inovando sobre o assunto e ingressando num mundo novo, onde tudo é estranho, sombrio, diferente e assustador.

Passa também a impressão de que o que foi dito antes não pode mais ser modificado, porque faz parte de uma verdade inquestionável. Mas a dialética, entendida como processo de diálogo para a busca da verdade, se estabelece, em qualquer tempo e lugar, entre o homem e o meio social em que está inserido, sempre voltada para o progresso da ciência e o bem da humanidade.

Se a experiência científica não permite afirmar, no momento do nascimento do intersexual qual o seu verdadeiro sexo, deve prevalecer a coerência como pedra de toque da diversidade genésica, consignando-se por escrito no registro desse indivíduo neonato o gênero provisório de intersexo até que sua maturidade psicológica permita que o mesmo declare espontaneamente a sua identidade sexual.

Aqui o formalismo legislativo hipotético cede lugar à equidade para corrigir a antinomia e o paradoxo que a abstração legiferante não contemplou. Cabe à justiça, nesse caso, suprir a deficiência diante da realidade concreta da vida para atender aos anseios do gênero humano, acaso não exista norma administrativa do Judiciário que regule a situação.

A natureza, como sabemos, não é homogênea. Nela habita uma infinidade de seres que não são homogêneos. Não há só uma raça, só uma cor, só uma matéria, só um idioma, só uma ideia a respeito das coisas. O mundo é heterogêneo; o ser humano também. A partir dessa heterogeneidade material é possível explicar a diversidade sexual que tanto assusta atualmente a humanidade pela multiplicidade de pessoas que jamais poderão ser tratadas dentro de um padrão homogênico.

Isto deixa claro que se a natureza é um universo inacabado, os seres humanos, como parte integrante desse contexto, também carregam enormes imperfeições e diferenças entre si, que lhes permitem ser ou viver como melhor lhes convêm.

O homem é o resultado da sua interindividualização. Essa é a razão pela qual o médium Chico Xavier, num momento de rara inspiração, sintetizou toda a essência da individualidade humana, ao vaticinar “Eu permito a todos serem como quiserem, e a mim como devo ser.”

Consequentemente, devemos concordar que numa sociedade plúrima, como a brasileira, a laicidade nos inclina a raciocinar a partir de inúmeras possibilidades, dentre as quais como e onde encontrar a felicidade humana. Sabemos que somente cada pessoa, conhecendo a si própria, pode encontrá-la e descobrir onde ela está.

É que esse estado de bem-estar espiritual satisfaz o equilíbrio psicofísico e emocional do indivíduo, conferindo-lhe liberdade ilimitada para falar, pensar, vestir-se e comportar-se dentro do modelo de existência humana que escolheu de acordo com a escala de valores éticos e morais socialmente aceitos ou não.

Por isso, não é equivocado afirmar que o ser humano, guardadas as devidas desigualdades, deve ser tratado de modo a obter a condição essencial e legal de existir como pessoa da maneira como reconhece sua identidade sexual, o que somente será possível quando, sob essa perspectiva, for aceito socialmente e tratado com igualdade perante todos de acordo com sua identidade de gênero psicossocial.

Esse entendimento vem sendo construído paulatinamente por diversos ramos do conhecimento humano. O Judiciário, como órgão regulador das tensões sociais, é obrigado a pronunciar-se diante das hipóteses ventiladas, ainda que não se enquadrem nas categorias jurídicas já reguladas. O juiz não julga pessoas. Ele encarna o direito vivo e, por isso, deve inspirar-se no exemplo do pretor romano para quem o direito era ars boni et aequi.

A função do juiz, neste caso, não é inventar um direito novo. Mas ajustar o direito preexistente às situações novas à semelhança de uma suposta lei natural que, por ser justa e coerente, pode e deve ser aplicada a todos sem o perigo de criar regalias ou distinções com base numa certeza ou verdade racional que está acima do costume e da própria lei.

Se a lei brasileira ainda não reconhece ao intersexo o direito ao registro de nascimento, tal como veio ao mundo, haveremos de buscá-lo no jusnaturalismo. No imenso código da lei natural, cheio de normas não escritas, não lidas, nem interpretadas, mas perceptíveis, se encontra o direito do intersexo ao registro civil de acordo com a sua gênese sexual, cabendo ao mesmo, ao atingir a puberdade ou a idade adulta, decidir qual será sua identidade sexual e, por conseguinte, atribuir-se um nome compatível com o seu gênero.

É certo data maxima venia que não podemos esperar essa iniciativa dos tribunais que, quase sempre conservadores, não inovam a maneira de interpretar a lei, nem atualizam frequentemente a jurisprudência, engessada por súmulas e precedentes antiguíssimos, que impedem a caminhada pari passu do Direito com a velocidade galopante das novas concepções humanas sobre a identidade de gênero sexual.

Os juízes das instâncias monocráticas, sempre vanguardistas e dispostos a corrigir essas miopias legislativas, sem fugir ao espírito da lei e do Direto vigentes, enxergam e compreendem essas situações consideradas anômalas com inquestionável precisão, pois o contato imediato com as partes e com o conflito a solucionar, lhes confere a capacidade de perscrutar o caráter lícito do fato para inferir que toda norma de conduta ética ou moral tem como tendência transformar-se em norma jurídica para a construção da paz social.

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Nessa medida, o juiz torna-se o elo entre o conflito de interesses e a comunhão social, cabendo-lhe, como intérprete dos fatos submetidos ao seu conhecimento, dizer o direito fundamental aplicável à espécie, ainda que baseado em princípios imutáveis, os quais, por serem abstratos e universais, levam uma grande vantagem sobre a lei. É desse fenômeno que o juiz retira argumentos para acudir situações que a norma escrita ignorou e para determinar, como no caso das pessoas intersexuais, o reconhecimento da identidade psicológica de gênero a elas profligada pelo ordenamento jurídico. Com esta garantia se respeita a dignidade do Direito e da pessoa humana.


Notas

1 Toda pessoa física precisa ter um nome que a identifique, ainda que provisoriamente. O intersexual é pessoa humana colocada entre o masculino e o feminino. Embora seu corpo não exponha a certeza sexual, revela, sem disfarces, a forma humana que lhe confere direito a uma identificação sexual e nome para o exercício de sua cidadania e identidade civil, como fundamento básico da dignidade humana.

2 Há quem defenda que no campo relativo ao sexo devem ser escritas expressões tais como: indefinido, impreciso, indeterminado, não especificado, não identificado. Penso que deva ser escrita, em caráter provisório, a expressão intersexo, considerando que a correção definitiva do prenome registrado pode ser feita na idade adulta ou na puberdade pela própria pessoa intersexual, acaso não prefira manter-se com a ambiguidade genital. Essa opção facilita, por conseguinte, a indicação pelos pais de prenome comum para qualquer gênero. Por exemplo: Adail, Alcione, Aurimar, Dagmar, Diomar, Elismar, Guiomar, Francimar, Íris, Laurimar, Ozimar, Sasha, etc.

3 Defendo que deva constar no trecho em branco, a ser preenchido na certidão de nascimento, a expressão “intersexo”, a qual deve permanecer em caráter provisório até que a pessoa intersexual atinja a puberdade ou a idade adulta e decida o sexo que deseja assumir em face de sua identidade psicológica ou, se for o caso, manter-se com o binarismo sexual por se identificar e conviver muito bem com essa dualidade. Penso que esta alternativa atende à ratio essendi dos registros públicos.

4 In Registros Públicos: Teoria e Prática. 9.ª ed. revista, atualizada e ampliada. Salvador: Editora Juspodium, 2018, p. 190.


Abstract: The present study aims to demonstrate that the intersex person, despite being born with ambiguous genitalia, has the right to the public record of his birth, where his name, sex, color, affiliation, naturalness, and other pertinent information must be included, although, his body does not expose sexual certainty, reveals without disguise the human form that gives him the right to a provisional sexual identification for the exercise of his citizenship and civil identity as the basic foundation of human dignity, until puberty or adulthood assures you the assurance of choosing to remain with the sexual gender that your psychological identity determines..

Key words: Intersexual - Intersex – Civil Identity - Genre – Sexual Binarism – Human Dignity – Social Name - Public Registry.

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Sobre o autor
José Eulálio Figueiredo de Almeida

Professor de Direito Processual Penal da Universidade Federal do Maranhão - UFMA. Juiz de Direito Titular da 8.ª Vara Cível em São Luís. Membro da Academia Maranhense de Letras Jurídicas. Especialização em Processo Civil pela UFPE. Especialização em Ciências Criminais pelo UNICEUMA. Doutor em Direito e Ciências Sociais pela Universidad del Museo Social Argentino - UMSA.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMEIDA, José Eulálio Figueiredo. O direito do intersexual à identidade de gênero e ao registro civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7466, 10 dez. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/73878. Acesso em: 6 mai. 2024.

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