Não há dúvidas de que o compartilhamento de veículos elétricos de mobilidade individual autopropelidos, acionados por plataforma digital, tem sido um sucesso. As bicicletas elétricas já eram conhecidas há algum tempo no Brasil, quando os patinetes elétricos entraram no mercado brasileiro há menos de um ano. Febre nos Estados Unidos, onde vultosas somas foram captadas por empresas do setor, os patinetes são populares na Europa e na China e chegaram ao Brasil em agosto de 2018, quando os primeiros empreendedores - as startups Ride (incorporada pela Grin), Yellow e Scoo - iniciaram testes. Seu crescimento exponencial mudou substancialmente o cotidiano das cidades; só uma concessionária no Rio de Janeiro registrou um aumento de 1.268% de usuários entre dezembro de 2018 e abril de 2019. São uma opção prática, barata e ecologicamente correta.
Patinetes elétricos, assim como bicicletas elétricas, estão inseridos no que as startups chamam de "micromobilidade". O termo foi cunhado por Horace Dediu, que definiu como uma categoria de veículos destinados a transporte urbano, acionados predominantemente por motor elétrico e com peso menor do que 500 kg, sendo uma alternativa a veículos pesados e poluentes. O objetivo é constituir um meio, dadas as suas dimensões, leve e eficiente para o usuário percorrer curtas distâncias mais rapidamente. Um estudo do McKinsey Center for Future Mobility revela que das viagens realizadas em todo o mundo, 60% são para percursos inferiores a 8 quilômetros; já em São Paulo, de acordo com Dados da Pesquisa de Mobilidade Urbana de 2012, cerca de 60% das viagens de carro estão entre 2 a 5 quilômetros. São distâncias que comportam perfeitamente veículos de micromobilidade.
Ao mesmo tempo em que cresce o número de usuários, a ascensão do sistema de compartilhamento de veículos elétricos de mobilidade individual autopropelidos mostrou que reclama uma regulamentação específica, seja no Brasil ou em qualquer outro lugar do mundo. Quando os patinetes elétricos entraram no mercado brasileiro, os Estados Unidos já registravam crescentes acidentes com os veículos e a segurança é tema frequente de debates. Na França, o governo afirmou que a evolução da circulação de patinetes elétricos foi "rápida e anárquica", colocando pedestres em risco e, por isso, proibiu o uso do equipamento nas calçadas, além de outras regras. Em São Paulo, a Fundação Procon constatou aumento do número de acidentes com bicicletas e patinetes elétricos e recentemente notificou empresas responsáveis para fornecimento de informações.
A exploração da nova atividade econômica encontra guarida na livre iniciativa, assegurada pelo art. 170 da Constituição Federal como princípio fundante da ordem econômica brasileira. A Lei Federal 12.695/2014 (Marco Civil da Internet), em seu art. 4º, III, estimula a promoção da inovação e do fomento à ampla difusão de novas tecnologias e modelos de uso e acesso. Essa liberdade foi reafirmada pelo art. 3º, IV, da Medida Provisória 881/2019, que reconhece como direito essencial de toda pessoa o desenvolvimento, a execução, a operação e a comercialização de novas modalidades de produtos e de serviços quando as normas infralegais se tornarem desatualizadas por força de desenvolvimento tecnológico consolidado internacionalmente. Entretanto, por impor significativos custos sociais, conforme explica Fábio Nusdeo, cabe ao Estado, no seu papel de controlador das inoperacionalidades do mercado, criar normas jurídicas que promovam sua internalização pelas suas unidades geradoras ou, então, impedir sua própria geração (2016, p. 133).
Nos anos 70, ao lançar sua pioneira obra sobre direito urbanístico, José Afonso da Silva inseria o sistema de transporte urbano, que compreende os meios públicos e privados, coletivos e individuais, no campo do direito urbanístico por constituir modos de uso do solo mais intensos nos dias de hoje. A introdução de novos modos de transporte afeta diretamente o planejamento de transportes urbanos, que não pode ser realizado sem uma ordenação urbana, mediante planos diretores e projetos específicos, a fim de assegurar a compatibilização com os planos de desenvolvimento urbano (2018, pp. 238-9). A Lei Federal 12.587/2012 (Lei de Política Nacional de Mobilidade Urbana), por sua vez, incluiu o sistema de transporte urbano no sistema de mobilidade urbana, que pode ser considerado como "um conjunto estruturado de modos, redes e infra-estruturas que garante o deslocamento das pessoas na cidade e que mantém fortes interações com as demais políticas urbanas" (Bergman & Rabi, 2005, p. 10). Embora seja apresentado por startups erroneamente como solução para mobilidade urbana nas grandes cidades, pois mobilidade não é, o serviço oferece um modo de transporte desconhecido até pouco tempo e que reclama atuação do Poder Público para integrá-lo com diferentes modais, organizados à concretização do acesso à cidade.
A introdução do conceito de economia compartilhada na mobilidade urbana transformou a relação da população com a urbe, pois atende à necessidade de deslocamento a baixo custo, reduzindo o número de veículos automotores, o congestionamento nas vias públicas e a emissão de poluentes. A aceitação geral e a rápida proliferação sobretudo de patinetes elétricos, por outro lado, têm gerado conflitos entre usuários, pedestres, motoristas, empresas prestadoras do serviço e Administração Pública, que demandam normatização sobre as condições do serviço, o uso de novos equipamentos, a sinalização de trânsito e a reparação de danos. Além de alterações na Lei 12.587/2012, urge a adequação de outros diplomas legislativos, como o Código de Trânsito Brasileiro e o Código de Defesa do Consumidor.
O impacto causado pela plataforma digital na mobilidade urbana, que fez contemplar novos modos de transporte urbano baseados no uso de aplicativos, deve ser objeto de atenção do legislador federal, porquanto é competência privativa da União legislar sobre trânsito e transporte (art. 22, XI, da Constituição Federal). Vale notar que legislar para se adaptar às inovações tecnológicas não seria novidade, como se deu com as viagens individuais ou compartilhadas solicitadas exclusivamente por usuários previamente cadastrados em aplicativos ou outras plataformas de comunicação em rede, como Uber e 99, objeto da Lei Federal 13.640/2018, que alterou o art. 4º, X, da Lei Federal 12.587/2012. A tese foi confirmada pelo Supremo Tribunal Federal, que, em repercussão geral, declarou inconstitucionais leis municipais que proíbem o transporte individual acionado por plataforma digital, seja porque ferem a liberdade de concorrência e a livre iniciativa, seja porque se trata, de fato, de matéria sobre a qual só a União pode legislar (RE 1.054.110/SP, rel. Min. Roberto Barroso, j. 08.05.2019; ADPF 449/DF, rel. Min. Luiz Fux, j. 08.05.2019).
A rigor, não cabe ao Município legislar sobre a questão. Sua competência legislativa, de acordo com a Constituição Federal, diz respeito a assuntos de interesse local (art. 30, I). Trata-se, consoante a lição de Hely Lopes Meirelles, de predominância do interesse para o Município, isto é, aquilo que repercute direta e imediatamente na vida municipal, embora possa interessar também, indireta e mediatamente, ao Estado-membro e à União (2017, p. 115). A legislação sobre modos de transporte, ao contrário, afeta o país como um todo, não sendo à toa se achar situada na esfera da União. Tampouco se pode falar de suplementar a legislação federal ou estadual (art. 30, II), eis que a competência abrange apenas matérias de competência concorrente entre União e Estados e não alcança as matérias incluídas na competência legislativa privativa da União.
Merece ressalva a fundamentação no exercício da competência do Município para elaborar o plano diretor (art. 182, § 1º, da Constituição Federal). Cuida-se de instrumento básico de política urbana dirigido para equacionar e estabelecer objetivos a serem executados, promovendo a ordenação do uso e da ocupação do solo urbano de forma a responder à demanda por desenvolvimento urbano socialmente justo e ao bem-estar de seus habitantes (Costa, 2014, p. 266). Contanto que não altere a disciplina sobre trânsito e transporte, é possível que o plano diretor discipline questões específicas. É o caso da Lei Municipal 16.050/2014, que institui o Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo e, não obstante não se referir especificamente ao compartilhamento de bicicletas e patinetes elétricos, estabelece no seu art. 228 que os programas, ações e investimentos, públicos e privados, no Sistema de Mobilidade devem ser orientados segundo algumas diretrizes, dentre as quais priorizar os modos não motorizados e os modos compartilhados de transporte (inc. I); promover os modos não motorizados como meio de transporte urbano (inc. IV); e promover a integração entre os sistemas de transporte público coletivo e os não motorizados e entre estes e o transporte coletivo privado rotineiro de passageiros (inc. V).
Contudo, o plano diretor, no que se refere à mobilidade urbana, deve se articular fortemente com o respectivo plano municipal e este com o Plano Nacional de Mobilidade Urbana, instituído pela mencionada Lei 12.587/2012. Se o legislador federal, a quem compete primeiro cuidar do tema, ainda é revel em relação aos novos modais de transporte, não me parece que possa o Município de São Paulo formular normas com base apenas nas metas fixadas pela Lei Municipal 16.050/2014, sem que haja parâmetros legais para balizar como será sua atuação. Do contrário, seria o mesmo que admitir uma atuação indevida da Administração Pública no vácuo legislativo, em clara ofensa ao princípio da legalidade. Dessa forma, mesmo buscando fundamentação na competência constitucional do Município para elaboração de seu plano diretor, a imprescindibilidade de edição de lei federal é inescapável.
Sabe-se que o exercício de direitos individuais pode ser limitado pela Administração Pública, no exercício do poder de polícia, em benefício do interesse público, que diz respeito aos mais variados setores da sociedade, tais como segurança, moral, saúde, meio ambiente, defesa do consumidor, patrimônio cultural, propriedade. Sendo a liberdade econômica a regra, à Administração cabe limitá-la apenas quando houver expressa previsão legal, como corolário do Estado Democrático de Direito. É por isso que causa alguma estranheza a edição, no Município de São Paulo, do Decreto 58.750, de 13 de maio de 2019, que "dispõe sobre a regulamentação provisória do serviço de compartilhamento e do uso dos equipamentos de mobilidade individual autopropelidos, patinetes, ciclos e similares elétricos ou não, acionados por plataformas digitais", sem que haja uma prévia lei versando o tema.
De acordo com Maria Sylvia Zanella Di Pietro, o exercício do poder de polícia pode se dar apenas de duas formas: (a) mediante lei, com a criação de limitações administrativas, estabelecendo-se normas gerais e abstratas dirigidas indistintamente à coletividade, definindo-se infrações administrativas e respectivas sanções; ou (b) mediante ato administrativo e operação material de aplicação da lei ao caso concreto, compreendendo medidas preventivas e repressivas com a finalidade de coagir o infrator a cumprir a lei (2019, p. 155). Ora, a regulamentação do compartilhamento de bicicletas e patinetes elétricos na capital paulista demandava edição de normas de caráter geral e abstrato e, por isso, o uso do decreto para esse fim é de duvidosa legalidade.
Ademais, como se sabe, quando produz efeitos gerais, o decreto pode ser classificado como (a) regulamentar ou de execução, para fiel execução da lei, ou (b) independente ou autônomo, quando disciplina matéria não regulada em lei. A segunda espécie é restrita às hipóteses previstas no art. 84, VI, da Constituição Federal; a primeira é a amplamente utilizada pela Administração de todos os entes federativos. É intuitivo que um tema que reclama regulação mínima tem que constituir objeto de lei para que o Chefe do Executivo possa editar ato disciplinando sua execução. Não lhe compete, pois, inovar a ordem jurídica.
À míngua de uma lei federal expressa sobre o assunto, resta pouquíssimo espaço para um ato regulamentar. Dessa forma, cabia ao Decreto Municipal 58.750/2019 disciplinar a oferta e o uso dos novos modos de transporte apenas e tão-somente nos estritos limites da insatisfatória legislação vigente. Qualquer inovação da ordem jurídica, ainda que com a melhor das intenções, pode caracterizar ofensa ao princípio da legalidade. Vejamos:
De acordo com art. 2º, a exploração do serviço de compartilhamento, por meio de plataforma digital, de patinetes, ciclos e outros equipamentos, elétricos ou não, de mobilidade individual autopropelidos que utilizam o sistema viário urbano, depende de prévio cadastramento das empresas junto à Secretaria Municipal de Mobilidade e Transportes, que deverão comprovar sua estrutura operacional no Município e declarar o atendimento às regras estabelecidas no decreto e em portarias regulamentadoras. A estrutura operacional abrange funcionários, equipamentos a serem disponibilizados aos usuários, infraestrutura para recolher, fazer manutenção corretiva e preventiva dos equipamentos e atender os usuários em situação de acidente ou falha do equipamento, bem como local para recolhimento e guarda dos equipamentos. Os requisitos foram fixados pela Portaria 69/2019, da Secretaria Municipal de Mobilidade e Transportes.
Embora se mencione "cadastramento", o ato do Poder Público é uma típica licença, que "é o ato administrativo unilateral e vinculado pelo qual a Administração faculta àquele que preencha os requisitos legais o exercício de uma atividade" (Di Pietro, 2019, p. 265). Trata-se de ato vinculado, posto que cabe à autoridade apenas verificar, em cada caso concreto, o cumprimento de requisitos exigidos para a outorga administrativa; se positivo, a expedição do ato é de rigor. Se a atuação da Administração é norteada pelo princípio da legalidade, isto é, toda e qualquer atividade administrativa deve ser autorizada por lei, sob pena de incorrer em ilicitude (Carvalho Filho, 2018, p. 21), o prévio cadastramento exigido no art. 2º do Decreto Municipal 58.750/2019 parece afrontar o art. 37, caput, da Constituição Federal. Não se questiona a conveniência de se exigir o cumprimento de certos requisitos antes da exploração de uma atividade econômica com impactos à coletividade, mas somente uma lei - lei federal, no caso - poderia fazê-lo.
As obrigações das empresas responsáveis pela exploração do serviço estão listadas no art. 3º. A incidência do Código de Defesa do Consumidor fundamenta as obrigações de fornecer aos usuários ou condutores aplicativo/programa (software) para celulares com finalidade de utilizar o serviço (inc. II), disponibilizar no aplicativo oferecido ao usuário, manual de condução defensiva, contendo informações sobre a condução segura dos veículos (inc. IV), e manter a confidencialidade dos dados dos usuários (inc. VIII). Ao Prefeito, como administrador de bens municipais, na forma da Lei Orgânica do Município de São Paulo, pode estabelecer normas sobre seu uso pela coletividade, como obrigar a prestadora do serviço fornecer pontos de locação fixos e móveis que poderão ser identificados por meio do aplicativo ou sítio eletrônico (inc. III); recolher os equipamentos de mobilidade individual que estiverem estacionados irregularmente (inc. VI); e compartilhar os dados de geolocalização dos equipamentos com as Secretarias Municipais de Mobilidade e Transportes e das Subprefeituras (inc. X).
Por outro lado, parecem ser destituídas de fundamento legal ou constitucional as obrigações de promover campanhas educativas a respeito do correto uso e circulação dos equipamentos de mobilidade individual nas vias e logradouros públicos (inc. I); arcar com todos os danos decorrentes da prestação do serviço, ainda que gerados por caso fortuito, força maior, dolo ou culpa de usuários (inc. VII); e informar à Secretaria Municipal de Mobilidade e Transportes, mensalmente, o número de acidentes registrados no sistema (inc. XI). A primeira consiste em evidente adaptação da promoção de campanhas educativas de trânsito prevista no art. 14, IV, do Código de Trânsito Brasileiro e a cargo dos órgãos do Sistema Nacional de Trânsito, indelegável a terceiros. A segunda versa sobre direito civil, sobre o qual compete privativamente à União legislar, a teor do art. 22, I, da Constituição Federal. Já a terceira é uma ilegal delegação da obrigação de Estados e Distrito Federal, prevista no art. 22, IX, do Código de Trânsito Brasileiro, de coletar dados estatísticos e elaborar estudos sobre acidentes de trânsito e suas causas.
O art. 5º do Decreto Municipal 58.750/2019 preceitua que as reparações por eventuais danos, de qualquer natureza, ao Município, aos usuários ou terceiros, salvo em caso de culpa exclusiva destes, serão suportadas pela empresa prestadora, a qual deverá obedecer às normas e cautelas pertinentes, especialmente as relativas à segurança no trânsito, cabendo-lhe orientar os usuários sobre seu cumprimento. A norma nada mais é do que o direito do consumidor à informação adequada e clara (art. 6º, III, do Código de Defesa do Consumidor), devendo a empresa informar ao usuário o valor e as coberturas estipuladas na apólice do seguro contratado e demais esclarecimentos a respeito da responsabilidade civil.
As obrigação não recaem apenas sobre as empresas prestadoras de serviço, como também aos usuários, que respondem civil, penal e administrativamente por qualquer dano moral, físico ou material causado, na forma da legislação. O art. 9º, parágrafo único, estabelece que, na hipótese de uso irregular de equipamento, caberá a aplicação das penalidades previstas no Código de Trânsito Brasileiro, bem como a aplicação das demais medidas cabíveis. Entretanto, como se discorreu antes, o diploma legal não se adéqua perfeitamente aos novos veículos compartilhados e acionados por plataforma digital, sobretudo aos patinetes elétricos. É um dispositivo inócuo.
Por falta de previsão legal, não é possível o Prefeito, por meio de decreto, obrigar os usuários à utilização de capacete, ao uso individual de equipamentos e à vedação à condução de passageiros, animais ou cargas (art. 7º, §§ 3º e 4º), ressalvada a orientação a ser dada pela prestadora do serviço acerca da segurança do serviço, com fundamento no Código de Defesa do Consumidor. Quanto à permissão de utilização de tais veículos exclusivamente nas vias públicas, ciclovias e ciclofaixas, com velocidade máxima de 20 km/h e à vedação à circulação em vias com velocidade máxima permitida superior a 40 km/h e nas calçadas (art. 8º, §§ 1º e 3º), prima facie, encontram consonância com a Resolução 315/2009, do Conselho Nacional de Trânsito.
Um dos pontos mais graves do decreto diz respeito a sanções às empresas, que variam de apreensão dos equipamentos à multa de até R$ 20.000,00 por ocorrência (art. 11). Ocorre que a disposição afronta a jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Federal, que já pronunciou a necessária disciplina das infrações e sanções administrativas de modo subordinado ao princípio da reserva de lei: “A Administração Pública submete-se ao princípio da legalidade, sobrepondo-se ao regulamento a lei em sentido formal e material. (...) Inconstitucionalidade do Regulamento (...) que, ao prever a autoria da sanção pelo dirigente maior do Tribunal, fulminando a revisão do ato, versa limitação conflitante com a lei de regência.” (Plenário, MS 28.033, rel. Min. Marco Aurélio, j. 23.04.2014). Além do mais, submeter o poder sancionador ao princípio da legalidade é referendar também os princípios da segurança jurídica e da separação de poderes, de modo que resta inadmissível a expedição de regulamento pelo Executivo para esse fim.
Constata-se, pois, que o Decreto Municipal 58.750/2019 ultrapassou os limites legais e inovou a ordem jurídica, ocupando indevidamente um espaço reservado à lei. Em verdade, à revelia de uma lei federal que discipline o compartilhamento e o uso de bicicletas e patinetes elétricos, a regulamentação da matéria encontra óbices jurídicos incontornáveis, já que a ação do Município, mesmo tendente a alcançar as metas fixadas no seu plano diretor, tem de se calcar em normas federais acerca de trânsito e transporte. A omissão do legislador federal não legitima o Município a legislar em seu lugar, muito menos permite que a questão possa ser resolvida em nível infralegal.
Como última nota, a superação das dificuldades talvez passe pela quebra de certos paradigmas. Explicam Gustavo Justino de Oliveira e Cristiane Schwanka que "o direito administrativo foi originado com bases no modelo liberal de Estado, vigente a partir do século XIX, período em que a imperatividade (noção que expressava a autoridade do Estado frente aos indivíduos, decorrente da soberania) acabou por conformar os institutos e categorias desse ramo jurídico". Atualmente, fala-se em consensualismo no âmbito da Administração Pública, que consiste na atividade de consenso-negociação entre Poder Público e particulares. Segundo ainda os administrativistas, estimulam-se a prática de condutas privadas e a criação de soluções privadas de interesse público, atenuando-se as imposições unilaterais e autoritárias do Poder Público, que passa a conhecer melhor os problemas e as aspirações da sociedade. O paradigma bipolar Estado-cidadão dá lugar ao paradigma multipolar (2009, pp. 310-2).
Talvez seja a hora mais oportuna para a Administração abandonar sua característica de unilateralidade e agir de modo aberto e democrático, buscando atingir seus objetivos de modo compartilhado com particulares.
Referências bibliográficas:
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CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 32ª ed., São Paulo: Atlas, 2018.
COSTA, Nelson Nery. Direito municipal brasileiro. 6ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2014.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 32ª ed., São Paulo: Malheiros, 2019.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito municipal brasileiro. atual. Giovani da Silva Corralo, 18ª ed., São Paulo: Malheiros, 2017.
NUSDEO, Fábio. Curso de economia: introdução ao direito econômico. 10ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.
OLIVEIRA, Gustavo Justino; SCHWANKA, Cristiane. A administração consensual como a nova face da Administração Pública no século XXI: fundamentos dogmáticos, formas de expressão e instrumentos de ação. in: Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. v. 104, pp. 303-22, jan./dez. 2009.
SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. 8ª ed., São Paulo: Malheiros, 2018.