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Polícia e espiritualidade

28/07/2019 às 21:32
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Reflexões de um profissional de segurança pública sobre as influências positivas da religião, da religiosidade e da espiritualidade no trabalho policial.

O Estado de Direito, conquanto seja laico, não proíbe aquele que o serve de ter crenças religiosas pessoais. É um direito constitucional individual, inclusive. Nesse passo, “crer” é algo inerente à grata parte da humanidade, seja em menores ou maiores escalas. Aliás, sequer o ateísmo impede a expansão da consciência e da transcendência, pois, em essência, também faz uso de regras morais, apartadas do Divino, para pautar a existência.

Mas, no que diferem a religião, a religiosidade e a espiritualidade? Religião é a união de pessoas que professam a mesma fé e praticam os mesmos credos e ritos. São inúmeras espalhadas pelo mundo. Religiosidade é um vínculo com a vida, é um sentimento da espiritualidade. É o crer em algo. Já a espiritualidade, que é mais íntima ao ser, é a crença, sem ligação específica a este ou aquele dogma religioso, de que a vida tem um sentido além do meramente material, ou seja, de que ela vai além da transitoriamente exercida no plano físico.

Dito isso, parece certo que religiosidade e espiritualidade são conceitos próximos, pois dão ao ser humano um foco de moralidade que procura emprestar norte a sua existência física. Ter espiritualidade, assim, é ter fé em algo materialmente intangível, independente do nome que dermos a essa entidade.

Essa fé, por assim dizer, nos move e nos dá forças para enfrentarmos as dificuldades que a lei natural nos impõe, pois passamos a crer que nada é por acaso, e que, embora árdua, a nossa lida não revela a verdadeira vida. Dessa maneira, acreditar que atos positivos atraem resultados positivos e que atos negativos atraem resultados negativos (máxima da lei da “causa e do efeito”), ajuda o homem a melhor interagir com os demais, pois suas vivências serão reflexos dos seus atos. Seria a consagração da máxima cristã “ame ao teu próximo como a ti mesmo”; ou traduzindo: “faça o bem ao teu próximo como faríeis a ti próprio; não trate o teu igual como não gostaríeis de ser tratado”. Essa é uma regra não apenas religiosa, mas também, e principalmente, ética, pois não demanda crença ou credo.

Com referência ao tema em voga, é certo que poderão surgir inúmeros casos que demandam análise prática, a fim de entendermos os efeitos benéficos da espiritualidade – e não apenas da religião e da religiosidade – no dia a dia do trabalho na Polícia.

Conforme dissemos, o Estado é laico, ou seja, ele tem posição neutra no campo religioso. Como devemos então encarar a exposição de adornos religiosos em ambientes públicos? A resposta é simples. O Estado, isto é, o ente abstrato, é religiosamente imparcial. O servidor, ou seja, o ser, não. Por isso, dada a liberdade constitucional de crença particular a cada um, vemos com valorosa simpatia a manutenção de adornos nos espaços pessoais de atividade laborativa, os quais, em essência, reforçam a espiritualidade de quem os habita.

E não é só. Certos adornos, de maneira subliminar, envergam mensagens morais de cunho profundamente ético, pois orientam o profissional a melhor agir no âmbito das suas funções. Exemplo disso é a secular cruz cristã exposta em determinadas salas de servidores responsáveis pela aplicação da Lei e da Justiça.

A figura de Jesus na cruz, se examinada em essência, revela não apenas um apenado pelo tribuno Pilatos, mas sim, um dos maiores erros judiciários da história da humanidade, onde um homem sabidamente inocente foi condenado sem culpa. Esse mensagem deve servir de tento para quem opera no campo jurídico, a fim de que a consciência de quem julga seja sempre provocada pela mais severa das leis – a da causalidade dos efeitos –, pois a injustiça é uma das maiores máculas que uma pessoa inocente pode carregar.

E aquele que hoje julga – injustamente –, fatalmente será julgado da mesma forma. Diante disso, as imagens religiosas em geral tem um caráter meramente pacificador, pois remetem a crença no justo e na incessante busca do ser humano pela piedade.

Nessa linha de raciocínio, temos também as chamadas reuniões de fé, traduzidas em missas, cultos, mesas e encontros para o compartilhamento geral de energias positivas, mormente a quem delas necessita. A expressão “energia”, tal qual descrita, representa a força cósmica que inegavelmente rege a Universo, a qual muitos – inclusive este articulista – chamam de “Deus”. Se seguirmos o princípio de evangelização segundo o qual a reunião de duas ou três pessoas em nome de Deus – da “energia” – fará com que Ele – “energia” – esteja presente, isso poderá ser entendido como uma conjugação benéfica e espiritualmente positiva, o que jamais poderia ser objeto de censura.

A voluntariedade de quem participa dessas congregações reforça os laços necessários a otimizar não só a vida material, mas também o próprio trabalho em si, tornando o ambiente menos pesado e, por via de consequência, energicamente reforçado e repurificado.

Isso bem justifica a existência, em algumas instituições policiais, da figura do capelão, ministro religioso encarregado de prestar assistência religiosa necessária para a formação moral, ética e social dos servidores daquele meio. Em similar passo, não são raras as entidades religiosas que, historicamente, possuem laços com as forças policiais, como o militar romano Expedito – das milícias estaduais – e o arcanjo Miguel, consagrado padroeiro das Polícias do mundo por ato do Papa Pio XII.

Pois dito isso, a lida policial, típica em ambientes onde impera a violência, a miséria e a desigualdade, requer do seu operador um preparo minimamente espiritual, pois a troca de energias vitais – não apenas sob o ponto de vista religioso, mas também sob o da própria física humana – por vezes pode ser prejudicial. E o policial, por deter o monopólio da força, acaba por vezes sendo instado a atentar contra o seu próximo, tirando-lhe a vida. Embora essa ação seja aparentemente corriqueira no mundo turbulento em quem vivemos, ela, não raro, gera reflexos diretos e indiretos no campo espiritual.

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Falemos sobre a vida. A vida, em si, é eterna. O que padece, com a morte física, é apenas o corpo. Quando esse processo decorre naturalmente, dizemos que a Lei de Deus foi respeitada, e que a transição, para quem nela crê, foi pacífica. Já quando operada com violência, a frequência energética do corpo acaba abalada. Matar alguém, sob o ponto de vista religioso, é delito capital. E sob o ponto de vista humano, ao menos no Brasil, é crime punido com pena reclusiva. Mas e sob o aspecto da espiritualidade? Como devemos encarar o homicídio perpetrado em defesa própria ou de outrem?

O tema é apaixonante, e requer que o estudioso desarme o coração antes de se debruçar sobre ele. Sob a configuração dos que possuem espiritualidade, o corpo humano é uma espécie de templo. Sim, um templo, pois abriga um ente de preciosidade única, a obra direta daquela inexpugnável energia a qual fizemos alusão – Deus. É o templo físico que abriga o espírito. Pelas leis da religião, a morte é decorrência da vida física. E salvo o único gestor dessa energia – Deus – ninguém teria o condão de fazer cessá-la. Mas se esse templo físico também é sagrado, estaria o homem, ainda que defendendo a si ou a outrem, como o fazem os policiais, licenciado a extirpá-lo?

A resposta não é de difícil aferição, pois ela demanda uma singela equação. Se o meu corpo – o meu “templo” – é sagrado, eu devo zelar por ele. Negligenciar o meu “templo”, assim, seria um crime igual ou pior do que um ataque de morte. Portanto, se eu tiro a vida de alguém com o escopo de proteger aquele bem sagrado que eu recebi na concepção – e que compete a mim zelar sob pena de suicídio indireto –, fica claro que a minha ação foi, de fato, legítima.

A doutrina espírita, cujos princípios filosóficos são de difícil questionamento lógico, é clara sobre o assunto. O eminente pedagogo francês Hippolyte Léon Denizard Rivail, que ficou mundialmente conhecido sob o pseudônimo de Allan Kardec, enfrentou o tema ainda em 1857, no seu celebrado Le Livre des Esprits. Assim, sob a égide da questão, se Deus desculpa o assassínio em caso de legítima defesa, o professor compilou a resposta espiritual de que só a necessidade pode desculpá-lo. Ou seja, existe, assim, uma escusa absolutória para tal conduta, sempre que perpetrada de maneira nobre. Entretanto, se o agredido puder preservar a vida do oponente, deverá fazê-lo.

Ora, que regra é essa se não a já estampada nos Códigos Criminais do mundo em que vivemos? A legítima defesa, assim, embora traga a penalização de uma perda física, é legitimada pela necessidade do ato, sem o qual um dos templos – o meu ou de um inocente – também pereceria. Assim, podemos facilmente concluir que Deus, embora severo, não é cego para as ações humanas.

Enfim, além dessas, diversas outras seriam as condutas e ações a serem examinadas. Entretanto, este singelo artigo tem o único escopo de chamar a reflexão, a fim de constatarmos que a lida em ambientes violentos não pode jamais nos contaminar. O trabalho da Polícia é necessário para evitar o caos social e, se a força tiver que ser usada, ela o será, de maneira legítima e moderada, tal qual já prevê a legislação dos homens. A perda da vida é lamentável, mas se ação for necessária, ela será inevitável.

Quanto às congregações religiosas em ambientes públicos, também as vemos como legítimas, dada a própria natureza benéfica de tais reuniões, onde a união dos presentes gira em torno de um foco comum, positivo e de evolução coletiva.

Embora alguns considerem temas como religiosidade e espiritualidade meros exercícios filosóficos, é importante carregarmos, conosco, princípios de vida que nos ajudem a superar as dificuldades diárias, que não são poucas. Que nós, homens e mulheres de bem, jamais bebamos daquele copo de veneno que por vezes nos surgem às vistas, afinal, como bem sabemos, o veneno só faz mal para aqueles que o ingerem.

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Sobre o autor
Marcelo de Lima Lessa

Formado em Direito pela Faculdade Católica de Direito de Santos (1994). Delegado de Polícia no Estado de São Paulo (1996), professor concursado de “Gerenciamento de Crises” da Academia de Polícia “Dr. Coriolano Nogueira Cobra”. Ex-Escrivão de Polícia. Articulista nas áreas jurídica e de segurança pública. Graduado em "Criminal Intelligence" pelo corpo de instrução do Miami Dade Police Department, em "High Risk Police Patrol", pela Tactical Explosive Entry School, em "Controle e Resolução de Conflitos e Situações de Crise com Reféns" pelo Ministério da Justiça, em "Gerenciamento de Crises e Negociação de Reféns" pelo grupo de respostas a incidentes críticos do FBI - Federal Bureau of Investigation e em "Gerenciamento de Crises", "Uso Diferenciado da Força", "Técnicas e Tecnologias Não Letais de Atuação Policial" e "Aspectos Jurídicos da Abordagem Policial", pela Secretaria Nacional de Segurança Pública. Atuou no Grupo de Operações Especiais - GOE, no Grupo Especial de Resgate - GER e no Grupo Armado de Repressão a Roubos - GARRA, todos da Polícia Civil do Estado de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LESSA, Marcelo Lima. Polícia e espiritualidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5870, 28 jul. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/74251. Acesso em: 21 nov. 2024.

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