2. DA PROVA NO PROCESSO PENAL
2.1. Conceito, finalidade e objeto da prova
O Processo Penal visa, em síntese, a declaração da existência ou inexistência da responsabilidade criminal do réu e a conseqüente imposição de sanção, acaso se convença o magistrado da responsabilidade penal daquele indivíduo que se vê processado. Para tanto, deve o juiz convencer-se acerca da veracidade ou falsidade das afirmações feitas pelas partes (autor e réu) ao longo do processo, o que é feito por meio da prova.
O conceito de prova, portanto, envolve aspectos variados, não sendo unívoco. No campo jurídico, pode-se conceituar a prova como sendo o instrumento de que se valem as partes para demonstrar ao juiz elementos que o convençam acerca dos fatos controvertidos da causa.
Assim, a prova consiste, em síntese, na demonstração da existência ou veracidade daquilo que se alega em juízo 23. Neste contexto, Júlio Fabrini Mirabete 24 leciona que:
(...) ‘provar’ é produzir em estado de certeza, na consciência e na mente do juiz, para sua convicção, a respeito da existência ou inexistência de um fato, ou da verdade ou falsidade de uma imputação sobre uma situação de fato, que se considera de interesse para uma decisão judicial ou a solução de um processo.
Tanto assim é que o fim prático e finalidade primeira da prova é o convencimento do magistrado, já que este terá que solucionar a lide com base nos elementos trazidos aos autos pelas partes litigantes.
Desse modo, o objeto da prova é tudo aquilo que deverá ser demonstrado ao juiz, pelas partes, a fim de que adquira aquele o conhecimento necessário para solução da questão sob apreciação. É de se ressalvar que somente serão objeto de prova os fatos relevantes sobre os quais versa a lide, devendo fazer, a parte, prova dos fatos incontroversos, com bem ensina Paulo Rangel 25:
No processo penal os fatos, controvertidos ou não, necessitam ser provados, face os princípios da verdade real e do devido processo legal, pois, mesmo que o réu confesse todos os fatos narrados na denúncia, sua confissão não tem valor absoluto, devendo ser confrontada com os demais elementos de prova dos autos.
Ficam, porém, excluídos da atividade probatória os fatos axiomáticos ou intuitivos (fatos que por si mesmos são evidentes), os fatos notórios (por todos conhecidos) e os fatos presumidos (pelo fato de a lei presumi-los verdadeiros, não necessitam de prova). 26
2.2. Meios de Prova
Se as partes trarão ao magistrado os elementos que possibilitarão a este formar sua convicção acerca dos fatos alegados, terão elas que lançar mão dos chamados meios de prova.
Os meios de prova, por sua vez, hão de ser entendidos como todos aqueles meios utilizados pelo juiz para o conhecimento acerca da verdade dos fatos, estejam ou não previstos em lei. Isso porque o art. 332. do Código de Processo Civil assevera que todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, são hábeis a provar a verdade dos fatos da causa.
Os doutrinadores brasileiros, em sua quase totalidade, entendem que, ante o fato de viger, no Processo Penal, o princípio da verdade real, razão não há a permitir que se limitem os meios de prova utilizáveis, podendo todos, inclusive os inominados, ser usados com ampla liberdade. Mas, como já aduzido anteriormente, sabido é que o Processo Penal busca não a verdade, mas a certeza, de modo que a imputação penal recaia sobre o indivíduo que tenha cometido o ato ilícito, de vez que a verdade se faz impossível de ser percebida pelo julgador.
Referido princípio da liberdade probatória, a que se refere a doutrina, não é, porém, absoluto, uma vez que quando a lei exigir que a prova se faça deste ou daquele modo, é assim que a prova terá que ser feita, tal é o exemplo constante do artigo 155 do Código de Processo Penal, ao dispor que a prova quanto ao estado das pessoas será efetuada conforme estabelece a lei civil.
Configuram-se exemplos de meios de prova, a saber: o depoimento do ofendido, o depoimento da testemunha, a confissão, a inspeção judicial, o indício.
2.3. Princípios que regem a instrução probatória
Mirabete leciona 27 que a instrução probatória encontra-se regida por princípios que lhe são peculiares, a saber: auto-responsabilidade das partes, audiência contraditória, aquisição ou comunhão da prova, oralidade, concentração, publicidade e, afinal, princípio do livre convencimento motivado.
Pelo princípio da auto-responsabilidade das partes infere-se que estas assumirão as conseqüências de sua inatividade, erro ou negligência. Tanto é assim que se, por exemplo, deixar o autor de fazer prova da materialidade do fato ou de sua autoria, o juiz não terá outra perspectiva a não ser proferir sentença absolvendo o réu.
O princípio da audiência contraditória, ou simplesmente princípio do contraditório, reza que toda prova admite contraprova, fazendo-se necessária, após a produção de determinada prova, a oitiva da parte adversa.
Já o princípio da aquisição ou comunhão da prova estabelece que a prova produzida por uma das partes passará a pertencer ao processo e, assim, a todos os sujeitos processuais, como adverte Paulo Rangel 28:
O princípio da comunhão da prova é um consectário lógico dos princípios da verdade real e da igualdade das partes na relação jurídico processual, pois as partes, a fim de estabelecer a verdade histórica nos autos do processo, não abrem mão do meio de prova levado para os autos.
O princípio da oralidade, segundo o qual deve haver predominância da palavra falada em detrimento da escrita, traz como conseqüência o princípio da concentração, já que se busca concentrar toda produção probatória em audiência, sendo certo que vige também o princípio da publicidade, na medida em que públicos devem ser todos os atos processuais, à exceção das causas que tramitam em segredo de justiça.
Pelo princípio do livre convencimento motivado, tem-se que o magistrado julgará apreciando livremente as provas produzidas pelo autor e pelo réu, conforme estatui o art. 157. do Código de Processo Penal brasileiro, que traduz o sistema de avaliação da prova intitulado persuasão racional, como adiante se verá.
2.4. Sistemas de avaliação das provas
Por sistemas de avaliação das provas há de se entender o critério utilizado pelo magistrado para valorar as provas constantes dos autos, com vistas ao alcance da certeza e da busca do conhecimento dos fatos, dando-se, assim, a um juiz com jurisdição, que, entretanto, não sabe, mas precisa saber, o Poder de dizer o direito no caso concreto, com o escopo pacificador.
Três são os principais sistemas de avaliação de provas instituídos hodiernamente pelas legislações em todo mundo: o da certeza moral do juiz ou sistema da íntima convicção, o da certeza moral do legislador ou sistema da prova legal e o da persuasão racional ou livre convencimento motivado.
Pelo sistema da certeza moral do juiz ou íntima convicção, fica a cargo do magistrado decidir sobre o valor das provas produzidas, sua admissibilidade e seu carreamento aos autos. Este sistema estabelece que o juiz encontra-se livre para avaliar as provas, tornando-se, por isso mesmo, desnecessária a motivação de sua decisão. No ordenamento jurídico pátrio encontra-se resquício deste modo de apreciação da prova nos julgamentos efetuados perante o Tribunal do Júri, eis que os jurados (que integram o conselho de sentença) julgam por íntima convicção, sem que seja necessária fundamentação, além do sim ou do não dados como resposta aos quesitos formulados.
Já, quanto ao sistema da prova legal ou íntima convicção do legislador, é a própria lei que impõe ao julgador o valor a ser conferido a cada prova e institui hierarquia entre elas, não dando, assim, margem de escolha ao juiz. Exemplo deste sistema de avaliação de prova imperava durante a idade média, em que se atribuía mais valor ao depoimento de um padre que ao de um homem sem vivência religiosa, mais valor era dado ao depoimento de um homem em detrimento do testemunho de uma mulher etc.
O sistema, porém, hoje predominante e adotado pelo Código de Processo Penal, no artigo 157, é o sistema do livre convencimento motivado, também nominado sistema da persuasão racional. Aludido sistema estabelece que é permitido ao magistrado valorar livremente as provas produzidas pelas partes, sendo certo que todas as provas são relativas, até mesmo a confissão, não tendo, por isso mesmo, nenhuma delas valor decisivo ou maior prestígio sobre as demais.
Sobre o tema ora em apreço, salienta Mirabete 29 que "fica claro, porém, que o juiz está adstrito às provas carreadas aos autos, não podendo fundamentar qualquer decisão em elementos estranhos a eles: o que não está nos autos não está no mundo (...)".
Assim, o magistrado ficará restituído à sua própria consciência, eis que formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida, apenas devendo fundamentar sua decisão, exigência, inclusive, estatuída pela Constituição da República vigente, como reza o artigo 93, inciso IX.
2.5. O direito à prova e seus limites
Diz-se que o procedimento probatório configura o conjunto de atos praticados pelas partes com vistas à formação do convencimento do magistrado, tendendo, assim, a estabelecer a certeza dos fatos da lide 30. Este procedimento divide-se em quatro distintas fases, a saber: proposição das provas; admissão das provas; produção das provas e valoração das provas.
A proposição das provas é a indicação de provas, pelas partes, no instante da postulação em juízo. A admissão da prova ocorre quando o magistrado manifesta-se sobre a admissibilidade do meio de prova, para o que verifica se a prova proposta pela parte é legal ou, ainda que atípica, se é ela moralmente legítima, do contrário será inadmissível no processo, como a seguir será estudado. Por sua vez, a produção se dá quando as partes submetem as provas indicadas ao crivo do contraditório, de modo que se dá a valoração do material probatório pelas próprias partes litigantes. Já a valoração da prova encerra o momento final do procedimento probatório, de vez que o juiz valorará as provas na sentença, apreciando-as e motivando sua decisão.
A doutrina faz a importante observação, no que se refere ao problema da admissibilidade ou não da prova ilegal, seja prova ilícita ou ilegítima, no Processo Penal, como se evidencia a seguir, em comentário de Paulo Rangel:
(...) se houver admissibilidade de prova ilegal (ilícita ou ilegítima) a sentença não poderá valorá-la. Se o fizer, será nula de pleno direito. Pois, flagrante será o ERROR IN PROCEDENDO. Porém, se a valoração for de direito e se calcar em provas legais e moralmente legítimas e houver erro, será de julgamento (ERROR IN JUDICANDO), admitindo a reforma ou modificação da decisão. 31
Deste modo, tem-se que a liberdade da prova, esta entendida como o direito que têm as partes de provar, por qualquer meio idôneo e legítimo, os fatos que alegam, não é irrestrita, já que encontra limitações impostas pela Constituição e por leis infraconstitucionais. Destarte, embora o direito à prova seja assegurado constitucionalmente, observa-se que não é este direito absoluto.
Paulo Rangel assevera que esta limitação à liberdade probatória encontra fundamento quando a lei, ponderando valores, vem a considerar certos interesses de maior valor que a simples prova de determinado fato 32. Neste sentido, os princípios constitucionais de proteção e garantia da pessoa humana estariam a impedir que a busca da verdade se dê mediante meios que fossem reprováveis dentro de um Estado Democrático de Direito.
No Código de Processo Penal, pode-se arrolar como exemplo desses limites probatórios o impedimento para depor de pessoas que devam guardar segredo em razão de sua função, ofício, ministério ou profissão (norma insculpida no art. 207. do CPP).
Por isso mesmo que a prova não pode ser coletada de modo absoluto, extrapolando direitos e garantias fundamentais dos indivíduos. Assim, proíbe-se a utilização, no processo, das provas científicas que possam vir a atingir a integridade da pessoa humana, vedando-se, por essa razão, a utilização da hipnose, do detector de mentiras ou qualquer tipo de tortura, com vistas à obtenção da confissão do acusado.
Outro aspecto que também merece ser considerado diz respeito às regras morais, dentro das quais deve se reger o processo, a atividade do juiz e das partes litigantes. Tanto é assim que o artigo 332, do Código de Processo Civil, estatui que os meios de provas considerados moralmente legítimos, inobstante não descriminados em lei, serão hábeis a provar os fatos da causa.
No Processo Penal, ante o fato de estar em jogo a liberdade do acusado, torna-se ainda mais necessária a imposição de limites aos meios de prova. Assim, é certo que a observância de regras preestabelecidas e de um rito anteriormente determinado constitui, sem dúvida alguma, valor de garantia para o indivíduo que se vê processado.
O limite do direito à prova, como se verifica, é uma espécie de parâmetro do qual a atividade probatória não pode afastar-se, sob pena de ilicitude ou ilegalidade da prova colhida com infringência à limitação.
3. DA PROVA PROIBIDA NO PROCESSO PENAL
3.1. Prova ilegal e suas espécies: prova ilícita e prova ilegítima
Cabe aos doutrinadores a tarefa de definir prova ilícita, tarefa nem sempre das mais fáceis, já que os termos prova ilícita, prova ilegítima e prova obtida ilegalmente são freqüentemente utilizados como expressões sinônimas, quando, em verdade, definem situações análogas, contudo diversas.
A prova será proibida ou ilegal sempre que for obtida com violação à norma de natureza material ou com afronta à norma de natureza processual. Deste modo, pode a prova proibida ser ilícita ou ilegítima.
Será ilícita ou ilicitamente obtida a prova que contrariar normas de direito material, quer sejam normas de cunho constitucional quer sejam normas de caráter infraconstitucional. Configuram-se exemplos de provas ilícitas aquelas obtidas com violação de domicílio, sem ordem judicial, e a confissão obtida mediante tortura.
Por sua vez, as provas ilegítimas são aquelas colhidas com afronta a normas de direito processual, como são exemplos o interrogatório do réu menor sem que lhe seja nomeado curador e o laudo de exame de corpo de delito subscrito por único perito não oficial 33.
Com referência ao tema, Fernando de Almeida Pedroso leciona, com maestria, a lição abaixo transcrita:
(...) ilegal é a prova sempre que produzida com infração a normas de natureza processual ou material. É o gênero de que são espécies as provas adjetivadas de ilegítimas e ilícitas. Ao ato instrutório realizado com infração das disposições processuais dá-se a denominação de prova ilegítima, defluindo do próprio ordenamento processual as sanções ou conseqüências resultantes do não acatamento de determinada norma processual. (...) À prova obtida com infração das disposições de direito material rotula-se de ilícita. 34
Deste modo, são proibidas, em âmbito processual penal, tanto as provas que violem normas processuais (provas ilegítimas), quanto às provas que transgridam normas de direito material (provas ilícitas), sendo mais relevante o estudo destas últimas, uma vez que o ordenamento jurídico não prescreve as sanções ou conseqüências decorrentes de sua utilização indevida.
Diante de tal fato, surgiram inúmeras correntes doutrinárias que se manifestam sobre o assunto, de modo a pugnar pela admissibilidade ou inadmissibilidade da utilização da prova ilícita como fundamento da decisão do magistrado, como a seguir se demonstrará.
3.2. Postura a favor da admissibilidade da prova ilícita
Tem-se, assim, a corrente doutrinária que se manifesta pela admissibilidade processual da prova ilícita. Sustentam esses doutrinadores, como Hermenegildo de Souza Rego e Fernando de Almeida Pedroso, entre outros, que, se o fim precípuo do processo é a descoberta da verdade real, crível é que, se a prova ilegalmente obtida conseguir demonstrar ao juiz esta verdade, não pode ser ela extirpada do processo.
Em contrapartida, para que seja possível a utilização de tal prova, deve-se instaurar, contra aqueles que obtiveram-na de forma ilícita, a devida persecução penal, diante da infração de dispositivos penais e ante a violação de direitos do réu.
Corroborando o entendimento acima esposado, no sentido de permitir-se a utilização processual da prova colhida em desrespeito à norma de direito material, traz-se à colação o ensinamento que segue 35:
A corrente que defende em qualquer caso a possibilidade do emprego de provas obtidas por meios ilegítimos, afirma que a solução contra a ilicitude praticada pela parte não deve ser a proibição de que ela faça uso da prova assim obtida, mas sua sujeição ao correspondente processo criminal para punição pela prática do ilícito cometido na obtenção da prova (cf. HERMENEGILDO DE SOUZA REGO, Natureza das normas sobre prova, 155). Assim, diz esse autor, se um marido penetra clandestinamente na residência de alguém para documentar fotograficamente, ou por qualquer outro meio mecânico ou eletromagnético, a prática de um adultério de sua mulher, deverá responder pelo crime de invasão de domicílio, porém jamais ser impedido de comprovar em juízo o adultério, através da prova por tal forma obtida; e nem teria sentido, afirma, pretender-se que o juiz, depois de induvidosamente convencido da existência do adultério, demonstrado por meio dessa prova criminosamente obtida, devesse julgá-lo não provado e improcedente a ação de separação nele fundada.
Por conseqüência, aduzem esses juristas, que pugnam pela admissibilidade da prova ilícita, que a prova deste modo produzida poderia ser valorada pelo magistrado, apenas devendo-se punir pelo ilícito penal, civil ou administrativo cometido, quem a tivesse obtido de forma ilícita, sob o argumento de que melhor seria admitir uma prova obtida ilicitamente que deixar sem castigo um infrator 36.
Destarte, para a corrente ora em análise, não haveria que se falar em admissão indevida da prova ilícita ao processo, já que esses doutrinadores entendem que a prova ilícita poderia ser utilizada sem restrições, desde que fosse aplicada ao infrator da norma de direito material a devida punição.
Sem embargo, não parece ser esse o melhor posicionamento passível de adoção, na medida em que a própria Constituição da República estatui a proibição da utilização da prova obtida por meios ilícitos ao processo.
3.3. Postura contra a admissibilidade da prova ilícita
Sustenta outra parte da doutrina que a prova ilícita deve ser rejeitada, mesmo quando inexista norma processual que a considere inadmissível, como crê Luís Roberto Barroso, Frederico Marques, Maria Thereza Rocha de Assis Moura, entre outros.
Asseveram esses juristas que, em defesa do direito fundamental de liberdade corporal do réu, há que se impor um limite aos poderes do juiz, de modo que não sejam atingidos ou violados direitos individuais a pretexto da busca da verdade real ou mesmo do acertamento dessa verdade, sob pena de vulneração à garantia constitucional.
Luís Roberto Barroso defende, como bem ilustra Daniel Sarmento, a natureza absoluta e incontornável da vedação ao uso da prova ilícita, ante o argumento de que a própria Constituição, ao vedar o uso de referida prova, retirou a matéria da discricionariedade do julgador e vedou, assim, a possibilidade de ponderação de bens e valores em jogo. 37
Assim, ante o fato de a própria Constituição vigente vedar, de modo categórico, a admissão processual da prova obtida por meios ilícitos, não se faria possível permitir que sua produção se desse, ainda que se invocasse valores outros, como a dignidade da pessoa humana.
Esses doutrinadores crêem que "é preferível, destarte, fique um crime impune do que se outorgar eficácia à prova que o desvendou, quando coligida com violação dos direitos fundamentais do acusado." 38
O órgão pleno do Supremo Tribunal Federal, quando chamado a manifestar-se sobre o assunto, decidiu pela inadmissibilidade das provas obtidas por meios ilícitos, ainda que isso pudesse resultar em prejuízo para a apuração dos fatos, para o que se transcreve a ementa a seguir 39:
É indubitável que a prova ilícita, entre nós, não se reveste da necessária idoneidade jurídica como meio de formação do convencimento do julgador, razão pela qual deve ser desprezada, ainda que em prejuízo da apuração da verdade, no prol do ideal maior de um processo justo, condizente com o respeito devido a direitos e garantias fundamentais da pessoa humana, valor que sobreleva, em muito, ao que é representado pelo interesse da sociedade numa eficaz repressão aos delitos. É um pequeno preço que se paga por viver-se em Estado de Direito democrático. A justiça penal não se realiza a qualquer preço. Existem, na busca da verdade, limitações impostas por valores mais altos que não podem ser violados, ensina Heleno Fragoso, em trecho de sua obra Jurisprudência Criminal, transcrita pela defesa. A Constituição brasileira, no art. 5º, inc. LVI, com efeito, dispõe, a todas as letras, que são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos.
A maior parte da doutrina vem se posicionando neste sentido, ao estatuir a inadmissibilidade processual da prova ilícita, e isso se deve, ao menos em parte, por ser o conceito de ilicitude uno, incindível e indivisível, razão pela qual, existente um ilícito material, não pode o mesmo, sob o prisma processual, ser tido por indiferente ou ser aceita como válida a prova dele derivada.
Ao que tudo indica, porém, também este não se reveste do melhor posicionamento a ser defendido, eis que o intérprete ou aplicador da lei deve, ante a concretude do caso, ponderar os valores em jogo e verificar se é mesmo preferível que um crime fique impune a outorgar eficácia à prova que o desvendou, quando esta tiver sido colhida com infringência à norma de direito material ou processual.
3.4. Posturas intermediárias
Porém, a teoria, hoje dominante, da inadmissibilidade das provas colhidas com infringência às garantias constitucionais, tem sido atenuada por outra tendência, que adota o chamado critério da proporcionalidade (na Alemanha) ou da razoabilidade (nos Estados Unidos), pelo qual, em certos casos, é de se admitir a prova obtida de forma ilícita, tendo em vista a relevância do interesse público a ser protegido.
Cuida-se, portanto, de uma questão que demanda análise de proporcionalidade entre a infringência à norma e os valores que a produção da prova conseguirá proteger, por intermédio do processo.
Daniel Sarmento, em sua já referenciada obra A ponderação de interesses na Constituição Federal, traça a evolução da aplicação do princípio da proporcionalidade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, evidenciando que a aplicação de mencionado princípio teve origem estritamente voltada ao controle de constitucionalidade, mormente no que pertine a normas de cunho administrativo e tributário. 40 Gradualmente, o Supremo Tribunal Federal passou a admitir a ampliação da abrangência do princípio da proporcionalidade para também ser utilizado na análise das provas ilícitas no processo penal, como se denota adiante:
Prova: alegação de ilicitude da obtida mediante apreensão de documentos por agentes fiscais, em escritórios de empresa - compreendidos no alcance da garantia constitucional da inviolabilidade do domicílio - e de contaminação das provas daquela derivadas: tese substancialmente correta, prejudicada no caso, entretanto, pela ausência de qualquer prova de resistência dos acusados ou de seus prepostos ao ingresso dos fiscais nas dependências da empresa ou sequer de protesto imediato contra a diligência. 1. (...) 2. Objeção de princípio - em relação à qual houve reserva de Ministros do Tribunal - à tese aventada de que à garantia constitucional da inadmissibilidade da prova ilícita se possa opor, com o fim de dar-lhe prevalência em nome do princípio da proporcionalidade, o interesse público na eficácia da repressão penal em geral ou, em particular, na de determinados crimes: é que, aí, foi a Constituição mesma que ponderou os valores contrapostos e optou - em prejuízo, se necessário da eficácia da persecução criminal - pelos valores fundamentais, da dignidade humana, aos quais serve de salvaguarda a proscrição da prova ilícita: de qualquer sorte - salvo em casos extremos de necessidade inadiável e incontornável - a ponderação de quaisquer interesses constitucionais oponíveis à inviolabilidade do domicílio não compete a posteriori ao juiz do processo em que se pretenda introduzir ou valorizar a prova obtida na invasão ilícita, mas sim àquele a quem incumbe autorizar previamente a diligência.
(BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Processual Penal. Habeas Corpus nº 79512 / RJ, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j em 16.12.1999, Órgão Julgador: Tribunal Pleno, Publicação: DJ DATA-16-05-2003 PP-00092 EMENT VOL-02110-02 PP-00308)
Muito embora afirmem os adeptos desta corrente, como Daniel Sarmento e Luís Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho, que a prova colhida com infringência aos direitos fundamentais do homem é inconstitucional e, via de conseqüência, ineficaz como prova, concebem que referida proibição é abrandada para admitir a prova viciada, em caráter excepcional e em casos extremamente graves, desde que a sua obtenção e admissão puder ser considerada como a única forma, possível e razoável, de proteção a valores outros fundamentais, considerados mais urgentes na concreta avaliação do caso sub examine 41.
Por isso, a norma constitucional que veda, de modo categórico, a admissão processual da prova ilícita deve ser analisada à luz do princípio da proporcionalidade, de modo que ao juiz caberá, diante de cada caso em análise, "sopesar se outra norma, também constitucional, de ordem processual ou material, não supera em valor aquela que está sendo violada." 42
Apesar de a Constituição da República de 1988 não ter feito expressa alusão ao princípio da proporcionalidade, sustenta a doutrina, entre outros Daniel Sarmento e Ada Pellegrini Grinover, que referido princípio integra o direito constitucional brasileiro, de modo que pode ser aplicado pelo intérprete da Constituição.
Ocorre que críticas existem no que tange à aplicação do princípio da proporcionalidade, como bem evidencia Sérgio Demoro Hamilton 43:
A objeção que se costuma fazer ao princípio da proporcionalidade reside no subjetivismo que gera, pondo nas mãos do juiz um poder absoluto de apreciação sobre qual valor deve preponderar, fazendo surgir um "concretismo" perigoso, com graves riscos para a segurança individual.
É certo que riscos existem, mas deve haver, porém, critérios balizadores da atuação do juiz, e igualmente certo é que a aplicação do princípio da proporcionalidade não deve se dar em qualquer caso, mas apenas nos casos de maior gravidade (diante daquelas situações em que a vantagem de sua aplicação supere a desvantagem de sua não aplicação, no dizer de Willis Santiago Guerra Filho 44).
Não deixa de ser, igualmente, uma manifestação do princípio da proporcionalidade, como leciona Ada Pellegrini Grinover, "a possibilidade de utilização, no processo penal, da prova favorável ao acusado, ainda que colhida com infringência a direitos fundamentais seus ou de terceiros." 45
Assim, quando a prova, aparentemente ilícita, for colhida pelo próprio acusado, já se vem entendendo que a ilicitude de tal conduta é eliminada por causas legais, como a legítima defesa, de molde a excluir a antijuridicidade.
Deste modo, entende a doutrina pátria 46 que, se o réu utiliza a prova tida por ilícita em seu favor, para se ver absolvido de determinada imputação legal, razão não há para se falar em ilicitude da prova, eis que permitida sua produção. Igualmente, descabe invocar a proibição da utilização da prova ilícita quando a prova deste modo obtida representar o único meio de que dispõe o réu para comprovar cabalmente sua inocência, passível de ser utilizada, portanto, em prol da defesa 47.
É certo considerar que a prova ilícita, quando favorável ao réu, vem sendo admitida com certa tranqüilidade, em homenagem ao direito de defesa e ao princípio, que norteia o processo penal, do favor rei, para o que se mitiga o rigor da inadmissão absoluta da prova obtida de modo ilícito. Isso é permitido porque o acusado estaria em verdadeiro estado de necessidade, vendo-se, então, "obrigado ao uso da prova ilícita em defesa de sua liberdade." 48
Ocorre que atualmente já se ventila a questão de a prova obtida de modo ilícito poder ser utilizada mesmo que contra o réu, em casos em que a vítima é que estaria agindo em estado de necessidade ou em legítima defesa, sua ou de outrem. Referido entendimento merece ser levado em conta, na medida em que o ordenamento jurídico está a proteger, não apenas direitos individuais do réu, mas também de outras pessoas que se encontrarem em situação merecedora de agasalho legal. É o exemplo da escuta telefônica, sem os requisitos legais, levada a cabo por marido de vítima de seqüestro, mediante a qual se descobre o paradeiro da vítima e, de modo inequívoco e imune a dúvidas, a prática de infração penal. Acaso o marido da vítima venha a utilizar esta prova em juízo, estará ele acobertado por uma causa de exclusão da ilicitude, de modo que poderá ser utilizada, ainda que contrária ao réu.
Luís Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho assevera que deva sempre preponderar o interesse jurídico mais valioso em questão, crendo ser mais valioso o direito à liberdade ou à ampla defesa do réu que o direito à privacidade de um terceiro. Partindo de tal premissa, conclui o referenciado autor que o acusado, em campo penal, pode produzir a prova considerada ilícita, salientando que, ao assim agir, estará acobertado por causas de exclusão de criminalidade como a legítima defesa ou o estado de necessidade. 49
Parece que esta se traduz na melhor posição a ser defendida, eis que, entre a condenação de um inocente e o uso da prova ilícita que pode levar à absolvição do réu, é induvidoso que sobreleva, como valor maior, a liberdade individual.
3.5. Prova ilícita por derivação
Divergente questão que vem sendo, de há muito, suscitada pela doutrina e jurisprudência pátrias diz respeito à admissão ou não da prova derivada diretamente da prova ilicitamente obtida.
Criada pelo direito norte-americano, como bem expõe Paulo Rangel 50, a teoria dos frutos da árvore envenenada (fruits of the poisonous tree) assevera que os vícios de uma prova ilicitamente obtida estendem-se às provas obtidas de forma lícita, mas que dependam diretamente da prova ilícita anterior.
Aqueles que, como Maria Thereza Rocha de Assis Moura e Maria Gilmaise de Oliveira Mendes, preconizam a inadmissibilidade processual da prova ilícita, estendem aludida proibição às provas ilícitas por derivação, visto que estas também sofreram máculas para sua obtenção.
Exemplo clássico citado pela doutrina 51 é o da confissão obtida mediante tortura, em que o acusado indica onde se encontra o produto do crime, que vem a ser regularmente apreendido.
Atualmente, prevalece o entendimento de que, se a prova ilícita não foi absolutamente determinante para a descoberta da prova derivada, ou se esta derivar de fonte própria, não fica contaminada por nenhum vício, podendo, deste modo, ser produzida em juízo, por não ter sofrido contaminação. Neste sentido tem sido a manifestação do Supremo Tribunal Federal, em cujo acórdão adiante transcrito enfrenta a questão em análise:
HABEAS-CORPUS. TRÁFICO DE ENTORPECENTES. ALEGAÇÃO DE AUSÊNCIA DE PROVA DA MATERIALIDADE DO DELITO E DE DIFERENÇA QUANTITATIVA ENTRE A COCAÍNA APREENDIDA E A SUBMETIDA À PERÍCIA; ROMPIMENTO DO LACRE. IMPOSSIBILIDADE, NO CASO, DE SE CONCEDER A ORDEM EX-OFFÍCIO EM FACE DE UMA DAS PROVAS SER ILÍCITA: ESCUTA TELEFÔNICA. 1. A materialidade do delito está em meio a um conjunto farto e denso de provas existentes nos autos, cujo reexame aprofundado não se compatibiliza com rito especial e sumário do habeas-corpus. 2. O rompimento do lacre do material entorpecente ocorreu no momento de sua apreensão, como comprovado nos autos, do qual não consta qualquer indício verossímil de ocorrência de fraude. 3. A petição de habeas-corpus não menciona a questão da escuta telefônica inconstitucional nem a teoria dos frutos da árvore envenenada; além disto, não se colhe dos autos que esta escuta tenha sido a primeira ou única prova contra o paciente e nem que existe liqüidez da ilegalidade ou abuso de poder, que conduza à concessão da ordem ex-offício por esta razão. 4. Habeas-corpus conhecido, mas indeferido por maioria.
(BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Processual Penal. Habeas Corpus nº 73101 / SP - SAO PAULO, Rel. Min. Marco Aurélio, Rel. Acórdão Min. Maurício Correa, j. em 26.03.1996, Órgão Julgador: Segunda Turma, Publicação: DJ DATA-08-11-96 PP-43201 EMENT VOL-01849-02 PP-00312.)
Necessário é reconhecer que a Constituição da República de 1988, embora tenha vedado a admissão da prova ilícita, não se manifestou sobre a prova ilícita por derivação, deixando divergente questão a ser debatida pela doutrina e jurisprudência.
Paulo Rangel e Hélio Bastos Tornaghi afirmam que, ante o fato de a Constituição da República não tratar especificamente da prova derivada, deve-se entender como permitida sua produção, asseverando que "a prova obtida, licitamente, através daquela colhida com infringência à lei, é admissível no processo, pois onde a lei (Constituição) não distingue não cabe ao intérprete distinguir." 52
Por sua vez, o eminente jurista Daniel Sarmento tem posição contrária, manifestando-se pela inadmissibilidade de utilização da prova ilícita por derivação, em quaisquer circunstâncias, parecendo assistir razão a este doutrinador, já que
se os elementos probatórios derivados das provas ilícitas fossem admitidos, isso representaria um incentivo para a continuidade da colheita destas provas e um estímulo ao desrespeito dos direitos fundamentais no processo. 53
Paulo Rangel 54 afirma que o Supremo Tribunal Federal encontrou-se dividido sobre a questão da admissibilidade ou não da prova ilícita por derivação. No início, quando chamado a se manifestar, foi favorável à produção deste meio de prova, entendendo pela não contaminação e, portanto, validade dos atos subseqüentes ao seu ingresso nos autos. Porém, em julgados mais recentes, manifesta-se pelo impedimento da produção de referida prova, para o que se transcreve ementa de acórdão elucidativo da questão:
Prova ilícita. Escuta telefônica mediante autorização judicial. Afirmação pela maioria da exigência da lei, até agora não editada, para que, "nas hipóteses e na forma" por ela estabelecidas, possa o juiz, nos termos do art. 5º, XII, da Constituição, autorizar a interceptação de comunicação telefônica para fins de investigação criminal; não obstante, indeferimento inicial do habeas corpus pela soma dos votos, no total de seis, que, ou recusaram a tese da contaminação das provas decorrentes da escuta telefônica, indevidamente autorizada, ou entenderam ser impossível, na via processual do habeas corpus, verificar a existência de provas livres da contaminação e suficientes a sustentar a condenação questionada; nulidade da primeira decisão, dada a participação decisiva, no julgamento, de ministro impedido (MS 21.750, 24.11.93, Velloso); conseqüente renovação do julgamento, no qual se deferiu a ordem pela prevalência dos cinco votos vencidos no anterior, no sentido de que a ilicitude da interceptação telefônica – à falta de lei que, nos termos constitucionais venha a discipliná-la e viabilizá-la – contaminou, no caso, as demais provas, todas oriundas, direta ou indiretamente, das informações obtidas na escuta (fruits of the poisonous tree), nas quais se fundou a condenação do paciente.
(BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Processual Penal. Habeas Corpus nº 69.912., j.em 16.12.1993 – Tribunal Pleno. Rel. Min. Sepúlveda Pertence. Publicação DJ. Data 25.03.1994/pp.06012. Ement. Vol.01738-01. pp.00112.)
Nesta esteira de pensamento, aqueles que pugnam pela inadmissibilidade da prova ilícita por derivação entendem, como conseqüência de sua indevida utilização, pela aplicação do art. 573, § 1º do Código de Processo Penal brasileiro, que trata da extensão da nulidade dos atos processuais, cominando, também, sanção de nulidade aos atos processuais dependentes do ato nulo, devendo tanto a prova ilícita originária, quanto a prova dela diretamente dependente, serem extirpadas do processo.
Assim, pode-se concluir que as provas ilícitas por derivação são constitucionalmente inadmissíveis no Direito brasileiro, ante o fato de o Supremo Tribunal Federal ter acatado a teoria dos frutos da árvore envenenada em seus mais recentes julgados, entendendo pela contaminação de todas as provas que derivarem diretamente da prova obtida por meios ilícitos.