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A prova proibida no processo penal:

as conseqüências de sua utilização

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18/10/2005 às 00:00
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CAPÍTULO 4 – O DIREITO BRASILEIRO DIANTE DA PROVA ILÍCITA

            4.1. A prova ilícita antes da Constituição Federal de 1988

            A Constituição da República de 1988 foi a primeira a estatuir a inadmissibilidade processual das provas obtidas por meios ilícitos. É certo, porém, que divergente questão já vinha sendo de há muito debatida pela doutrina e jurisprudência pátrias.

            Assim, mesmo antes da promulgação da Constituição-cidadã muito já se discutia acerca da inadmissibilidade processual da prova ilícita. Ada Pellegrini Grinover ensina que as Mesas de Processo Penal, atividade ligada ao Departamento de Direito Processual da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, sobre o assunto em tela editaram três súmulas, antes da elaboração da Constituição de 1988, asseverando pela inadmissibilidade da prova ilícita, porém permitindo sua utilização, quando em benefício da defesa, súmulas estas que ora são transcritas:

            Súmula nº 48

– Denominam-se ilícitas as provas colhidas com infringência a normas e princípios de direito material.

            Súmula nº 49 – São processualmente inadmissíveis as provas ilícitas que infringem normas e princípios constitucionais, ainda quando forem relevantes e pertinentes, e mesmo sem cominação processual expressa.

            Súmula nº 50 – Podem ser utilizadas no processo penal as provas ilicitamente colhidas, que beneficiem a defesa. [55]

            Mencionada autora leciona, ainda, que na evolução da jurisprudência brasileira se fez possível notar duas tendências: num primeiro momento, admitindo-se a produção da prova ilícita e, num momento posterior, posicionamento inadmitindo a produção e o ingresso de tal prova no processo. Continua a autora:

            (...) assim, de julgados mais antigos, que admitiam como prova até mesmo a confissão extorquida, passando por decisões que aceitavam a prova colhida por gravações telefônicas clandestinas, chegou-se à consolidação da tendência contrária, que já se havia delineado com relação às buscas domiciliares e apreensões feitas ao arrepio da lei. [56]

            A primeira decisão de que se tem notícia, que veio a afastar prova tida por ilícita do processo, data de 11 de novembro de 1977, na qual o Supremo Tribunal Federal determinou o desentranhamento de fitas gravadas, fruto de interceptação telefônica feita pelo marido, a fim de comprovar o adultério de sua mulher, com o fito de instruir processo civil de separação judicial, cuja ementa abaixo é transcrita, de lavra do Ministro Xavier de Albuquerque:

            PROVA. PROVA CIVIL. GRAVAÇÃO CLANDESTINA DE LIGAÇÕES TELEFÔNICAS. AÇÃO DE DESQUITE. Prova civil. Gravação magnética, feita clandestinamente pelo marido, de ligações telefônicas da mulher. Inadmissibilidade de sua utilização em processo judicial, por não ser meio legal nem moralmente legítimo (art. 332 CPC). Recurso extraordinário conhecido e provido. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Processual Civil. RE 85439/RJ, Rel. Min. Xavier de Albuquerque, j. em 11.11.1977, Órgão Julgador: Segunda Turma, Publicação: DJ DATA-02-12-77 PG-RTJ VOL-00084-02 PP-00609 Indexação da Revista Trimestral do STF.)

            A segunda decisão pela inadmissão processual da prova ilícita também foi fruto de processo civil, datada de 28 de junho de 1984, igualmente caso de interceptação telefônica clandestina, ao que o Supremo Tribunal Federal determinou o desentranhamento, dos autos, da gravação respectiva. [57] Até que em 18 de dezembro de 1986 foi o Supremo Tribunal Federal chamado a manifestar-se pelo trancamento de Inquérito Policial baseado em interceptações telefônicas feitas por particulares, de modo ilícito, sendo que esta configurou a primeira decisão do Pretório Excelso inadmitindo a prova colhida de modo ilícito no processo penal. [58]

            A norma invocada pela doutrina e jurisprudência, antes do advento da Constituição de 1988, para impedir o ingresso da prova ilícita no processo encontra-se disposta no artigo 332, do Código de Processo Civil brasileiro, com o seguinte teor: "Todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, são hábeis a provar a verdade dos fatos em que se funda a ação ou a defesa."

            Referido dispositivo, ante o fato de também ter aplicação em sede penal, possibilitaria às partes lançar mão de qualquer meio de prova, ainda que não estabelecido pelo ordenamento jurídico, havendo de ser ressaltado que os meios de prova inominados ou atípicos haveriam de ser moralmente legítimos. Este já era o entendimento doutrinário e jurisprudencial dominante mesmo antes do surgimento da Constituição de 1988, de modo que se entendia pela proibição da prova, em sede processual penal, que contrariasse os preceitos morais dominantes. Assim, o Supremo Tribunal Federal, chamado a manifestar-se sobre a questão, veio a repudiar as interceptações telefônicas clandestinas, quer em matéria cível, quer em âmbito penal, como já demonstrado acima. [59]

            Embora majoritariamente se pugnasse pela inadmissibilidade processual da prova obtida por meio ilícito, havia quem defendesse que referida prova pudesse ser utilizada em âmbito processual. Neste sentido, Yussef Cahali e Washington de Barros Monteiro [60] sustentavam ser irrelevante o meio pelo qual a prova fora colhida, de modo que deveria o juiz criminal acolhê-la no processo como eventual indício da prática de ato ilícito. Esse também era o entendimento do Ministro do Supremo Tribunal Federal Cordeiro Guerra [61], que admitia a confissão extrajudicial, ainda que obtida sob coação, embora pugnasse pela conseqüente punição do autor do ilícito, com a justificativa de que não acreditava que entre os direitos humanos se encontre o direito de assegurar a impunidade dos próprios crimes, ainda que provados por outro modo nos autos, só porque o agente da autoridade se excedeu no cumprimento do dever e deva ser responsabilizado.

            Em idêntico sentido posicionava-se outro Ministro do Supremo Tribunal Federal, Raphael de Barros Monteiro, quando, em 1951, sustentava que os Tribunais deveriam julgar a causa em conformidade com as provas apresentadas pelas partes, não cabendo ao magistrado investigar se foram as provas bem ou mal colhidas, pois isso seria extrapolar suas atribuições processuais. [62]

            Do que foi exposto, é de se verificar que mesmo antes do advento da Constituição de 1988 já pairava dissenso doutrinário e jurisprudencial acerca da admissibilidade ou não da prova ilícita ao processo, sendo certo que prevalecia o entendimento, que posteriormente veio a ser consagrado pela Carta Maior ora vigente, propugnando pela inadmissão da prova obtida por meios ilícitos ao processo.

            4.2. A prova ilícita após a Constituição Federal de 1988

            Hodiernamente, a vigente Lei Maior, no art. 5º, inciso LVI, obstou o ingresso nos autos do processo das provas obtidas por meios ilícitos, pondo ponto final, de modo apenas aparente, como já se viu, nas infindáveis discussões que antes eram travadas.

            É verdade, porém, que a própria Constituição da República de 1988, no art. 5º, inciso XII, excepciona seu texto, estatuindo que

            (...) é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.

            Deste modo, apenas para fins de investigação criminal ou instrução probatória penal é de se admitir a quebra do sigilo das comunicações telefônicas, desde que haja ordem judicial e adequação aos ditames da Lei 9.296, de 24.07.1996, que cuida das interceptações telefônicas.

            Verdade é também que até a edição da referida Lei 9.296, entendia a jurisprudência afigurar-se impossível a admissão de interceptação telefônica, mesmo que autorizada judicialmente para fins de investigação criminal, em face da ausência de norma regulamentadora, para o que se traz à colação o julgado a seguir, que aborda a questão ora em análise:

            HABEAS CORPUS

. ACUSAÇÃO VAZADA EM FLAGRANTE DE DELITO VIABILIZADO EXCLUSIVAMENTE POR MEIO DE OPERAÇÃO DE ESCUTA TELEFÔNICA, MEDIANTE AUTORIZAÇÃO JUDICIAL. PROVA ILÍCITA. AUSÊNCIA DE LEGISLAÇÃO REGULAMENTADORA. ART. 5º, XII, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. FRUITS OF THE POISONOUS TREE. O Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos, assentou entendimento no sentido de que sem a edição de lei definidora das hipóteses e da forma indicada no art. 5º, inc. XII, da Constituição, não pode o juiz autorizar a interceptação da comunicação telefônica para fins de investigação criminal. Assentou, ainda, que a ilicitude da interceptação telefônica – à falta da lei que, nos termos do referido dispositivo, venha a discipliná-la e viabilizá-la – contamina outros elementos probatórios eventualmente coligidos, oriundos, direta ou indiretamente, das informações obtidas na escuta. Habeas Corpus concedido. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Processual Penal. Habeas Corpus nº 74113/SP, j. em 28.06.1996, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ilmar Galvão.)

            Assim, é de se notar que após o advento da Lei Maior, consolidou-se na jurisprudência a tese da proibição do ingresso, no processo – seja cível, seja criminal, na medida em que a Constituição Federal não distingue – da prova ilicitamente obtida, por força de norma constitucional expressa neste sentido. Certo é também que a jurisprudência tem entendido que se a prova ilícita não foi a que deu azo à decisão da causa, havendo outras provas não viciadas no contexto probatório, merece ser rechaçada a tese da inadmissibilidade da prova ilícita, conforme se infere do julgado adiante mencionado, que traduz a posição do Supremo Tribunal Federal acerca da questão em apreço:

            RECURSO DE HABEAS CORPUS. CRIMES SOCIETÁRIOS. SONEGAÇÃO FISCAL. PROVA ILÍCITA: VIOLAÇÃO DE SIGILO BANCÁRIO. COEXISTÊNCIA DE PROVA LÍCITA E AUTÔNOMA. INÉPCIA DA DENÚNCIA: AUSÊNCIA DE CARACTERIZAÇÃO. 1. A prova ilícita, caracterizada pela violação de sigilo bancário sem autorização judicial, não sendo a única mencionada na denúncia, não compromete a validade das demais provas que, por ela não contaminadas e delas não decorrentes, integram o conjunto probatório. 2. (...) 3. Não estando a denúncia respaldada exclusivamente em provas obtidas por meios ilícitos, que devem ser desentranhadas dos autos, não há porque declarar-se a sua inépcia porquanto remanesce prova lícita e autônoma, não contaminada pelo vício de inconstitucionalidade (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Processual Penal. Recurso em Habeas Corpus nº 74807 / MT, Rel. Min. Maurício Correa, j. em 22.04.1997, Segunda Turma, Publicação: DJ DATA-20-06-97 PP-28507 EMENT VOL-01874-04 PP-00663.)

            No mesmo diapasão tem sido o pronunciamento do Egrégio Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, quando, chamado a manifestar-se sobre o tema, entendeu que se a prova tida por ilícita não for a única do contexto probatório, tampouco a decisiva para a solução da causa, descabe falar em prejuízo para defesa, como se denota da ementa abaixo trazida, da lavra do eminente Desembargador José Carlos Murta Ribeiro:

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            EXTORSÃO MEDIANTE SEQÜESTRO. MORTE. OCULTAÇÃO DE CADÁVER. GRAVAÇÃO DE CONVERSAS TELEFÔNICAS. ALEGAÇÃO DE PROVA ILÍCITA. REJEIÇÃO. PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE. PRINCÍPIO DA IDENTIDADE FÍSICA DO JUIZ. INAPLICABILIDADE. DEPOIMENTO DE POLICIAL. PROVA TESTEMUNHAL. PROVA DA AUTORIA. RECURSO DESPROVIDO. Extorsão mediante seqüestro seguida de morte e ocultação de cadáver. Fatos típicos dos artigos 159 par. 3. do Código Penal, na forma da Lei 8.072/90 e 211 do Código Penal; e ainda, artigo 62, I deste mesmo diploma legal quanto ao 1º. Apelante Vinicius. Prova suficiente para a condenação. Recursos defensivos aos quais se nega provimento, confirmando-se integralmente a sentença apelada, rejeitadas as preliminares argüidas. Preliminarmente, de se rejeitar as questões prévias suscitadas por inocorrentes. Inocorre vulneração à Lei 9.296/90 - vício na aquisição da prova ou seja: prova ilícita - se tal prova não é única no conjunto probatório e nem foi decisiva na decisão da causa, daí a ausência de prejuízo. Certo, outrossim, que ante a natureza do crime de extorsão mediante seqüestro - crime formal e complexo - se justificava pelo princípio da razoabilidade a escuta telefônica e gravações levadas a efeito como preleciona o ilustre Gomes Filho em sua obra "DIREITO À PROVA NO PROCESSO PENAL", Edição 1997. E, ainda, segura e pacificada a Jurisprudência de nossos Tribunais Superiores, inclusive do S.T.F., que ocorrendo a permissão de um dos interlocutores - no caso em tela o pai da vítima -, inexiste ilicitude a invalidar tal prova. Por igual, inexiste quaisquer das nulidades apontadas se, diversamente do alegado no Processo Penal Brasileiro não vige o princípio da identidade física do Juiz e, nem a liberação dos bens apreendidos tem qualquer co-relação com a produção da robusta prova acusatória realizada sob o crivo do contraditório legal e constitucional. (...) "In casu", impossível se falar de precariedade da prova porque estruturada, em sua maior parte, na palavra dos policiais envolvidos na exitosa descoberta da autoria. E, isto porque, como se sabe, a prova policial tem o mesmo valor que qualquer outra, desde que harmônica e coerente com os demais elementos da prova trazidos aos autos, como ocorre na espécie. Outrossim, no caso em tela, até a prova testemunhal de defesa na palavra dos jornalistas que presenciaram a reconstituição e a localização do corpo da jovem e infeliz vítima é desfavorável aos Apelantes. Recursos voluntários defensivos, pois, aos quais se nega provimento. (BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Processual Penal. Apelação Criminal nº 2000.050.03148, j. em 06.03.2001, Rel. José Carlos Murta Ribeiro, Segunda Câmara Criminal)

            Leciona Antonio Scarance Fernandes que várias são as inviolabilidades postas como garantias pelo legislador constituinte, a fim de que sejam resguardados direitos fundamentais da pessoa humana, a saber: inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra, da imagem (art. 5º, inciso XII), do domicílio (art. 5º, XI), inviolabilidade das comunicações em geral e dos dados (art. 5º, XIII). É certo ressalvar que a Constituição de 1988 também protege o indivíduo contra a tortura ou tratamento desumano ou degradante (art. 5º, III), além de amparar o preso em sua integridade física e psíquica (art. 5º, XLIX) [63]. Por isso, se a prova colhida vier a infringir quaisquer das garantias acima elencadas, será ela inconstitucional e imprestável como prova, ante a violação a direito fundamental assegurado de modo expresso pelo legislador constituinte.

            Já se disse que, com o escopo de pôr fim ao dissenso doutrinário e jurisprudencial que imperava antes do advento da Constituição de 1988, o legislador constituinte vedou, de maneira categórica, a admissibilidade processual da prova ilícita, mas se sabe, porém, que inúmeras questões referentes a este assunto ainda se colocam como pontos a serem dirimidos.

            Convém esclarecer, desde logo, que, embora tenha sido modificada recentemente a composição do quadro de Ministros que integram o Supremo Tribunal Federal, permanece o entendimento que assevera pela proibição de utilização da prova obtida por meios ilícitos, tal como se aduzia anteriormente.

            É certo, entretanto, que a doutrina e a própria jurisprudência pátrias vêm acatando a tese de aceitação da teoria da proporcionalidade, como já demonstrado neste trabalho monográfico, de modo que, quando a ofensa a determinada vedação constitucional é feita para proteção de um valor maior garantido pela Constituição, é de se permitir a utilização da prova, mesmo que colhida em afronta a norma de direito material ou processual.

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Sobre a autora
Maíra Silva da Fonseca Ramos

Procuradora da Fazenda Nacional desde 2007.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RAMOS, Maíra Silva Fonseca. A prova proibida no processo penal:: as conseqüências de sua utilização. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 837, 18 out. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7432. Acesso em: 29 mar. 2024.

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