Começo o presente artigo advertindo os leitores que não pretendo definir, ou redefinir, ao longo deste opúsculo, o que seja Política, ou o que seja Poder Político. Ultrapassa em muito o escopo deste modesto trabalho realizar algo que grandes pensadores tentaram fazer ao longo dos últimos dois mil e quatrocentos anos com muito mais maestria e lucidez que o autor destas linhas.
Pretendo, tão-somente, partilhar com os leitores algumas reflexões pessoais acerca da Política e do Poder Político, reflexões estas vivenciadas ao longo da minha carreira de professor de História e como bacharel em Direito.
As expressões Política e Poder Político são termos que denotam significados distintos ao longo do tempo e do espaço. Na verdade, ambos os vocábulos apresentaram, e ainda apresentam nos dias de hoje, conceitos distintos através dos tempos, conceitos esses que geraram, e ainda geram, embates teóricos acirrados e questionamentos filosóficos e sócio-históricos ácidos entre os especialistas, tanto no âmbito da Ciência do Direito, quanto no âmbito da Ciência Política e da História Política.
Via de regra, tais embates e questionamentos ainda se alicerçam em modelos conceituais abstratos totalmente desvinculados da realidade fática da Sociedade, na medida em que tais modelos conceituais embutem componentes ideológicos e/ou não-científicos os mais diversos (religiosos, culturais, metafísicos, etc.) que não possuem uma comprovação empírica em termos históricos e sociológicos. (1)
Acrescente-se a situação acima descrita, o fato de que os diversos movimentos políticos radicais existentes ao longo do século XX d. C. (tanto os movimentos políticos de direita, quanto os movimentos políticos de esquerda) produziram, não raro, uma visão depreciativa da Política e do Poder Político, visão essa que acabou por gerar mais incertezas conceituais e/ou doutrinárias no tocante a legitimidade da Política e do Poder Político, em especial enquanto fatores condicionantes das mudanças sociais e econômicas e elemento de cunho meta-ético da motivação dos agentes políticos.
Um outro aspecto importante a se considerar, no tocante à Política e ao Poder Político, diz respeito ao vínculo que muitos especialistas em Política ou pensadores fazem entre a Política e o Poder Político com a administração pública estatal e o governo.
Deveras, uma análise mais apurada acerca das concepções da Política e do Poder Político acaba por demonstrar que muitos conceitos doutrinários e/ou formulações empíricas acerca da Política e do Poder Político, tanto os conceitos passados, quanto as concepções atuais, correlacionam ambos fenômenos à administração pública estatal e a uma tipologia das formas de governo, correlação esta que, freqüentemente, ao longo da História, se materializa numa relação de subordinação da Política e do Poder Político a essa ou aquela forma de governo. No entanto, é imperioso lembrar que a Política e o Poder Político não se confundem, em absoluto, com a administração pública estatal e as formas de governo. Ambas - administração pública estatal e forma de governo - se referem a um único complexo de atividades públicas sobrepostas e conexas, complexo este que se desenvolve de acordo com as condições existentes em cada coletividade política - Estado - ao longo de vários séculos.
Apesar das atividades da administração pública estatal e do governo, ao menos nas sociedades modernas surgidas no alvorecer da Idade Moderna (século XV d. C.), serem legalmente vinculadas, isto é, estarem submetidas às normas legais insertas no ordenamento jurídico vigente oriundas do titular da Soberania Estatal, o qual, por sua vez, vincula-se ao exercício regular e ordenado do Poder Político existente, não é possível aceitar, evidentemente, a idéia de que a administração pública estatal e o governo sejam parte do Poder Político stricto sensu.
In casu, a administração pública estatal vincula-se à operacionalização das decisões governamentais no tocante às atividades públicas voltadas para o atendimento das necessidades da Sociedade e do cidadão, enquanto o governo está voltado para direção e controle político da administração pública estatal em si, direção e controle esses delimitados pelo ordenamento legal vigente e co-validados pelos costumes e tradições meta-jurídicos existentes no seio da coletividade. (2)
A Ciência Política Clássica identifica a Política e o Poder Político com a coercibilidade do Estado-Nação, identificação essa que, não raro, se dá com fundamento nas premissas éticas e jurídicas do Direito Jusnaturalista Clássico.
Vislumbro que não podemos relacionar mecanicamente a Política e o Poder Político com a função coercitiva do Estado, em especial quanto à relação entre a implementação das decisões políticas e o Direito, relação essa tão cara ao Liberalismo do "laissez-faire" e ao Marxismo clássico de meados do século XIX e da primeira metade do século XX. De fato, por mais paradoxal que possa parecer a primeira vista, e apesar de suas posturas ideológicas diametralmente opostas, tanto o Liberalismo Clássico, quanto o Marxismo (em especial na sua vertente ortodoxa), encaram a Política e o Poder Político a partir da realização dos objetivos políticos, sociais e econômicos de uma dada coletividade social ao longo de um certo período de tempo, objetivos esses operacionalizados mediante a coercibilidade estatal expressa em leis promulgadas pelo Estado.
Apesar de reconhecer que o monopólio do uso da força é ainda, nos dias atuais, um dos elementos definidores do Estado-Nação contemporâneo, não me parecer correto, tanto no plano histórico, quanto no âmbito das modernas Ciência Política e da Ciência do Direito, estender, de maneira mecânica, à Política e ao Poder Político o fenômeno da coercibilidade estatal. (3) Com efeito, os fundamentos da Política e do Poder Político, sobretudo os seus fundamentos éticos e sócio-culturais, não se confundem, em termos históricos e antropológicos, com a coercibilidade estatal expressa na estrutura jurídica.
Em outras palavras, e em suma, vejo que o estudo abstrato e genérico acerca das formas de dominação política e das atividades relativas ao exercício do Poder Político, sob a ótica estreita da coercibilidade estatal expressa no respectivo ordenamento jurídico, não pode ser mais o foco central da moderna Ciência Política e da História Política, e, muito menos, da Ciência do Direito.
O próprio vocábulo "Estado" precisa de uma urgente redefinição conceitual e funcional, eis que, nas sociedades industriais contemporâneas, tanto a Política, quanto o Poder Político, dizem respeito menos às diversas modalidades de aquisição e de manutenção de influência e controle político de grupos sociais sobre outros grupos e mais às várias espécies da alocação e das interações dos valores políticos existentes no seio da Sociedade, alocação e interações estas que estão vinculadas à produção e alteração de normas legais existentes em cada sociedade em cada momento histórico.
Nesse diapasão, não podemos mais definir o Estado Nacional, neste alvorecer do Terceiro Milênio, unicamente a partir de uma visão teórica estreita, em termos jurídicos, em função do aparato administrativo governamental e da sua função básica, qual seja a de "prover o bem comum" e, por via de conseqüência, preservar a paz social. Tal definição é por demais inadequada, sobretudo em termos históricos e políticos, tendo em vista o desenvolvimento cada vez mais acelerado das sociedades de massas pós-industrial que submergem os interesses e as necessidades do cidadão comum numa teia de relações sociais e econômicas difusas e por demais complexas para serem moldadas e controladas conforme os métodos tradicionais de controle político e mecanismos de interação social existentes no Estado Nacional clássico (partidos políticos, processos eleitorais, etc.).
De fato, qualquer análise histórica e sociológica, por mais superficial que seja, irá constatar que o Estado nunca existiu, e jamais existirá, por si só. O Estado Nacional contemporâneo pós-industrial é um ente social e político artificial que existe para cumprir não só a função supracitada (a de "prover o bem comum" e preservar a paz social), como também, e principalmente, para ser o agente indutor das transformações sociais, culturais e econômicas de interesse da Sociedade como um todo e não unicamente dos interesses desse ou daquele grupo social.
Nesses termos, destaco que me incluo dentre aqueles que ainda vêem o Povo, e não o Estado, como o sujeito da Política e, conforme os ensinamentos do ilustre cientista político e jurista italiano Norberto Bobbio, impende destacar que o processo de publicização do Poder Político induzido pelo avanço da Democracia em vários países nas últimas décadas não ocorre de maneira linear, ou seja, tal processo de publicização do Poder Político está sempre sujeito a marchas e contra-marchas de diversos tipos.
Entendo que atualmente as discussões doutrinárias acerca da Política e do Poder Político devem estar centralizadas, sobretudo, em torno de quatro questões fundamentais, a saber: 1ª.)quais são as funções básicas da Política e do Poder Político frente aos reais interesses do cidadão comum e da moderna sociedade de massas pós-industrial; 2ª.)quais são os processos sociais, políticos e econômicos pelos quais tais funções são desempenhadas, isto é, quais são os mecanismos de tomada das decisões governamentais, quem as toma, como são feitas e como são efetivamente levadas a cabo; e 3ª.)o grau de legitimidade dos mecanismos de governo e dos agentes políticos em face não só das múltiplas e sempre cambiantes demandas da sociedade contemporânea pós-industrial e do cidadão enquanto indivíduo, como também, e sobretudo, tendo em vista as reais opções de atuação disponíveis aos agentes políticos responsáveis pelo destino do Estado (notadamente os membros do Poder Legislativo e os administradores públicos do alto escalão do governo) e das elites políticas não-governamentais; 4ª.)qual o grau de eficácia e validade das normas legais frente aos valores sociais, éticos e culturais da Sociedade, sobretudo em função do grau de validade dos procedimentos de tomada de decisão política dos diversos atores componentes das elites políticas quando do processo de criação e modificação das normas legais.
Nestes termos, o cientista social contemporâneo (historiador, operador do Direito, cientista político, etc.) deve procurar tentar definir e analisar a Política e o Poder Político menos a partir das definições teleológicas clássicas (definições essas que se pautam nos fins perseguidos pela Política e pelo Poder Político) e mais através da atual função econômico-social das normas de conduta existentes no seio da coletividade social e do grau de legitimação social e ética da Política e do Poder Político.
Enfim, tendo em vista as questões elencadas e os parâmetros estabelecidos nos dois parágrafos precedentes, defendo a idéia de que o cientista social, quando estuda a Política e o Poder Político nas sociedades de massa pós-industrial, deve fazê-lo não só com base nas relações de comando e obediência alicerçadas exclusivamente nas normas legais advindas do Estado, como também, e, sobretudo, com base nas condições ou fatores que conduzem os indivíduos, e os grupos sociais, a estabelecerem compromissos ou formas de coordenação política segundo os padrões sociais, econômicos ou culturais vigentes na coletividade.
Importa destacar que a Ciência Política Clássica se alicerça em conceitos abstratos e genéricos carentes de verificabilidade objetiva no âmbito sociológico e histórico, sendo, portanto, desprovida de uma real capacidade de demonstração analítica acerca das reais funções da Política e do Poder Político no mundo contemporâneo.
Assim sendo, e em contraposição, a moderna Ciência Política deve procurar teorizar acerca da Política e do Poder Político com base em premissas sujeitas à verificação empírica e livre, o mais possível, de qualquer engajamento ideológico e/ou metafísico explícito voltado para a justificação ou defesa deste ou daquele regime político. No meu modesto entendimento, tal é o principal desafio da moderna Ciência Política.
A par do desafio supramencionado, o cientista político e, por extensão, os demais cientistas sociais (historiador, operador do Direito, psicólogo social, etc.) que se debruçam sobre a Política e o Poder Político, deve sempre ter em mente que, na Política, existe pouco espaço de manobra para atuação das assim chamadas forças impessoais de caráter geral que anulam ou enfraquecem o livre arbítrio individual, sobretudo se levarmos em consideração que o Homem, ainda que sujeito as mais diversas influências e caprichos externos a si, não é um mero autômato irracional desprovido de força intelectual e de um conjunto de parâmetros éticos e sociais.
De fato, sendo a Política um complexo de atividades humanas exercidas numa dada dimensão geo-espacial (o território) de uma coletividade cultural (a nação), atividades essas voltadas para a satisfação dos interesses e necessidades humanas, quer individuais, quer coletivas, é de todo impossível reduzi-la a um mero subproduto de forças (naturais ou sociais) que estão fora do controle humano.
Em decorrência de tudo o que acima dissertei e defendi, e à guisa de conclusão deste artigo, entendo que está na hora dos cientistas sociais (em especial o operador do Direito, o historiador e o cientista político), arquitetarem uma teoria acerca da Política e do Poder Político, teoria esta baseada na realidade sócio-histórica empírica no sentido de que a teoria em tela (sobretudo quanto aos conceitos políticos e sociológicos fundantes, os pressupostos lógicos-formais e o estabelecimento das pré-condições sociais, culturais e econômicas essências à gênese e desenvolvimento dos diversos elementos componentes da Política e do Poder Político) deve estar alicerçada num conjunto de axiomas e teoremas comprováveis mediante a pesquisa histórica e o método analítico da Sociologia contemporânea, método esse que deve ser conjugado, na medida do possível, com o uso da Estatística.
Ao postular a necessidade de se construir uma nova teoria acerca da Política e do Poder Político não se pretende aqui descartar, evidentemente, o muito que já foi feito nos últimos dois mil e quatrocentos anos por inúmeros pensadores de escol, mas tão-somente advertir para a necessidade de se estabelecer novos parâmetros que constituam uma base crítica-reflexiva, desprovida de abstrações axiológicas estranhas às Ciências Sociais como um todo, e à História e à Ciência do Direito em particular, para, desta maneira, poder-se ter uma melhor compreensão acerca da Política e do Poder Político. Ressalto que quando falo que a nova teoria deve estar desprovida de abstrações axiológicas estranhas às Ciências Sociais quero dizer que o primado da Política sobre as demais formas de poder social existentes no seio da coletividade social não-estatal (= Sociedade Civil) não é um dado mecânico e/ou axiomático e, portanto, o primado da Política no âmbito das múltiplas interações Estado-Sociedade não é mais ou menos importante que os demais fatos sociais decorrentes da aludidas interações, mas apenas mais um fenômeno social dentre muitos outros que deve, e pode, ser analisado cientificamente.
É inegável que a edificação de uma nova teoria, como a ora preconizada, é uma tarefa de longo prazo que exige um trabalho árduo, preciso e multidisciplinar. Entretanto, vejo que a tarefa em questão deve ser levada a cabo com determinação, a fim de que as Ciências Sociais de um modo geral, e a Ciência do Direito em particular, realmente possam merecer o qualificativo de Ciência.
Notas
(1)Os conceitos clássicos acerca da Política e do Poder Político, tanto as definições formuladas na Antiguidade e Idade Média, quanto aqueles conceitos propostos durante a Idade Moderna (séculos XV-XVIII da Era Cristã), carecem de uma comprovação empírica consistente. Os conceitos em epígrafe, via de regra, ficam mais no plano do "dever-ser" e menos no plano do "que efetivamente é".
(2)Na esteira do magistério do eminente jurista Wilson Accioly e do emérito cientista político e jurista Norberto Bobbio, é importante discernir que Poder Político e autoridade política se distinguem, constituindo-se em fenômenos políticos distintos. Enquanto o primeiro diz respeito à capacidade efetiva do exercício da atividade política, no sentido amplo da expressão, o segundo necessariamente se vincula a faculdade do exercício do Poder Político por uma pessoa, ou conjunto de pessoas, no âmbito de um determinado sistema jurídico-político existente.
(3)Nesse sentido, importa destacar que os antigos gregos já tinham a clara percepção de que o sustentáculo da politeia (palavra grega que deu origem à expressão Política na grande maioria dos idiomas ocidentais contemporâneos), residia principalmente no consenso geral da maioria da comunidade de cidadãos (a eklessia), e não no uso, ou ameaça do uso, da força estatal em si.
Na verdade, a visão política dos gregos acerca da cidadania e da responsabilidade do indivíduo para com o Estado se apoiava, principalmente, mas não exclusivamente, na noção da integração voluntária do cidadão ao processo de tomada de decisões políticas e na sua respectiva execução responsável por parte daqueles cidadãos encarregados da administração política da cidade-estado (a polis). A coerção do Estado, ainda que reconhecida e aceita como algo necessário, ocupava um lugar de menor importância na escala de valores políticos da Civilização Grega Clássica, pelo menos no âmbito daquelas cidades-estados que, a partir do século V a. C., adotaram o regime democrático (v.g., Atenas).
Referências bibliográficas e fontes de consulta
ACCIOLI, Wilson: Teoria Geral do Estado. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1985.
BAALBAKI, Sérgio. O Estado, o povo e a soberania. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, nº. 759, 02 de agosto de 2005. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/doutrina/texto.asp?id=7045>. Acesso em 01 de agosto de 2005.
BOBBIO, Norberto et all.: Dicionário de Política. 10ª. ed. 2 volumes. Coordenação da tradução de João Ferreira. Brasília: Ed. UNB, 1997.
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FONSECA, Ricardo Marcelo (org.): Repensando a Teoria do Estado. Belo Horizonte: Ed. Fórum, 2004.