Sumário: Introdução – O Estado Democrático de Direito – O papel do Poder Judiciário na aplicação dos preceitos constitucionais – Considerações Finais – Referências Bibliográficas.
Introdução
Como ensina Jorge Miranda [01], existem aspectos partilháveis entre a força jurídica das normas programáticas e as normas não exeqüíveis por si mesmas. Por início, o simples fato de constarem tais normas na Constituição já indica serem nortes para a interpretação das demais normas, contribuindo, através da analogia, para a integração de lacunas. [02]
Apesar de possuírem, a prima face, sentido prescritivo, adquirem tais normas sentido proibitivo ou negativo, ou seja, proíbem a emissão de normas legais contrárias e proíbem a prática de comportamentos que tendam a impedir a produção de ato por elas imposto.
Outrossim, fixam as normas constitucionais critérios e diretrizes para o legislador ordinário acerca da produção legiferante, sob pena de inconstitucionalidade material por desvio de poder, em havendo desrespeito às diretrizes e aos critérios estabelecidos na norma.
Por outra banda, as normas programáticas determinam também a inconstitucionalidade das normas legais anteriores discrepantes, porém, somente a partir do momento "constitucionalmente possível" recebem exeqüibilidade, verificando-se nesse momento a inconstitucionalidade por omissão.
Entretanto, é necessário lembrar, que apesar das classificações diferenciadas das espécies de normas constitucionais, é certo dizer que se tratam de normas que gozam de status diferenciado, resultante da própria supremacia da Constituição, possuindo, assim, lugar prioritário no ápice da pirâmide normativa, aproximando-se da norma fundamental, consoante os ensinamentos de Kelsen, não indicando, portanto, meros preceitos programáticos.
Ocorre que em realidade, caberia, nesta exata esteira, aos Poderes constituídos, em destaque o Poder Legislativo, a tarefa de implementar as políticas públicas definidas no texto constitucional. Tratando-se o Estado Brasileiro de um Estado Democrático de Direito, tendo uma carta constitucional com forte viés social, ou seja, possuidora de um texto que prioriza as políticas sociais e demandas públicas, o parlamento, em tese, é que reuniria melhores condições de implementação das normas constitucionais, ou, melhor dizendo, de seu conteúdo.
Tal revela-se de extrema importância, eis que a função e o papel do Estado, nos dias atuais, interage com o desenvolvimento econômico e social. Nesse contexto as políticas públicas são delineadas em face da urbanização, do trabalho assalariado, enfim, face das necessidades sociais que se apresentam.
Todavia, a "redemocratização" brasileira ocorreu somente com o texto constitucional de 1988, enfeixando os mais diversos direitos prestacionais e garantias individuais. O constituinte "pós-redemocratização", nesta senda, avança e outorga direitos sociais, entretanto sem o devido respaldo econômico e na realidade do desenvolvimento central e periférico do Brasil.
No intuito de implementar as políticas públicas, sob a égide do Estado Democrático de Direito, repita-se, possuiria o Parlamento, em tese, melhores condições para complementá-las e implementá-las, no sentido de concretizar o texto constitucional.
Tal assertiva, como ensina Lenio Luis Streck apud Ferrajoli, perpassa ao fato de que,
até cinqüenta anos atrás não existia nem no pensamento jurídico e nem no sentido comum a idéia de uma lei acerca das leis, isto é, de um Direito do Direito, sendo inconcebível que uma lei pudesse vincular a lei, sendo a lei a única fonte, e, portanto, onipresente, do Direito: seja fosse concebida como vontade do soberano, seja fosse legitimada como expressão da maioria parlamentar. De maneira que o legislador, nas melhores das hipóteses, o parlamento, era a sua vez concebido como onipresente; e onipotente era o parlamento em conseqüência da política, da qual o Direito era o produto e, ao mesmo tempo, o instrumento. [04]
Nesse diapasão, aos Poderes Executivo e Judiciário caberia a tarefa de concretizar no mundo dos fatos os comandos normativos editados pelo Poder Legislativo, sendo verdadeiros instrumentos do mesmo, pois, uma vez definidas tarefas e programas, cumpriria aos poderes constituídos envidar esforços para sua máxima realização, cada qual em seu âmbito de atuação.
Tal paradigma se altera, contudo, como sustém Ferrajoli, com a afirmação ou reconhecimento da Constituição como norma suprema - raciocínio ao qual se filia o presente estudo - à qual todas as demais estariam subordinadas rigidamente.
Vale dizer, como as normas programas e princípios constitucionais destinam-se a orientar a produção normativa dos poderes constituídos, sendo "standards" para a atuação desses poderes, ou seja, vetores que dão coerência a todo o ordenamento jurídico, faz-se necessário ao Poder Judiciário uma atuação ativa na concretização das normas constitucionais, levando-o, como refere Lenio Luis Streck, "a transcender as funções de checks and balances mediante uma atuação que leve em conta a perspectiva de que os valores constitucionais têm precedência mesmo contra textos legislativos produzidos por maiorias eventuais". [05]
Tendo em vista a máxima concretização da Constituição Federal e sua força normativa, para que as normas-princípio e programas sejam aplicados a casos concretos, faz-se necessária, como referido, uma postura diferenciada pelo Poder Judiciário, na figura do Estado-Juiz, no que tange à realização concretizadora da Constituição Federal, no intuito de solucionar o caso concreto; transfere-se, portanto, a área de tensão do Poder Legislativo para o Poder Judiciário, ocorrência que pretendemos analisar no presente trabalho.
Contudo, preliminarmente, enfrentaremos o sentido que se dá à real concepção da expressão Estado Democrático de Direito, a fins de que se entenda como é possível, se é que assim se pode afirmar, atribuir-se ao Poder Judiciário algumas funções que vão além da simples declaração do direito, colocando-o no "front" da concretização das normas constitucionais vigentes.
1. O Estado Democrático de Direito
A conformação política e jurídica do Estado de Direito é uma realidade histórica remontando seu surgimento a formação dos Estados-Nação. As noções de Estado liberal, Estado social e Estado Democrático de Direito designam, cada uma delas, um determinado momento evolutivo dessa formação político-jurídico-social em que se qualifica sua formação pela preponderância de determinada característica.
Segundo o modelo do constitucionalismo liberal, não compete ao Estado guiar a sociedade civil para a realização de fins comuns. A grande, senão única, tarefa estatal consiste em propiciar, sob a égide de leis gerais, constantes e uniformes, condições de segurança – física e jurídica – à vida individual. Compete a cada indivíduo fixar suas finalidades de vida, no respeito às leis asseguradoras de uma convivência harmoniosa de escolhas individuais. [06]
Assim, no Estado liberal-individualista de direito pode-se dizer que a nota característica é a garantia da obediência à vontade da lei e não mais a vontade do soberano, sendo usual identificar como prevalente a função legislativa do Estado.
Já a legitimidade do Estado social contemporâneo passou a ser a capacidade de realizar, com ou sem a participação ativa da sociedade – o que representa o mais novo critério de sua qualidade democrática -, certos objetivos predeterminados [07], sendo a nota característica do Estado social a distribuição.
O papel do Estado social, o qual não se concretizou no Brasil, seria o de promover a integração da sociedade nacional, que no caso brasileiro deveria se dar tanto no nível social quanto no federal, com a transformação das estruturas econômicas e sociais [08], o que acabou por não se operar eis que, segundo ensina Lenio Luis Streck, a função intervencionista do Estado serviu apenas para aumentar ainda mais as desigualdades sociais, bem como pelo fato de que parcela expressiva dos mínimos direitos individuais e sociais não foram cumpridas, dentre outras causas. [09]
Observa-se, então, que a concepção de cidadania passa do plano civil e político para a esfera social, transformando-se o direito em instrumento para alcançar metas sociais concretas. O Estado social deixa de ser formal, neutro e individualista para transformar-se em Estado material de Direito, qualificado por uma pretensão de realização da justiça social. [10]
No Estado democrático de direito acrescenta-se um qualitativo em relação ao Estado Social, que é o objetivo de oportunizar o aprofundamento da questão da igualdade. Assim, o ente público deverá desempenhar papel transformador da realidade, incidindo este novo qualificativo sobre a atividade do Estado [11].
O Estado Democrático de Direito nesse sentido tem a característica de ultrapassar não só a formulação do Estado liberal de direito, como também a do Estado social de direito, impondo à ordem jurídica e à atividade estatal um conteúdo utópico de transformação da realidade. [12]
Observa-se, nesse sentido, como referido, um deslocamento do centro de decisões do legislativo e do executivo para o Judiciário, na medida em que este se constitui como uma nova via a ser utilizada na busca pela realização dos direitos inscritos no texto constitucional, seja através do controle de constitucionalidade, seja pelas possibilidades de utilização de outros instrumentos processuais disponibilizados pelo constituinte [13], como, p.ex., o mandado de injunção, a argüição de descumprimento de preceito fundamental, etc.
Mesmo que tais preceitos fundamentais, os quais apontam para o acesso à justiça, continuem, como refere Lenio Luis Streck [14], ineficazes, até porque o Poder Judiciário ainda está preparado somente para lidar com conflitos interindividuais, próprios, como aponta o mesmo autor, de um modelo liberal-individualista, não estando, por isso, apto ao enfrentamento dos problemas decorrentes da transindividualidade, própria do novo modelo advindo do Estado Democrático de Direito previsto na Constituição de 1988, cumpre ao Poder Judiciário, como veremos, assumir definitivamente uma nova postura, atuando em coerência com os princípios da justiça estabelecidos pela Carta de 1988, alterando-se, como bem refere Ferrajoli, em raciocínio parafraseado por Lenio Luis Streck, a natureza da função jurisdicional e a relação entre o Juiz e a Lei, que já não é, como no paradigma juspositivista, sujeição à letra da lei qualquer que seja o seu significado, senão que uma sujeição à Constituição. [15]
2. O papel do Poder Judiciário na aplicação dos preceitos constitucionais
Justificando o até agora exposto, podemos afirmar que a concretização dos valores constitucionais não é atividade exclusiva do Poder Legislativo. Por contraponto, para grande parte da doutrina existente acerca do tema, tal assertiva não implica autorização ao Poder Judiciário, ou melhor, ao Juiz, para substituir o parlamento em sua função típica legislativa.
Nesta mesma senda, o Poder Judiciário, a Justiça Constitucional em sentido lato, realizaria a intermediação concretizadora das normas constitucionais em seu âmbito de atuação, qual seja, solucionando a lide posta, dizendo o direito ao caso concreto. Primando pela força normativa da constituição e sob a égide da efetiva concretização da norma, o papel do jurista, indiscutivelmente, deve ser o de atribuir máxima efetividade às Normas Constitucionais.
Nessa esteira, José Luis Bolzan de Morais, ao analisar a temática relativa aos Direitos Humanos, refere: "a uma norma constitucional tem de ser atribuído o sentido que mais eficácia lhe dê; a cada norma constitucional é preciso conferir, ligada a todas as outras normas, o máximo de capacidade de regulamentação". [16]
Tal se coaduna à famigerada discussão entre o sentido procedimental e o sentido substancial da Constituição. Para Ferrajoli, citado por Lenio Luis Streck,
a constitucionalização rígida dos direitos fundamentais – impondo obrigações e proibições aos poderes públicos – tem produzido efetivamente na democracia uma dimensão "substancial", que se acrescenta à tradicional dimensão "política", meramente "formal" ou "procedimental". Com efeito, se as normas formais da Constituição – aquelas que disciplinam a organização dos Poderes Públicos – garantem a dimensão formal da democracia política, que tem relação com o "quem" e o "como" das decisões, suas normas substantivas – as que estabelecem os princípios e os direitos fundamentais – garantem o que se pode chamar de dimensão material da "democracia substancial", uma vez que se refere ao conteúdo que não pode ser decidido e ao que deve ser decidido por qualquer maioria, obrigando a legislação, sob pena de invalidade, a respeitar os direitos fundamentais e os demais princípios axiológicos por ela estabelecidos. [17]
É bem verdade, além disso, que habitualmente a Constituição não fixa prazos para todos os atos que a tornam efetiva e concretizada, o que dificulta por vezes a verificação da inércia dos poderes constituídos no suprimento das "carências" constitucionais. Anna Candida da Cunha Ferraz, no estudo dos processos informais de mudança da Constituição, explica a inércia constitucional da seguinte forma:
Configura-se a inércia constitucional quando há inatividade consciente na aplicação da Constituição, ou seja, quando uma disposição constitucional deixa de ser plenamente aplicada por falta de atuação do poder competente para esse fim, por um tempo, mais ou menos longo. [18]
A inércia do Poder Legislativo na falta de elaboração de lei, nesta senda, não poderia importar a falta de concretização dos preceitos constitucionais, e, portanto, negação da força normativa da constituição.
Certo é, em contrapartida, que os valores contidos no texto devem orientar não só a aplicação e/ou eficácia das normas constitucionais, como devem orientar a interpretação e integração da própria Constituição, eis que a integração e a coesão do texto constitucional evidenciam o real cumprimento do programa constitucional. Oportuna, neste diapasão, a seguinte transcrição de Jose Julio Fernandez Rodriguez:
Al lado de tal función transformadora, completándola y en íntima conexión con ella, se encuentra la función integradora que desempeña o, al menos, que debe desempeñar todo texto constitucional... .. En beneficio de este objetivo de integración y cohesión opera el correcto cumplimiento del programa constitucional, a lo que sin ningún género de dudas tambien coadyuva la figura da la omisión inconstitucional. [19]
Portanto, mesmo sendo o Poder Legislativo, a prima facie, sustentáculo do regime democrático em virtude da crença na legitimidade e em figuras como a democracia representativa e participativa, tem-se o Poder Judiciário como responsável pela atividade judicante e repressora da inconstitucionalidade, corroborando, assim, o Princípio Democrático de Direito.
Para tanto, seguindo-se o raciocínio do mestre italiano Ferrajoli, citado por Lenio Luis Streck, a Constituição deve ser reconhecida como norma suprema, à qual todas as demais estão subordinadas rigidamente. Vale dizer alterar-se o paradigma do Direito, segundo o mestre jurista, no que consiste às condições de validade das leis que dependem do respeito já não somente em relação às normas processuais sobre a sua formação, senão também em relação às normas substantivas sobre seu conteúdo, dando-se coerência aos princípios de justiça estabelecidos pela Constituição, bem como no que consiste à já referida natureza da função jurisdicional e a relação entre o juiz e a lei, que não significa, como refere o jurista, necessariamente a sujeição à lei, qualquer que seja o seu significado [20], tendo consciência que os valores constitucionais tem precedência mesmo contra textos legislativos produzidos por maiorias eventuais. [21]
Carecendo, assim, o Parlamento, de instrumentos de controle de sua atuação legiferante, uma vez que não se pode obrigar o Poder Legislativo a editar leis, cumpre ao Judiciário assumir uma nova função que em princípio fugiria a sua alçada, mas, pelo andar da sociedade, tornou-se fundamental, qual seja, a de implementar o sentido da constituição.
Tal possibilidade (de legislar propriamente dizendo) reflete-se diretamente, ainda em sede de controle de constitucionalidade pela via difusa, nos limites dos poderes do juiz e na sua capacidade de governo dentro do processo, eis que certo é que depende da atuação deste a obtenção por uma prestação jurisdicional segura, efetiva e em acordo com o espírito da Constituição.
Daí não confundir poder com autoritarismo, pretensa fórmula idealizada em diversos sistemas processuais da história. [22] Não é o que se pretende fazer raciocinar. É evidente que não se deseja conspirar para a criação de um juiz autoritário, mas sim de um juiz participativo e criativo, não mero expectador entre as partes, mas que tenha na moralidade o sustentáculo de seus atos, evidenciando sobremaneira seu papel diante da democracia. [23]
A esta atuação participativa do juiz que tanto pregamos está ligada uma séria de outras, dentre as quais o ato interpretativo e o poder criativo em julgar. Um decorre do outro. Na lição de Cappelletti, "o intérprete, queira, ou não, tenha consciência, ou não, é sempre e sempre, criador: por mais que se esforce, é livre! Ele dá vida a um texto que é morto". [24] Nesta mesma senda assinala e ao final questiona o jurista Amilton Bueno de Carvalho, citando CAPPELLETTI:
Os principais criadores do Direito [...] podem ser, e freqüentemente o são, os juízes, pois representam a voz final da autoridade [...] Se interpretar significa penetrar os pensamentos, inspirações e linguagem de outras pessoas com vistas a compreendê-las e – no caso do Juiz, não menos que no do musicista, por exemplo – reproduzi-los, ‘aplicá-los’, e ‘realizá-los’ em novo e diverso contexto, de tempo e lugar, como não existir cerca dose de liberdade? [25]
Como entendemos que a concreta aplicação dos preceitos constitucionais sustenta-se, dentre outras, na idéia de um juiz presente, além de congruente e acima de tudo justo, faz-se necessário, por vezes, pelo magistrado, que deixe de lado o famigerado conservadorismo que impera em nosso sistema jurídico, passando de mero espectador a atuante e criador (legislador) do direito.
Plauto Faraco de Azevedo, nestes termos, aponta: "esta atividade criadora e ordenadora é, na verdade, inerente à função jurisdicional, independendo do sistema jurídico em que se acha inserido o poder judiciário". [26] Todavia, lembra-nos Cappelletti:
É certo, com efeito, que, se existe uma categoria que, praticamente em todos os países, tudo seja menos revolucionária, está é exatamente a magistratura, especialmente a dos tribunais superiores. Como disse, de modo incisivo, embora talvez com certa ponta de exagero, Lord Devlin na "Chorley Lecture" de 1975, os juízes, como toda outra categorias de homens idosos, que tenham vivido vidas geralmente não aventurosas, tendem a ser tradicionalistas nas suas idéias. Este é um fato natural". [27]
Até que ponto os juízes de tal época, conservadores, quietos e respeitosos da lei, contrários, consoante Cappelletti, a evoluções que tendem a exaltar o elemento voluntarístico de suas decisões [28], colocando em perigo a mística de sua objetividade e neutralidade, teriam contribuído para a instauração deste paradigma? Ademais, como o mesmo foi superado, se é que o foi por completo, e quais as conseqüências disso?
A bem da verdade, segundo o raciocínio de Koopmans, foi justamente o crescimento do Estado que tornou possível o que se denomina "poder criativo do juiz", dada mesmo a extensão do setor público, o exercício de generalizado controle do estado sobre a economia, a assunção da responsabilidade do estado em questões de emprego e a elaboração de planos de assistência social. [29]
Estas modificações no campo social, político e econômico, caracterizadas pela permanente ação do estado com vistas a financiar subsídios, removendo barreiras econômicas e sociais, além do declínio na confiança dos parlamentares e as transformações no campo dos direitos humanos, impõe implicações aos juízes, os quais relutam em assumir maiores responsabilidades, restando-lhes, conforme entende Cappelletti, duas possibilidades [30]: permanecer fies à concepção tradicional, pela qual a autoridade judiciária ficaria confinada ao tranqüilo campo das funções protetoras e repressivas, não superando os conflitos privados (tratados pelo autor como aqueles que não envolvem as novas tarefas promocionais, agudas e usualmente discricionais do Poder Público do Estado), ou elevar-se ao nível dos outros poderes, tornando-se enfim o terceiro gigante, capaz de controlar o legislador mastodonte e o levianesco administrador.
É evidente, nesta senda, que a criatividade a que se faz entender não pode ser ilimitada a ponto de contrariar a própria Constituição, eis que, segundo o próprio Cappelletti, "o juiz não pode ser um criador completamente livre de vínculos" [31], mesmo porque se assim fosse seria o "Fuhrer" do processo.
O professor Carlos Maria Cárcova, em ensaio publicado em meados de 1996 junto à Revista da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul, citando Ferrajoli, refere, em relação à temática tratada, que,
como sostiene Ferrajoli: ‘la sujeicón Del juez a la lei ya no és como em el viejo paradigma positivista, sujeción a la letra de la ley cualquiera fuera su sugnificado, sino sujeción a la ley em cuanto válida, es decir, coherente com la Constitución. Y en el modelo constitucional garantista la validez, ya no es um dogma ligado a la mera existencia formal de la ley, sino uma cualidad contingente de la misma ligada a la coherencia de su significado com la constitución, coherencia más o menos opinable y siempre remitida a la valoración del Juez’. Este no podrá considerar a la ley em forma acrítica o incondicionada sino someteria a la jerarquia constitucional, garantizando así los derechos fundamentales en ella consagrados. Allí radica substancialmente el fundamento de la legitimación de la jurisdición. Una legitimiación que no es equiparable a la que proviene de la representación política, derivada de la voluntad mayoritaria, sino que concierne a la tutela de la intangibilidad de los derechos fundamentales consagrados, precisamente porque los derechos fundamentales sobre los que se asienta la democracia substancial". [32]
É imperioso, assim, definir o texto constitucional como compromissário e dirigente, urgindo a relevância da jurisprudência de valores. Ou seja, o abandono da idéia de Constituição meramente programática implica uma espécie de ativismo judicial ou intervencionismo dos tribunais, evidenciando a judicialização da política.
Sob esse prisma, o constitucionalismo dirigente não se atrela à idéia de normativismo constitucional, e sim à vinculação do legislador aos preceitos materiais da Constituição. Streck [33], neste sentido, salienta:
A idéia de uma teoria da Constituição dirigente adequada a países de modernidade tardia implica uma interligação com uma teoria do Estado, visando à construção de um espaço público, apto a implementar a constituição em sua materialidade [...] O que permanece da noção de constituição dirigente é a vinculação do legislador aos ditames da materialidade da Constituição, pela exata razão de que, nesse contexto, o direito continua a ser um instrumento de implementação de políticas públicas.
Nesse raciocínio, a idéia de constitucionalismo dirigente abarca a teoria da Constituição como uma teoria que resguarda as especificidades históricas e sociais de cada Estado. Com efeito, a partir da idéia de Lenio Luis Streck, temos que a teoria da Constituição deve conter um núcleo básico resultante das conquistas do Estado Democrático de Direito.
Disso advém a importância, não apenas como padrão hermenêutico, mas também como prática constitucional, dos direitos fundamentais e dos fundamentos da Carta de 1988, para manutenção do Estado Democrático de Direito. O jurista ainda demonstra que além do núcleo mínimo universal que conforma uma teoria geral da Constituição, existe um núcleo específico de cada Constituição, variando de Estado para Estado.
O núcleo essencial da Constituição inserto nas cláusulas pétreas (implícitas e explícitas), no rol dos direitos fundamentais, etc., não destoa do caráter aberto do texto constitucional, o que, conforme Canotilho, demonstra a difícil tarefa do intérprete:
A complexa articulação da textura aberta da constituição com a positividade constitucional sugere, desde logo, que a garantia da força normativa da constituição não é tarefa fácil, mas se o direito constitucional é direito positivo, se a constituição vale como lei, então as regras e princípios constitucionais devem obter normatividade regulando jurídica e efectivamernte as relações da vida (P. Heck), dirigindo as condutas e dando segurança e expectativas de comportamentos (Luhmann). [34]
Outro referencial importante condiz com a caracterização da Constituição como Constituição aberta, o que, através da hermenêutica e do alargamento do espaço de decisão, evita o engessamento do texto constitucional, renovando-se seguidamente o compromisso constitucional.
Num momento histórico em que se prega a mínima intervenção do estado em áreas como a economia, o direito do trabalho, etc., o núcleo essencial da Constituição afigura-se como mantenedor dos direitos básicos do cidadão, e, portanto do Estado Democrático de Direito.
Ressalta-se a adoção do sistema misto de controle de constitucionalidade, o qual proporciona a qualquer parte num processo, através do controle concreto, a interpretação da Constituição, trazendo a lume um determinado enfoque constitucional para a justa prestação jurisdicional, assim, por meio do controle concreto de constitucionalidade, ou através do manejo das ações constitucionais, como mandado de segurança coletivo, habeas data, mandado de injunção, etc, pelos quais encontra-se a participação efetiva do cidadão.
José Luis Bolzan de Morais [35], ao estudar as perspectivas da Constituição, advoga a necessária reconstrução do constitucionalismo, para que se coloque à disposição dos seres humanos o estabelecimento de parâmetros para a organização social e a conduta humana em bases democráticas, entendendo democracia, aludindo à Bonavides, como semblante político que se reveste a dignidade da pessoa humana, sujeita, de último, a nunca se firmar num país, em que a corrupção das instituições, a catástrofe do Estado de Direito, a incapacidade dos governos e a traição das elites arrastam ao despenhadeiro do neocolonialismo.
Lenio Luis Streck, por sua vez, analisa, ainda, a mudança de posicionamento de Canotilho ao anunciar a morte da Constituição dirigente. É ressaltada a importância da contextualização das posições assumidas pelo autor, verberando que "a afirmação de Canotilho vem acompanhada de uma explicação, no sentido de que ‘a Constituição dirigente está morta se o dirigismo constitucional for entendido como normativismo constitucional revolucionário capaz de por sí, operar transformações emancipatórias’. A afirmação de Canotilho não elimina e tampouco enfraquece a noção de Constituição dirigente e compromissária". [36]
Assim, em face das diferenças do caráter revolucionário da Constituição Portuguesa e do caráter não revolucionário e social da Constituição brasileira, sustenta-se o caráter dirigente e compromissário da Carta de 1988 [37].
Destarte, a constatação do caráter dirigente da Constituição transfere o foco da discussão à aproximação da prática constitucional à concretização da Constituição Federal, passando pela questão da legitimidade do Poder Judiciário na atuação de verdadeiro legislador.