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[não] Proibição do comércio de armas e munição.

Uma análise política, jurídica e crítica acerca dos fatos

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1. Intróito

O presente trabalho tem como objetivo mostrar que o assunto a ser debatido no referendo mostra-se por demais polêmico e complexo para ser discutido num país com uma conjuntura problemática como o nosso, de modo que, da maneira como está sendo posta a questão, ao invés de soluções pacíficas o que poderão advir são conseqüências graves.

Para tanto, analisarei sucintamente dois dos aspectos políticos, fornecendo, assim, um embasamento para a análise do principal aspecto jurídico, e encerrarei com uma conclusão acerca do tema. Tudo isso sem que nenhuma posição política seja apresentada, já que ultrapassa os limites deste trabalho querer influenciar o leitor em seu voto.


2. Aspectos Políticos: uma breve análise

Por ser um assunto polêmico, os dois posicionamentos acerca do tema possuem argumentos plausíveis e merecidos de análise, seja por sua visão crítica ou mesmo por uma postura exagerada. Alguns destes precisam aqui ser citados e discutidos, a fim de procurar derrubar barreiras e desfazer mitos, tendo em vista uma análise crítica acerca deste momento histórico ímpar a ser vivido na história da nossa república. Cabe lembrar, mais uma vez, que este texto preza pela imparcialidade de voto.

Primeiramente é preciso atentar para como a legítima defesa está sendo abordada em meio aos debates. Tal instituto do Direito Penal é entendido como uma causa de exclusão de antijuridicidade, prevista no art. 23, inciso II do Código Penal e regulada pelo art. 25 do mesmo código.

Art. 25 – Entende-se por legítima defesa quem, usando moderadamente os meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.

É importante lembrar que só estará protegido pela lei aquele que reagir a uma agressão injusta, ou seja, não autorizada pelo direito, não se devendo confundir agressão injusta com ato injusto, que não constitui em si uma agressão, e que pode apenas provocar violenta emoção no agente, erigindo-se em certas circunstâncias em atenuante ou causa genérica de diminuição de pena. [01]

Fundamenta-se, portanto, na existência de um direito primário do homem (e, portanto, num direito natural, inerente à condição humana de existência em sociedade) de defender-se, de retomar uma faculdade cedida ao Estado, em caso de injusta agressão de direito. Consiste num dos casos excepcionalíssimos para que a própria lei abra exceção à proibição da autotutela. [02]

Ora, o que é de se preocupar é a maneira como o assunto está sendo abordado em propagandas. [03] Em primeiro lugar, a proibição do comércio de armas de fogo e munição em nada tem que ver com a negação da legítima defesa. Argumentar desta forma significa vincular a legítima defesa a todo e qualquer ato referente ao uso de armas de fogo. Destarte, só haveria legítima defesa em um assalto à mão armada se o assalto fosse repelido com outra arma de idêntico poder de ação. Ademais, não há negação alguma de direito de defesa, visto que em um Estado Democrático de Direito, a função de defesa é própria do Estado, que tomou para si a jurisdição como forma de ditar soluções para os conflitos ao inibir a autotutela. O que há, em verdade, é uma reafirmação do princípio da soberania estatal frente aos seus súditos, bem como uma reafirmação de uma garantia de segurança, ainda que duvidosa.

O direito à defesa pode, sim, estar sendo reduzido, o que para um país de realidade social grave como o nosso pode ser desastroso. Damásio de Jesus, em um texto publicado por meios eletrônicos, afirma que "o desarmamento popular só pode ser imposto quando se tem uma Polícia apta a garantir a segurança social. Ao lado do "Estatuto do Desarmamento", deveria existir o "Estatuto da Polícia", para conceder a esse órgão instrumentos reais e capazes de concretizar a sua missão de prevenir a criminalidade".

Não é a negação de um direito, mas sua limitação. Uma diminuição na quantidade de alternativas frente a uma agressão injusta e iminente. Em nada se altera o instituto da legítima defesa. Mas em muito se discute a responsabilidade lançada para o povo acerca de uma decisão extremamente radical, como se verá adiante.

Outro ponto a se analisar é o uso indiscriminado de estatísticas e de dados. Estatísticas e dados ilustram uma determinada realidade concreta, facilitam o entendimento, bem como, principalmente, o grau de persuasão sobre o público. O sucesso deste ou daquele grupo ideológico depende de como tais informações serão passadas, abrindo espaço, portanto, para deturpações, obscuridades e, até mesmo, exageros devido à diferença de contextos.

Coletar informações faz parte do método sociológico: "os dados do mundo empírico são coletados sistematicamente de acordo com os dogmas do método científico. Esses dogmas incluem: (a) estabelecer uma problemática da pesquisa; (b) formular uma hipótese; (c) coletar dados ou promover experimentos, entrevistas e questionários, observações ou levantamento histórico; (d) analisar os dados; e (e) tirar conclusões com respeito à validade da teoria, pesquisa exploratória ou interesses particulares de um cliente". [04]

É próprio da natureza humana querer reduzir a complexidade de fenômenos em conceitos ou dados de pesquisa, sendo que esta redução implica novos problemas. Jonathan Turner afirma que a técnica de levantamento, ao ser usada extensivamente, "fica facilmente sujeita a mentira mentiras e deturpações, além de não examinar facilmente os fenômenos que não podem ser confrontados com perguntas". [05]

Tal redução de complexidade mostra-se notória ao quererem confrontar dados e estatísticas de países desenvolvidos como Inglaterra, Canadá, Austrália, Japão e EUA, ou seja, dados sobre suas realidades, com os da nossa. Ora, a conjuntura de cada um desses países em nada se compara com a brasileira. Neles, a polícia é treinada e estimulada, resultando em um trabalho eficiente; taxas de criminalidade são baixas; A população possui um nível de educação e consciência crítica altos; direitos fundamentais são efetivados. Aqui, mazelas sociais são aumentadas; corrupções políticas e administrativas dia após dia são descobertas; a polícia é deficiente; a maior parte da população é alienada.

Já é de praxe, no entanto, no Brasil, que sejam aplicadas soluções comumente voltadas para países desenvolvidos. E os resultados mostram-se daninhos. Como não citar o modelo de industrialização adotado pelo governo de Juscelino Kubitschek, de subordinação ao capital internacional, um modelo de desenvolvimento baseado no de países desenvolvidos? E a política de desenvolvimento da época da ditadura?

Quais os motivos para acreditar que ao se implantar métodos adotados em países de 1º mundo os nossos problemas irão acabar? Quais os motivos para acreditar que um país que não consegue resolver seus problemas básicos de saúde, educação, pirataria ou tráfico de drogas irá, ao menos, diminuir a circulação de armas de fogo?

A resposta para uma pergunta altamente complexa como a da proibição do comércio de armas não poderia mesmo ser tão simples. Não se pode crer que um procedimento que deu certo em países desenvolvidos dará certo num país em desenvolvimento, justamente porque, para que dê certo, outros problemas graves terão de ser resolvidos.

Dentro deste contexto, de um país em que as mazelas sociais são gritantes e de um país que vive uma crise política, o povo brasileiro estaria em condições de responder tal pergunta sem que isso não acarrete nenhum ônus para si mesmo?


3. O aspecto jurídico escamoteado pelos debates

Cientes de que os aspectos políticos encontram-se atrelados a cargas altamente axiológicas e genéricas como "direito", "legítima defesa", "proibição" etc., e de que tais argumentos acabam sendo usados de maneira obscura dependendo da ideologia pregada, concentremo-nos nos aspectos jurídicos deste instrumento que, se por um lado é extremamente democrático, por outro pode servir de excludente de responsabilidade da administração pública diante do que venha a ocorrer após a eleição.

É através do referendo, instituto da democracia semidireta, que o povo adquire o poder de sancionar as leis. No caso brasileiro, a lei em questão é a 10.826/03, em vigor desde o dia 22 de dezembro de 2003, já tendo sido, por isso, sancionada pelo presidente da república. Seu artigo 35, no entanto, que proíbe a venda de armas de fogo e munição em todo o território nacional é o objeto do "sancionamento" popular.

Assim como polêmica é a pergunta a ser feita no dia 23 de outubro, polêmica é a sua análise acerca das vantagens e desvantagens do uso deste instrumento. A favor do referendo, argumentam que o mesmo "serve de anteparo à onipotência eventual das assembléias parlamentares; torna verdadeiramente legítima pelo assenso popular a obra legislativa dos parlamentos; dá ao eleitor uma arma com que sacudir o "jugo dos partidos"; faz do povo, menos aquele espectador, não raro adormecido ou indiferente às questões públicas, do que um colaborador ativo para a solução de problemas delicados e da mais alta significação social; promove a educação dos cidadãos; bane das casas legislativas a influência perniciosa das camarilhas políticas. Retira dos "bosses" o domínio que exercitam sobre o governo. [06] Como inconvenientes citam "o desprestígio das câmaras legislativas, conseqüente à diminuição de seus poderes; os índices espantosos de abstenção; a invocação do argumento de Montesquieu acerca da incompetência fundamental do povo e seu despreparo para governar [07]; a cena muda em que se transforma o referendum pela ausência de debates; os abusos pela repetição freqüente ao redor de questões mínimas, sem nenhuma importância, que acabariam provocando o enfado popular; o afrouxamento da responsabilidade dos governantes (ao menor embaraço comodamente transfeririam para o povo o peso das decisões); o escancarar de portas à mais desenfreada demagogia; em suma, o dissídio essencial da instituição com o sistema representativo. [08]

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Não há dúvidas de que, como supracitado, o referendo faz do povo um colaborador ativo para a solução de problemas delicados, bem como promove a educação dos cidadãos, seja por debates ou por exposições. No entanto, uma análise mais atenta nos leva a sérias preocupações. Além de o Brasil não ser um país com "experiência em referendos" (o que não implica dizer que aqui não se possa utilizar tal instrumento), a questão em torno da qual se promoverá a votação é por demais complexa, seja pelo fator social, seja pelo consensual. Socialmente falando, a violência não depende somente do comércio de armas de fogo, mas também do controle do tráfico de drogas, de um melhor acesso à educação, de maiores oportunidades de emprego, de políticas de inclusão social, enfim, de uma série de fatores que acabam gerando um círculo vicioso (supra, n° 2). Pelo lado do consenso, a experiência pessoal de cada um falará mais alto. Aquele que perdeu um ente da família em um assalto por motivo de reação e aquele que depende de uma arma para garantir a segurança de sua família, seja por conta de um possível isolamento físico, seja por conta do exercício de uma função de risco, terão posicionamentos diferentes acerca da proibição.

A complexidade da questão e a falta de experiência do Brasil com este instrumento de consulta popular pode levar a resultados desastrosos a curto prazo: qualquer que seja a resposta vencedora, se o número de mortes aumentar, o problema não será somente responsabilidade do Estado, mas também do povo. O povo será responsabilizado pelo que decidir, em conseqüência do afrouxamento da responsabilidade dos governantes, os quais transferiram para o povo a decisão de uma pergunta que se mostra viciada ab initio. O nosso legislador ordinário, sob a idéia de "dar uma maior legitimidade" a esta proibição, buscou meios legais para dividir com todos os cidadãos brasileiros os encargos do problema. Pergunta-se: como se comportarão tais efeitos diante da nossa grave e contínua crise política? Com a palavra, os responsáveis pelo nosso procedimento legislativo!


4. Conclusão

Gravíssima é a melhor descrição da situação na qual fomos inseridos. Como se não bastasse a crise política, em que, a cada dia, surgem novos culpados e novas perguntas são formuladas, sem que as antigas sejam respondidas, e a nossa insegurança política e jurídica, ao povo brasileiro, como um todo, é imposto o dever de decidir por um tema polêmico por natureza. Abusa-se da inocência do eleitor brasileiro, que sairá de casa no dia 23 de outubro crente que estará contribuindo para a melhoria do quadro social do nosso país. Esse é apenas um dos aspectos de nossa democracia falida, a qual mais se assemelha a uma grande sociedade empresária dissolvida, em que o único remanescente a partilhar são os problemas. Enfim, é uma democracia anacrônica e desprezível, na qual ainda há espaço para que o nosso legislador ordinário tenha sua atitude descrita em uma só palavra: irresponsabilidade (e por que não qualificá-la de "ordinária", no sentido de "indecente"?).


5. Referências Bibliográficas

JESUS, Damásio E. de. A questão do desarmamento. Jus Navigandi, Teresina, a. 8, n. 319, 22 mai. 2004. Disponível em: http://jus.com.br/artigos/5209. Acesso em: 12 out. 2005.

Mirabete, Júlio Fabrini. Manual de Direito Penal. Vol. 1. 15ª Edição. Ed. Atlas S.A.

Cintra, Grinnover, Dinamarco. Teoria Geral do Processo. 14ª Edição. Ed. Malheiros.

Turner, Jonathan H. Sociologia: conceitos e aplicações. Ed. Makron Books.

Bonavides, Paulo. Ciência Política. Ed. Malheiros.


6.Notas

01 Mirabete – Manual de Direito Penal – Vol. 1 – 15ª Edição.

02 intra, Grinnover, Dinamarco – Teoria Geral do Processo – 14ª Edição

03 Fala-se inclusive em um "Direito Constitucionalmente Previsto". Trata-se de uma afirmação falsa, já que a constituição não trata do tema de modo explícito. É encarado, no entanto, como um direito natural, dotado de uma alta carga valorativa em torno de questões como "justiça" ou "vida".

04 Jonathan Turner – Sociologia: conceitos e aplicações – Makron Books – Pág. 30

05 Idem – Pág. 26

06 Bonavides, Paulo, Ciência Política, pág. 285.

07 Em meu humilde entendimento, apesar de posicionamentos contrários (Duguit), este argumento mostra-se mais atual do que nunca. O despreparo, no nosso caso, não é somente pela falta de experiência do povo brasileiro com referendos e suas conseqüências, como também pelo fato de este mesmo povo ter de enfrentar uma questão dotada de um elevado grau de complexidade política e jurídica.

08 Bonavides, Paulo, Ciência Política, pág. 286

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Sobre o autor
Manoel Francisco do Nascimento Júnior

bacharelando em Direito pela Faculdade de Direito do Recife (UFPE)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NASCIMENTO JÚNIOR, Manoel Francisco. [não] Proibição do comércio de armas e munição.: Uma análise política, jurídica e crítica acerca dos fatos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 840, 21 out. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7454. Acesso em: 25 abr. 2024.

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