I.Introdução.
No próximo dia 23 de outubro, os brasileiros deverão se dirigir para suas respectivas zonas eleitorais e votar pela proibição ou não da venda de armas no Brasil. Caso a maioria vote SIM, ou seja, vote a favor da proibição da venda de armas e munições, todo e qualquer comércio – salvo para as entidades constantes do artigo 6º da Lei 10.826/2003 - será considerado ilegal/proibido cabendo, portanto, imputação do crime do artigo 17 da lei, cuja pena em abstrato é de reclusão de 04 a 08 anos e multa (art. 17).
Sobre este tema, existem duas vertentes, devidamente autorizadas pelo Tribunal Superior Eleitoral, promovendo propagandas políticas. A primeira delas, a "Frente Parlamentar Brasil sem armas", defende que o comércio de armas e munições deve ser proibido no Brasil sob o argumento, em linhas gerais, que tal medida diminuiria quantitativamente o número de mortes por arma de fogo. Neste sentido, a Folha On line [01] publicou matéria jornalística - em 02/09/2005 - demonstrando pesquisa do Ministério da Saúde que atestou a diminuição de 8,2% do número de mortes por arma de fogo, considerando desde o início do programa de desarmamento.
De outro lado, a "Frente Parlamentar pelo Direito da Legítima Defesa", por sua vez, defende que o comércio de armas e munições não deve ser proibido, haja vista que o Brasil não tem um plano de segurança pública eficiente e, assim, tal medida significaria maior facilidade para a prática de crimes, já que os "homens de bem" estariam desarmados.
Todavia, tanto uma alegação quanto outra não passam de meros argumentos superficiais, isto é, cada frente parlamentar se posiciona da forma que melhor atende seus interesses individuais. Neste sentido, tais "argüições", são manobras para que não se atinja o "pano de fundo" que a questão envolve.
Em verdade, uma discussão como esta não pode ser analisada do ponto de vista individual (do "eu acho"). A lei (em especial a penal) tem um caráter geral, por isso, para ser elaborada é indispensável que se busquem elementos na Criminologia, na Política-Criminal e no Direito Penal, no intuito de verificar se a conduta a ser criminalizada realmente merece a tutela penal, assim como o real reflexo da nova lei no ordenamento jurídico, para que se obtenha uma lei substancialmente democrática e não apenas decorrente da regra de maioria.
Desta forma, cumpre-se fazer algumas indagações, para, ao final, concluir pela proibição ou não da comercialização da venda de armas e munições no Brasil e sua conseqüente criminalização (caso a maioria dos eleitores opte pelo "sim"). Então, pergunta-se: o fato de se comercializar (legalmente) a arma constitui um fato especial (ou degradante) para sociedade, ao ponto de justificar sua proibição? A lei que pretende proibir o comércio de armas e munições preenche os requisitos merecimento, necessidade e adequação da tutela penal? O fato especial (ou degradante) que será proibido por si só promove lesões ou perigos concretos de lesões ao bem jurídico tutelado?
II. Da impertinência da criminalização da conduta e da política da "segurança jurídica".
Para a criminologia, ensina Sérgio Salomão Shecaira [02], o crime deve ser encarado como um problema social e, por isso, é preciso a existência de alguns critérios para se entender um fato coletivamente como crime. O referido autor elenca quatro critérios: i) que o fato tenha incidência massiva na população; ii) que o fato produza uma incidência aflitiva; iii) persistência temporal do fato praticado; iv) existência de um "inequívoco consenso a respeito de sua etiologia e de quais técnicas de intervenção seriam mais eficazes para o seu combate [03]".
A incidência massiva na população exige que a ocorrência seja corriqueira, não se podendo criminalizar um acontecimento isolado, "ainda que tenha causado certa abjeção da comunidade [04]". Por conseguinte, o fato praticado deve produzir incidência aflitiva, isto é, não faz sentido que um caso sem relevância social seja criminalizado.
O terceiro critério indica que a conduta praticada deve ter persistência temporal, isto é, não se deve estigmatizar comportamentos que representem uma moda ou algo fugaz. Por fim, um fato a ser alcançado pela esfera criminal deve resultar de um consenso da sociedade, isto é, muito embora a ingestão de substância alcoólica possa ensejar um fenômeno massivo, aflitivo e de persistência temporal é consenso que na sociedade seu consumo e venda não deve ser criminalizado.
Ao se vender arma de fogo não há incidência massiva na população porque a grande maioria das pessoas não têm armas e, na verdade, não se importam em ter. O simples fato de se comprar ou possuir uma arma, não causa aflição na comunidade, sendo, portanto, um comportamento totalmente irrelevante. Ademais, de tempos em tempos, pode se falar em um aumento na aquisição das armas de fogo, porém, nada mais fugaz, passageiro. E por fim, não há consenso na origem deste problema, muito menos nas técnicas de intervenção que se pretende implantar.
O que existe, na verdade, é uma campanha que almeja o desarmamento dos cidadãos mediante o jargão do medo e da insegurança como seus fundamentos. Ademais, os meios de comunicação social aproveitam-se do pouco ou do inexistente conhecimento que a população tem sobre criminologia e, com isso, apontam a "segurança jurídica e do cidadão" para apoiar a campanha em destaque.
A segunda indagação que, em linhas gerais, deve-se responder é se o fato analisado merece, necessita, ou é adequado a receber a tutela penal.
Para que a tutela penal seja merecida, em um Estado Democrático de Direito, ensina Alice Bianchini [05], deve existir um bem jurídico relevante, ou seja, "bens considerados essenciais à existência do indivíduo em sociedade [06]" e a conduta a ser criminalizada deve se constituir em lesão ou perigo concreto de lesão a este bem jurídico, isto é, não se deve criminalizar condutas que reflitam concepções de índole ideológicas e morais.
A tutela penal deve ser necessária. Significa dizer, quando existirem outros meios de controle social, a tutela penal deverá ser afastada, haja vista seu caráter subsidiário.
Destarte, se um fato social pode ser contornado através de medidas preventivas ou de recuperação diversas do direito penal (como é o caso da comercialização das armas e munições no Brasil, que já foi dificultada e regulamentada pela Lei 10.826/2003, podendo o comércio sofrer sanções meramente administrativas em caso de desobediência às regras de comercialização), deve-se preferir àquelas, já que o direito penal deve ser utilizado somente como ultima ratio.
Outrossim, para que a tutela penal seja viável é ainda necessário que ela seja adequada. Desta forma, deve haver proporcionalidade entre os fins e meios.
Neste sentido, a alegação para a proibição da venda de armas e munições no Brasil (qual seja: a diminuição da criminalidade) não faz o menor sentido. Primeiro porque não se diminui a criminalidade de uma sociedade com o aumento de leis e nem com o aumento de pena; segundo, menos de 4% dos assassinatos cometidos no Brasil foram realizados com armas procedentes do comércio legal [07], isto é, não há coerência criminalizar uma conduta que sequer contribui para o aumento da criminalidade.
Observe-se que, ao que tudo indica, o legislador utilizou a teoria da equivalência dos antecedentes causais a qual, em síntese, significa que tudo que concorre para o resultado é causa do resultado, mediante a aplicação do método chamado de "procedimento hipotético de Thyrén [08]", isto é, vale-se de uma teoria que permite o regressus ad infinitum para encontrar a causa do crime, nada mais incompleto.
A terceira verificação que se propõe a fazer, em linhas gerais, é sobre a lesão ou perigo concreto de lesão da conduta criminzalida em relação ao bem jurídico tutelado.
Ora, se os bens jurídicos que se pretende proteger são a vida e paz social indaga-se: ao se vender, com autorização legal, uma arma de fogo há lesão à vida? Há violação da paz social? Esta conduta, ao menos, expõe esses bens jurídicos ao perigo concreto de lesão?
É óbvio que não. Não se pode dizer que o simples comércio, legal, de arma de fogo ou munições está contribuindo para lesionar qualquer bem jurídico.
Assim, sendo a lesão e o perigo concreto de lesão ao bem jurídico tutelado requisitos do fato típico [09], sua ausência, inexoravelmente, ocasionará a atipicidade da conduta, haja vista que, se o bem jurídico tutelado não é sequer ameaçado, o fato é absolutamente insignificante e irrelevante para o Direito Penal brasileiro, haja vista o seu caráter mínimo, subsidiário e garantista.
III. Considerações finais.
Tem-se que a violência e a criminalidade estão sendo usadas para promover a repressão social com o próprio consenso da sociedade. Assim, a dramatização da criminalidade [10], toma dimensões gigantescas ofuscando os verdadeiros problemas existentes no País.
Neste diapasão, o Estado brasileiro, utilizando a metáfora dos "cidadãos de bem" contra os "bandidos", segrega dois grupos e, a partir da tensão criada no primeiro grupo, passa a investir em medidas imediatistas que, aparentemente, seriam a verdadeira solução dos problemas, ou seja, adota o plano americano [11] do direito penal máximo.
Significa isto dizer que Estado brasileiro criou uma comunidade que vive calma e pacificamente dentro de uma bolha (cidadãos de bens) rodeada de janelas que, a todo tempo, são quebradas pelas pedras jogadas pelos outsiders (bandidos) que pretendem se infiltrar, conforme teoria das Janelas Quebradas [12].
Diante desta terrível ameaça, os "cidadãos de bem", sem perceber que seus próprios direitos estão sendo restringidos ainda mais, passam a consentir que "todas as condutas ilícitas, por mais irrelevantes que sejam, devem ser objeto de apenamento, as penas devem ser mais longas, os regimes de cumprimento mais rígidos e as possibilidades de benefícios menores. Como conseqüência, o processo penal deve ser mais célere e utilitarista, no sentido de diminuir as garantias processuais do cidadão em nome do interesse estatal de mais rapidamente apurar e apenar condutas [13]", ademais abre-se mão de direitos básicos em prol do funcionamento de uma (ilusão de) segurança jurídica.
Todavia, o que não se percebe é que a criminalidade não será resolvida se não se procurar diminuir suas verdadeiras causas. Exemplo disto é a própria lei de crimes hediondos que surgiu para, no mínimo, diminuir a incidência de crimes como o Latrocínio, Tráfico de Entorpecentes etc... Aliás, no Rio de Janeiro, continua existir concomitante ao Estado brasileiro um "Estado" paralelo comandado pelos traficantes.
Ademais, e sendo repetitivo, o que (parece que) não se percebe é que as causas do elevado número da criminalidade tem fundamento na enorme desigualdade social e condições de miserabilidade, no baixo nível educacional e cultural da população, bem como na própria má administração do Estado e seus seguidos péssimos exemplos à sociedade, isto é, o descrédito na atuação e competência das instituições estatais tem ocasionado na criação de uma terra sem lei, ou melhor, de uma terra de muitas leis, porém sem respeito a elas.
É por isso que estão corretos Jacinto Nelson de Miranda Coutinho e Edward Rocha de Carvalho [14] que, ao analisarem a teoria das janelas quebradas (Fixing broken windows theory) de Kelling e Wilson - a qual prevê que qualquer conduta, por mais irrelevante que seja, deva ser criminalizada para evitar a "desordem" -, indagam: e se a pedra vem de dentro?
Por fim, diante de tudo o que foi exposto, resta claro que não existe qualquer fundamento para se votar a favor da proibição da venda de armas e munições e sua conseqüente criminalização, que apenas servirá como mais um exemplo para relativização dos direitos dos brasileiros e em nada, absolutamente, nada diminuirá ou acrescentará na diminuição real da criminalidade.
Notas
01
http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u112645.shtml02
SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004.03
SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 4604
SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 4405
BIANCHINI, Alice. Pressupostos materiais mínimos da tutela pena. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002 (Série as ciências criminais no século XXI) Vol 7.06
BIANCHINI, Alice, p. 4107
fonte: http://www2.camara.gov.br/fiquepordentro/radio/chamadaExterna.html?link=http://www.camara.gov.br/internet/radiocamara/default.asp?selecao=MAT&Materia=2805808
GOMES, Luiz Flávio. Direito penal: parte geral. Teoria Constitucionalista do delito. São Paulo. RT, 2004, p 103 explica que tal método consistia em em duas regras: a) se eliminada mentalmente uma determinada circunst6ancia da cadeia causal e mesmo assim o resultado ocorrer, essa circunstância não é causa do resultado; b) se eliminada mentalmente determinada circunstância da cadeia causal e, com isso, conclui-se que o resultado não teria ocorrido, essa circunstância é causa do resultado.09
Considerando analiticamente o crime como o fato tipicio, antijuridico, punível e culpável10
BARROS, José Manoel de Aguiar. O direito e o espelho. São José do Rio Preto, SP. Casa do livro, p. 2211
LOPES JR, Aury. Violência urbana e tolerância zero: verdades e mentiras. retirado do web site http://www.aurylopes.com.br/artigos.html12
Fixing the broken windows theory. Wilson and Kelling, 199213
LOPES JR, Aury. Violência urbana e tolerância zero: verdades e mentiras. retirado do web site http://www.aurylopes.com.br/artigos.html14
COUTINHO, Jacinto Nelson Miranda de & CARVALHO, Edward. Teoria das janelas quebradas: e se a pedra vem de dentro?. Boletim IBCCRIM. São Paulo, v.11, n.n. esp., p. 6-8, out. 2003.