A legislação civil brasileira adotou três princípios fundamentais que norteiam o regime matrimonial:
a)variedade de regimes (regime da comunhão parcial de bens ou de aqüestos, regime da comunhão universal de bens e regime da separação de bens).
b)liberdade na fixação dos pactos antenupciais.
c)imutabilidade do regime de bens adotado.
Com relação à este último princípio, o Código Civil de 1916 trazia em seu corpo, o seguinte dispositivo:
Art. 256 – É lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver (arts. 261, 273, 277, 283, 287 e 312).
Uma vez estipulado o regime de bens pelos nunbentes, impunha-se a observância do art. 230 do mesmo diploma civil de 1916 que assim dispunha:
Art. 230 – O regime de bens entre cônjuges começa a vigorar desde a data do casamento, e é irrevogável.
Dessa feita, por disciplinamento legal expresso, na vigência do código civil anterior, era absolutamente vedada qualquer tentativa de modificação do regime de bens fixado na data do casamento.
Em razão das inúmeras etapas e graus de confiança que experimentam os cônjuges durante o convício matrimonial, dificilmente o ânimo dos consortes, em relação a comunhão ou não dos bens, permanece inalterado. Nesse sentido, nos parece injusta qualquer vedação absoluta e irrestrita à modificação do regime matrimonial do casamento ao longo de sua existência, impossibilitando, com isso, a adequação do mesmo aos desejos e necessidades de cada caso concreto. Nesse sentido, v.g., é possível que, unido pelo matrimônio e tendo adotado regime de comunhão universal de bens, após alguns anos, um dos cônjuges, face a conscientização do verdadeiro caráter do outro consorte, externe o desejo de modificar o regime originário para separação parcial de bens, seja para preservar patrimônio adquirido por herança, seja para dificultar a perda de patrimônio trazido para o casamento ou mesmo para impedir espoliação perpetrada pelo outro cônjuge. Como se vê, o regime matrimonial deve acompanhar o ânimo dos cônjuges, dando-se, inclusive, caráter contratual aos pactos antenupciais (suscetíveis de resilição, resolução, etc.).
Acontece que, diversamente da imutabilidade prevista no Código de 1916 (art. 230), o novo ordenamento civil de 2002 passou a permitir a alteração do regime de bens no curso do casamento, desde que autorizada judicialmente em pedido motivado de ambos os cônjuges, comprovando-se as razões invocadas e ressalvados os direitos de terceiros.
Nesse sentido, assim dispõe o § 2.º do artigo 1.639:
"É admissível alteração do regime de bens entre os cônjuges, mediante autorização judicial em pedido motivado de ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e ressalvados os direitos de terceiros".
Portanto, deixou de ser irrevogável o regime de bens, uma vez que o novo ordenamento expressamente faculta sua alteração no curso do casamento, sem distinguir se celebrado antes ou depois de sua vigência, ou seja, mesmo em uniões firmadas sob égide do diploma civil de 1916 é possível aplicar o disposto no código de 2002.
Tal interpretação nos parece a mais acertada tendo em vista que, se assim não fosse, estaríamos diante de uma flagrante inconstitucionalidade uma vez que, ante o princípio da isonomia, não seria admissível que a lei estabelecesse uma diferenciação entre cidadãos, fundada exclusivamente na época de vigência da lei, ou seja, aquelas pessoas casadas antes do código de 2002 seria penalizadas simplesmente porque contraíram núpcias anteriormente.
Imperioso ressalvar que a mudança no regime de bens não decorre da simples vontade do casal, sendo necessário os seguintes requisitos legais:
a)pedido de ambos os cônjuges;
b)motivação do pedido;
c)procedência das razões invocadas;
d)ressalva dos direitos de terceiros;
e)autorização judicial.
Pedido de ambos os cônjuges. Note-se, com relação ao primeiro requisito, que a alteração não pode decorrer de uma pretensão unilateral. Exige-se o requerimento conjunto do marido e da mulher, ambos interessados na mudança do regime.
O referido pressuposto tem razão óbvia de ser uma vez que, tratando-se de ação modificativa de direito, qualquer decisão judicial transformando o regime de bens anteriormente firmado afetará diretamente os cônjuges devendo dessa forma, haver concordância de ambos para que se converta o regime inicial.
Motivação do pedido. Trata-se da motivação do pleito circunscrita ao interesse comum dos cônjuges que deverá ser exposta ao juiz evitando-se, contudo, qualquer rigor excessivo ou extremado formalismo porquanto variam as circunstâncias motivadoras dentro do âmbito familiar, de modo que deverá ser suficiente a exposição das razões pessoais dos cônjuges na mudança do regime, para exame e decisão dentro dos critérios da razoabilidade.
Procedência das Razões Invocadas. Nesse sentido, entendo que a expressão "procedência das razões invocadas" representa atecnia do legislador e não deveria ter sido utilizada como requisito ou pressuposto para o ingresso do referido pleito uma vez que, residindo no campo do juízo discricionário atinente ao magistrado, caberá a este estabelecer se as razões invocadas pelas partes são merecedoras do acolhimento por parte do poder judiciário.
Na verdade, como regra geral da processualística civil, é dever do autor expor os fatos e as provas através das quais pretende comprovar o direito invocado cabendo ao magistrado, observado o grau de discricionariedade firmado em lei, acolher ou não as razões de fato e de direito invocadas isso porque, é óbvio ululante que, para que ocorra a modificação no regime de bens pleiteada pelos interessados, é necessária a procedência das razões invocadas o que será decidido pelo magistrado competente e não pelas partes.
Ressalva dos direitos de terceiros. Importante que a alteração não afete direitos de terceiros, eventuais contratantes ou credores dos cônjuges, pois, nesse caso, estaria configurada a fraude, o que tornaria ineficaz o ato. Uma vez presentes esses requisitos e efetuada a devida comprovação nos autos, colhe-se a decisão do juiz. No processo cabe intervenção do Ministério Público, pela natureza da lide e o interesse público inerente à pretendida mudança na regulamentação do regramento patrimonial dos casados.
Nesse sentido, entendo que a ação para modificação do regime de bens deve ser revestida de todos cuidados necessárias ao resguardo do direito de terceiros, inclusive com a remessa de ofícios às fazendas públicas, nas três esferas de governo, indagando acerca da regularidade fiscal dos cônjuges, tratando-se de condição sine qua non à viabilidade do pleito, sem qualquer prejuízo à possibilidade de posterior questionamento por parte daqueles que se sentirem prejudicados.
A sentença que autoriza a mudança do regime de bens vale como instrumento hábil à revogação do pacto antenupcial, passando a produzir efeitos a partir de seu trânsito em julgado. Tem-se como desnecessária a lavratura de novo pacto isso porque a decisão judicial sobrepõe a solenidade da escritura. O correspondente mandado servirá para registro e averbação no Registro de Imóveis nos termos em que dispõe o art. 167, incisos I, item 12, e inciso II, item 1, da Lei n. 6.015/73, para publicidade da sentença e sua eficácia erga omnes. Caso será, também, de proceder-se à averbação no Registro Civil, junto à certidão de casamento dos interessados, em face da mudança no regime de bens anteriormente anotado.
A respeito do termo inicial de vigência do novo regime de bens, se a partir da sentença ou retroativo à data do casamento, há que se levar em conta a formulação do pedido e os termos da decisão proferida pelo juiz.
Normalmente, os efeitos se operam ex nunc, preservando-se, pois, a situação anterior originada pelo pacto antenupcial, até o momento da mudança. Mas não se descarta a possibilidade de pedido de modificação do regime ex tunc, cabendo ao juiz examinar, ainda com maior cautela, a proteção dos direitos das partes requerentes e de terceiros interessados, para então decidir, se for o caso, pela autorização do novo regime de bens em caráter retroativo à data da celebração do casamento.
Todavia, ainda que conferido efeito ex tunc à decisão modificativa do regime de bens, ainda assim, o dispositivo legal em questão estabelece a ressalva aos direitos de terceiros, portanto, ainda que o regime de bens venha a ser modificado por decisão judicial, comprovada qualquer violação à direito de terceiros, no caso específico, prevalecerá o regime anteriormente pactuado.
Trata-se de questão controvertida, bem se reconhece, sobre a qual deverá, em breve, se manifestar o poder judiciário através de casos concretos, exigindo ainda estudos mais aprofundados por parte dos juristas e demais operadores do direito.
BIBLIOGRAFIA:
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