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A inexeqüibilidade da cédula de crédito

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01/10/2000 às 00:00
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RESUMO DOS REQUISITOS MATERIAIS

O processualista italiano Francesco Carnelutti (Istituciones del Proceso Civil, trad Santiago Melendo, Buenos Aires, Ejea, 1973, vol 1, p.271) define com brilhante concisão o título certo como aquele sobre o qual não recaem dúvidas acerca da sua existência; o título líquido quando não pende objeção quanto à determinação do objeto; e o título exigível quando irrestritamente atual.

Então está claro que a cédula de crédito industrial será título exigível desde que vencido o prazo sem devolução do valor financiado, e será certo se atendidos os requisitos do artigo 14 do Decreto-Lei 413/69 e não houver desvio de finalidade (artigos 1º e 2º). Mas não poderá ser título líquido já que sempre dependente de apuração do saldo devedor da conta-corrente vinculada (liqüidação). Além de não ser líquido, não poderá ser executivo por não constar no elenco do artigo 585 do Código de Processo Civil. Assim, dois dos cinco requisitos materiais não estão presentes, o que por si basta à inexeqüibilidade do título.

Ainda há, inobstante, mais uma falta, que é a do requisito formal, da inadequação da via. Antes, contudo, de se adentrar neste tópico, é importante apontar uma analogia desta espécie de título com outra, que nos tribunais vem sendo inadmitida à execução por razões correlatas: o contrato de abertura de crédito em conta-corrente. Pela natureza similar, ambas as hipóteses têm em comum requisitos que autorizam a comparação. É um reforço à demonstração de que a cédula é inexeqüivel por carecer de liqüidez e executividade.


ANALOGIA COM CONTRATO DE ABERTURA DE CRÉDITO

Há um entendimento jurisprudencial pacificado em torno da inadmissibilidade do contrato de abertura de crédito em conta-corrente como título executivo.

A analogia é aplicável porque o financiamento que embasa a cédula de crédito industrial tem natureza jurídica semelhante ao contrato de abertura de crédito em conta-corrente.

A cédula de crédito industrial é o meio de financiamento à atividade industrial instituído pelo Decreto-Lei 413/69. De acordo com o artigo 4º desta norma, o financiador abre uma conta vinculada à operação em nome do financiado. Diz o comercialista Rubens Requião (Curso de Direito Comercial, 2º vol, 20ªed, Saraiva, SP, 1995, p.475) que "o contrato, portanto, é de abertura de crédito". Em verdade, é uma espécie de abertura de crédito, já que comporta diferenças.

A abertura de crédito é, no dizer de Caio Mário da Silva Pereira (Instituições de Direito Civil, 4ªed, Forense, Rio, 1978, vol 3, p.241) "o contrato pelo qual o banco se obriga a por à disposição do cliente uma soma dentro de um dado limite quantitativo, e por um certo prazo, acatando-lhe os saques ou acolhendo suas ordens".

Sérgio Covello (Contratos Bancários, 2ªed, Saraiva, SP, 1991, p.200) o classifica de consensual, bilateral, oneroso, intuitu personae, de execução continuada e não solene, podendo ser simples ou em conta-corrente. Esta última modalidade é a que interessa.

O contrato de abertura de crédito em conta-corrente é a espécie que mais se aproxima da operação representada pela cédula de crédito industrial, já que o banco põe à disposição do cliente, numa conta-corrente, o valor financiado, a ser devolvido no prazo estipulado. As semelhanças, todavia, param aí.

No contrato de abertura de crédito em conta-corrente há liberdade do creditado (correntista) em retirar o valor, integral ou parcialmente, a qualquer tempo e para qualquer fim.

Já no caso do financiamento através da cédula de crédito industrial as retiradas – forma e datas – são previamente estipuladas no próprio título (artigo 4º) e o valor financiado deve ser utilizado "nos fins ajustados" (artigo 2º), dentro de atividades industriais (artigo 1º). O contrato há de ser tratado, então, como uma modalidade especial da abertura de crédito em conta-corrente.

E esta espécie contratual não tem sido admitida, por reiterada jurisprudência do STJ e dos tribunais estaduais, como títulos hábeis à execução. Isto porque, segundo os estudiosos, tais contratos não refletem obrigação de pagar quantia certa e determinada. Estão consolidados os julgados do Tribunal de Justiça de Santa Catarina:

"Contratos de abertura de crédito em conta corrente, ainda que aparelhados com os correspondentes documentos de movimentação, não refletem obrigação de pagar valor certo e determinado, pelo que não comportam catalogação no preceito do art. 585, II do CPC, tornando nulas as contendas executórias neles respaldadas."

TJSC; ApCiv 97.002488-6, Brusque, rel Des Trindade dos Santos, 29.4.97.

"Contrato de abertura de crédito em conta corrente não constitui título executivo extrajudicial, segundo o previsto no art. 585, II, do CPC, por não consubstanciar obrigação de pagar quantia determinada (REsp. n. 761.420-SC, de 21.11.95). No mesmo sentido: Resp. n. 29.597, 36. 391 e 66.266)"

TJSC; AI 10606, Mondai, rel Des Francisco Oliveira Filho.

"Não refletindo obrigação de pagar quantia certa e determinada, os contratos de abertura de crédito em conta corrente, ainda que a eles se acoplem unilaterais extratos de movimentação das contas respectivas, não se identificam como títulos dotados de exeqüibilidade, descomportando, assim, enquadramento nos ditames do art. 585, II, do CPC."

TJSC; ApCiv 96.010964-1, Lages, rel Des Trindade dos Santos, 15.4.97.

"O contrato de abertura de crédito em conta-corrente, mesmo que acompanhado de extratos de movimentação, não constitui título executivo extrajudicial, na forma do art. 585, II, do CPC, por não ser obrigação de pagar quantia determinada. Inexistindo título executivo hábil ao prosseguimento da execução, deve o processo ser extinto"

TJSC; ApCiv 96.010492-5, Joinville, rel Des Carlos Prudêncio.

Do Superior Tribunal de Justiça:

"Contrato de abertura de crédito em conta corrente não constitui título executivo extrajudicial como preconizado no art. 585, II, do CPC."

STJ; REsp 57171-5-SP, 17.4.95, rel Min Waldemar Zveiter.

"Contrato de abertura de crédito em conta corrente não constitui título executivo extrajudicial, segundo o previsto no art. 585, II, do CPC, por não consubstanciar obrigação de pagar quantia determinada. Precedentes."

STJ; Resp 66266-4-MG, DJU 18.9.95, rel Min Costa Leite.

"

O contrato de abertura de crédito em conta-corrente, mesmo que acompanhado de extratos de movimentação, não constitui título executivo extrajudicial, nos termos do art. 585, II, do CPC, por não ser obrigação de pagar quantia determinada. Precedentes."

STJ; Resp 71260/PR, DJU 1º.4.96, rel Min Cláudio dos Santos.

Então, a priori, por ter o contrato que embasa a cédula de crédito industrial natureza semelhante ao de abertura de crédito em conta-corrente, àquele seriam aplicados os julgados acima. Pelas mesmas razões a cédula de crédito industrial não constitui título executivo extrajudicial. Como dito, esta analogia vem reforçar os fundamentos que ora se apresentam.


INADEQUAÇÃO DA VIA PROCEDIMENTAL

Por fim, estabelecendo definitivamente a inexeqüibilidade da cédula de crédito industrial está o artigo 41 do Dec-Lei 413/69. É o arremate, com a demonstração de que o requisito formal – adequação procedimental – não se faz presente quando se pretende executar uma cédula de crédito.

O texto legal, sob o Capítulo VI, "Da Ação para Cobrança da Cédula de Crédito Industrial", diz assim:

"Art. 41 – (...) o processo judicial para cobrança da cédula de crédito industrial seguirá o procedimento seguinte: (...)"

Sendo especial o rito para cobrança desta espécie de título, segundo previsão na própria norma que o instituiu, nenhum outro há de ser admitido. Até porque o procedimento mencionado não é de natureza executiva, mas de conhecimento, ainda que de rito sumário, tanto que prevê instrução (item 5º), com produção de provas.

Rubens Requião (obra citada, vol 2, p.477) é taxativo ao dizer que a ação de cobrança da cédula de crédito industrial "segue rito especial estabelecido no Decreto nº 413, de 1969." E arremata:

"Com efeito, embora o Código de Processo Civil, no art. 585, tenha efetuado expressa menção, como títulos executivos extrajudiciais, à letra de câmbio, à nota promissória, à duplicata e ao cheque, não o fez em relação às cédulas de crédito industrial e às notas de crédito industrial.

Em nosso entender a alínea VII daquele art. 585 não se presta aos efeitos revogatórios da lei anterior, pois a ela não se refere expressamente.

A alínea referida apenas alude, de forma imprecisa e genérica, a ‘todos os demais títulos a que, por disposição expressa, a lei atribuir força executiva’. Por esses motivos sustentamos que a execução desses títulos industriais, como de resto também os títulos de crédito rurais (nº 684 infra) continuam sujeitos ao processamento disciplinado na lei especial."

Inobstante, outro indicativo de que à cobrança da cédula de crédito industrial não se aplica o processo de execução é o dispositivo excepcional constante no número 3º do artigo 41 do dito decreto-lei. Ali a norma faz exceção quando manda aplicar o CPC na parte relativa à penhora e desde que inexistindo conflito legal. Se esta é a exceção, a não-aplicação do Código é a regra. E esta regra não foi alterada pela lei processual de 1973.

Não se diga, por outro lado, que o Código de Processo Civil revogou ou derrogou este artigo do Decreto-Lei 413/69. Absolutamente não. A Lei de Introdução ao Código Civil determina no caput do artigo 2º que, não sendo caso de vigência temporária, "a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue".

No primeiro parágrafo o texto é:

"§ 1º - A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior."

No caso presente, o Código de Processo Civil não regulou inteiramente a matéria; nem mesmo parcialmente cuidou das cédulas de crédito e a respectiva cobrança. Do mesmo modo não há, entre o Codex de 1973 e o Decreto-Lei 413/69 qualquer incompatibilidade; as regras não se chocam em parte alguma. E, finalmente, não há em absoluto revogação expressamente declarada pelo CPC em relação à legislação das cédulas de crédito; o artigo 1220 é que poderia trazer este comando.

Então, definitivamente não houve revogação do Decreto-Lei 413/69 pelo Código de Processo Civil, nos termos do parágrafo primeiro do artigo 2º da Lei de Introdução ao Código Civil.

Confirmando, ainda, o inabalado vigor da lei em comento, é relevante trazer à lembrança também o parágrafo 2º do dito artigo 2º da LICC:

"§ 2º - A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior."

O Código de Processo Civil, por óbvio, é norma geral, que estabeleceu disposições extras às já existentes no Decreto-Lei 413/69. Sua sistemática pode ser aplicada para o preenchimento de lacunas naquele texto especial, mas nunca sobrepondo-se à regras preexistentes com as quais não tenha conflito. A propósito, é assim que preceitua, estritamente em relação à penhora, o artigo 41, número 3º, da Lei da Cédula de Crédito Industrial.

O comando de que a regra aplicável seja a norma especial continua no texto em vigor, não havendo qualquer conflito e não existindo qualquer revogação ou derrogação pelo CPC.

Desta forma, vê-se claramente que se a via procedimental determinada pela lei é o processo de conhecimento, não tem como subsistir o processo de execução. Da mesma forma como não se poderia, verbi gratia, pretender executar um cheque pelo rito do artigo 733 (dívida de alimentos), pedindo a prisão do devedor.

Obviamente o processo seria extinto sem julgamento do mérito, pois a via é inadequada, sem embargo de ser o cheque desprovido de exeqüibilidade na execução de alimentos do artigo 733, cujo título sempre será judicial. Inviável, portanto, o processo de execução para instrumentalizar a pretensão de cobrança de dívida originada em cédula de crédito.

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CONCLUSÃO

Dos cinco requisitos materiais (condição de título, executividade, certeza, liqüidez e exigibilidade), dois não restam atendidos pela cédula de crédito: executividade e liqüidez. E o requisito formal, que é a adequação procedimental, igualmente não se faz presente.

Por isto é que, seja pela natureza jurídica da qual resulta a iliquidez, seja pela atipicidade legal do título como executivo, seja pela via procedimental especial para cobrança, conclui-se pela inexeqüibilidade da cédula de crédito industrial, que não pode ser levada à execução segundo o processo previsto pelo Livro II do Código de Processo Civil.


CONSEQÜÊNCIAS PRÁTICAS NOS PROCESSOS EM CURSO

Antes de analisar o mérito de qualquer demanda, o juiz verifica a existência e a regularidade da relação jurídica processual (pressupostos processuais), bem como a aptidão ao exercício do direito de ação (condições da ação). São condições da ação a legitimidade das partes, o interesse processual e a possibilidade jurídica do pedido.

A tese ora sustentada demonstra, salvo melhor juízo, que a cédula de crédito não pode servir de título para uma execução. Parece mais razoável que isto represente impossibilidade jurídica do pedido, já que contraria norma posta. Mas também se pode considerar que seja falta de pressuposto de constituição do processo, pois a lei exige requisito (título executivo) desatendido. De qualquer modo, seja por impossibilidade do pedido ou por falta de pressuposto, a conseqüência será a extinção do feito sem julgamento do mérito.

Certas nulidades podem ser alegadas em qualquer fase processual, em qualquer grau de jurisdição. Não apenas pela nulidade em si, mas principalmente por envolver questão de ordem pública. Na processualística jurídica há sempre interesse público naquilo que representar violação às regras de administração da contenda. A parte até pode dispor de seus direitos processuais, mas ao Poder Judiciário não cabe deixar de apreciar a questão.

Diz o parágrafo terceiro do artigo 267 que "o juiz conhecerá de ofício, a qualquer tempo e grau de jurisdição", as matérias elencadas nos incisos IV, V e VI do caput, entre as quais a impossibilidade jurídica do pedido (falta de condição da ação) e ausência de pressupostos de constituição do processo. No caso de um processo de execução em curso, baseado em cédula de crédito, a solução, a qualquer tempo e em qualquer grau, deve passar, necessariamente, pelo reconhecimento da nulidade processual.

E, em instância superior, não se pode falar em ausência de prequestionamento, porque, como já dito, é questão a ser conhecida em qualquer grau de jurisdição e a qualquer tempo, como diz a lei. Para esta matéria não há preclusão, pois o próprio CPC, no artigo 267, § 3º, dispõe que se o réu não alegar na primeira oportunidade responderá pelas custas de retardamento. Isto significa que não preclui a matéria e, portanto, não se aplica para a hipótese a necessidade do prequestionamento. De modo que os processos de execução em curso, seja em que grau estiverem, baseados em cédula de crédito, podem ser extintos com base nos fundamentos expostos, bastando petição avulsa requerendo o conhecimento da questão.

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Sobre o autor
Nelson Zunino Neto

Advogado, pós-graduado em Direito Eleitoral e em Direito Ambiental, atuante principalmente em Direito Eleitoral, Empresarial, Administrativo e Civil. Autor do livro Tempo mínimo de propaganda eleitoral em rádio e tv, 2020.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ZUNINO NETO, Nelson. A inexeqüibilidade da cédula de crédito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 46, 1 out. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/750. Acesso em: 20 abr. 2024.

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