Sumário: 1. Introdução. 2. Espécies de legitimidade no âmbito do processo civil. 3. Legitimidade da ação popular: ordinária ou extraordinária? 3.1. Cidadão-autor como legitimado extraordinário. 3.2. Cidadão-autor como legitimado ordinário. 3.3. Uma terceira proposta: legitimidade autônoma 4. Conclusão 5. Referências Bibliográficas.
1. INTRODUÇÃO
Em sede de ação popular, remédio constitucional instituído com a função ímpar de desconstituir atos lesivos ao patrimônio público, o art. 5º, inciso LXXIII, da Carta Magna e o art. 1º da lei nº 4.717/65 concedem a qualquer cidadão a capacidade de ser parte legítima para propositura dessa ação.
Em se atendo especificamente ao aspecto dessa legitimidade, podem ser levantadas uma série de questões a respeito da sua natureza, suscitando dúvidas em relação à sua classificação na modalidade ordinária ou extraordinária, de acordo com os conceitos dispostos na disciplina do direito processual civil, com a matéria disposta no art. 6º do nosso Estatuto dos Ritos.
Ao longo deste trabalho, estão as principais considerações referentes a cada uma das modalidades de legitimação e a justificativa em classificar o cidadão autor da ação popular em cada uma delas. Afora as espécies ordinárias e extraordinárias, apresenta-se, ainda, uma terceira possibilidade de solução para o questionamento acerca da natureza dessa legitimidade: a autônoma.
Sem a pretensão de esgotar o tema em sua plenitude, as linhas que se seguem possuem o objetivo de analisar a legitimidade do cidadão-autor na ação popular, na defesa de interesses classificados como difusos, de caráter constitucional.
2. ESPÉCIES DE LEGITIMIDADE NO ÂMBITO DO PROCESSO CIVIL.
Dentre as condições necessárias para a existência de uma ação, e seu conseqüente pronunciamento de mérito1, está a legitimidade ad causam, consagrada na doutrina como a qualidade essencial para se estar em juízo, figurando no pólo ativo ou passivo de uma dada relação processual.
Em se atendo o objeto para a análise da legitimidade ativa, esta requer uma correlação entre a causa e aquele que pode vir a pleiteá-la, numa estreita ligação com a titularidade do direito demandado em juízo. Essa condição da ação estabelece que, para se acionar o órgão jurisdicional, mister se faz que o direito da pretensão seja próprio de quem postula a ação, ressalvados os casos de substituição processual previstos em lei.
Tal é o entendimento extraído da leitura do art. 6º do Código de Processo Civil (CPC), que preceitua: "ninguém poderá pleitear, em nome próprio, direito alheio, salvo quando autorizado por lei". Decorrem daí duas espécies de legitimação: a ordinária e a extraordinária.
A capacidade de o próprio indivíduo defender interesse seu é o exemplo clássico da legitimidade ordinária. Aciona o órgão jurisdicional em nome próprio, demandando direito cuja titularidade é sua. Nesse sentido, ensina Mazzilli2 que a quem afirma ser titular do direito material cabe invocar sua proteção em juízo, ou, em outras palavras, ao próprio lesado compete a defesa de seu interesse.
De caráter excepcional, somente sendo admitidos em casos expressamente definidos por lei, encontra-se a legitimação extraordinária. Esta, por sua vez, na lição de Marinoni3, permite que alguém postule em nome próprio, mas em defesa de direito alheio, onde a titularidade do direito material nada tem a ver com a legitimidade para ação.
Numa crescente busca pela efetividade do processo, a figura da legitimação extraordinária vem sendo adotada para a defesa de interesses não-individuais ou supra-individuais4, tal como ocorre com os interesses difusos, onde se torna impossível a identificação ou a particularização dos titulares desses interesses, atribuindo-se, portanto, a legitimidade a alguém para agir em juízo em nome dos demais.
A diferença entre a legitimidade ordinária e a extraordinária é bem clara, levando-se em conta a titularidade do direito a ser postulado em juízo. Há determinadas situações, porém, em que muito se discute, na doutrina, acerca da natureza da legitimidade, em função da dificuldade de se classificar quando o legitimado para a ação defende tanto interesse que lhe é próprio como interesse alheio.
Tal seria o caso do cidadão na ação popular, cujas minúcias serão analisadas a seguir.
3. LEGITIMIDADE DA AÇÃO POPULAR: ORDINÁRIA OU EXTRAORDINÁRIA?
Inserida no rol dos direitos e garantias fundamentais e enquadrada como remédio constitucional, a ação popular, cuja legitimidade é conferida ao cidadão, a teor do art. 5º, LXXIII, visa a anular o ato lesivo: ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural.
Segundo Gregório Assagra de Almeida, a ação popular é colocada à disposição do cidadão como decorrência de seu direito político de participação direta na fiscalização dos poderes públicos, para o controle jurisdicional dos atos ou omissões ilegais ou lesivos5.
Em assim sendo, o cidadão, em nome próprio, no exercício de um direito de participação que lhe é garantido pela Constituição Federal, é a única parte legítima a ingressar como autor na ação popular. Essa legitimidade, no entanto, seria ordinária ou extraordinária? Estaria ele agindo em defesa de direito próprio ou alheio?
Partindo para a análise mais pormenorizada dos interesses em jogo e da sua respectiva titularidade, temos que o objeto constitucional dessa ação é a proteção da res publica, com a finalidade de desconstituir o ato lesivo aos interesses constitucionais dispostos no inciso LXXIII do art. 5º da Carta Magna. Trata-se de interesses difusos, de caráter amplo e que atingem a toda a coletividade. Nesse sentido, ensina Mancuso:
Ao contrário do que sempre se entendeu quanto aos conflitos intersubjetivos de cunho individual, os interesses difusos, por definição, não comportam atribuição a um titular definido, em termos de exclusividade: eles constituem a reserva, o arsenal dos anseios e sentimentos mais profundos que, por serem necessariamente referíveis à comunidade ou a uma categoria como um todo, são insuscetíveis de apropriação a título reservado. Do fato de se referirem a muitos não deflui, porém, a conclusão de que sejam res nullius, coisa de ninguém, mas, ao contrário, pertencem indistintamente, a todos; cada um tem título para pedir a tutela de tais interesses.6
Destacando alguns pontos principais do trecho acima, tem-se que os interesses difusos se referem a sujeitos indeterminados, onde cada um possui a titularidade do mesmo. Um não exclui o outro, todos são interessados em conjunto. Em assim sendo, a defesa de um interesse desse gênero envolve titularidades concorrentes e não excludentes: a do indivíduo em sua singularidade e a da coletividade em que ele está inserido.
Na ação popular, cujo escopo é a proteção dos interesses difusos por força da própria Constituição Federal, algumas considerações podem ser levantadas acerca da natureza da legitimação.
3.1. Cidadão-autor como legitimado extraordinário
Nesta primeira hipótese, para um determinado número de doutrinadores, a legitimidade do cidadão na ação popular é extraordinária, figurando como verdadeiro substituto processual, agindo em defesa do interesse de toda a coletividade ou, na visão de Cintra, Grinover e Dinamarco, em defesa do interesse da Administração Pública.7
Não se trataria de defesa de direito próprio, mas de todo o seio social, no qual o cidadão está inserido. O próprio juiz conhecedor da ação popular examinará a pretensão da coletividade, e não a pretensão individual do cidadão-autor, verificando se o ato lesivo atinge aos interesses pertencentes a todos.
O interesse principal estaria ligado à idéia de que os interesses difusos são de sujeitos indeterminados, uma vez que atingem um contingente demasiado significativo. A titularidade pertence a todos, e o cidadão, por economia e efetividade processual, substitui os demais membros da coletividade, postulando em juízo de maneira a alcançar a todos com o pronunciamento da decisão final de mérito. O seu objetivo é defender o direito dos demais. O interesse da coletividade se sobressai diante do interesse do cidadão-autor em sua individualidade.
O efeito erga omnes atribuído à decisão de mérito, conforme preceitua o art. 18. da lei da ação popular, nº 4.717/658, desde que não julgada improcedente por insuficiência de provas, representa também o caráter de legitimado extraordinário do cidadão, onde, graças ao exercício do seu direito de ação, obteve uma sentença que atingisse todo o seio social, tutelasse o interesse da coletividade, alcançando os demais que não figuraram no processo. Não haveria a restrição do efeito inter partes, tal como ocorre com a legitimação ordinária, somente vinculando as partes litigantes, não alcançando terceiros estranhos ao processo, a teor da primeira parte do art. 472. do CPC.9
E, ainda, diante da impossibilidade de se reconvir em sede de ação popular, uma vez que não há como se admitir que o réu venha a formular qualquer contrapretensão ao cidadão-autor, afigura-se a hipótese de legitimação extraordinária, em conformidade com o parágrafo único do art. 315. do CPC: "não pode o réu, em próprio nome, reconvir ao autor, quando este demandar em nome de outrem". Em base disso, o interesse postulado em juízo é de toda a coletividade, atuando o cidadão como um verdadeiro substituto, não sendo possível ao réu promover qualquer contra-ataque ao autor da ação popular, já que este defende direito alheio, da sociedade a qual faz parte. 10
Em que pese se tratar de proteção a interesses difusos, cuja titularidade pertence ao indivíduo em sua singularidade e à coletividade como um todo, para esta corrente de legitimação extraordinária o cidadão-autor vem a juízo proteger um bem maior que a sua pretensão particular, vem proteger toda a sociedade atingida por um ato lesivo à res publica, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural. Age, portanto, em defesa de direito de outrem, em proteção aos anseios da coletividade de que é membro.
3.2. Cidadão-autor como legitimado ordinário.
Para esta corrente, o cidadão atua em nome próprio, em defesa de direito próprio, uma vez que é titular do interesse difuso. Seria, portanto, um legitimado ordinário, não substituindo nem representando ninguém, apenas defendendo um interesse seu de ver resguardada a res publica, a moralidade administrativa, o meio ambiente e o patrimônio histórico e cultural. O fato de o interesse do cidadão pertencer conjuntamente aos demais membros da coletividade não retira o caráter de defesa de um direito seu, próprio, de uma posição jurídica sua, referente à conduta proba do Poder Público. 11
Todo cidadão tem direito a uma gestão eficiente e adequada aos princípios constitucionais que regem a coisa pública. A própria Carta Magna, em vistas de assegurar o exercício desse direito, atribuiu a possibilidade de acionar o órgão jurisdicional através da ação popular, figurando como um fiscal do patrimônio da sociedade.
A legitimação desse remédio constitucional foi conferida ao cidadão, ao indivíduo, sem qualquer ressalva em relação ao caráter de substituto processual, nem ao menos qualquer estabelecimento de vínculo jurídico entre o cidadão-autor e os demais cidadãos também titulares do mesmo direito.
A legitimidade se dá na modalidade ordinária em função de que o interesse do cidadão em ingressar com uma ação popular é fazer resguardar uma pretensão própria, é defender o seu direito particular de resguardar a res publica que lhe pertence. Embora a finalidade seja de índole coletiva, esta se dá pela via reflexa, em conseqüência do atendimento da sua pretensão em particular.
Em relação ao efeito erga omnes do art. 18. já mencionado anteriormente, esse se dá em virtude da natureza coletiva da pretensão e não do caráter de substituto processual do cidadão. No fenômeno da substituição processual, o legitimado extraordinário não é atingido pela coisa julgada, somente o sendo o substituído 12. E, em sede de ação popular, o cidadão também é atingido pela decisão de mérito, ressalvada a hipótese de improcedência por insuficiência de provas.
Ensina Mancuso:
Quando toma tal iniciativa, o autor popular está exercendo, enquanto cidadão no gozo de direitos políticos, a sua quota-parte no direito geral a uma administração proba e eficaz, pautada pelos princípios assegurados nos arts. 37, 170, 215 e outros da CF. Sob essa óptica, não haveria necessidade de recorrer-se à figura da substituição processual, para explicar sua atuação em juízo. 13
A impossibilidade de se reconvir, em contraposição à justificativa da legitimação extraordinária, não se dá em função do parágrafo único do art. 315, citado em um momento anterior, mas por puro impedimento lógico, uma vez que não haveria a possibilidade de o cidadão-autor ser atacado por meio de uma ação conexa à popular, que pretende uma anulação ou declaração de nulidade do ato público, figurando como réu.
É um direito do próprio cidadão e ele atua em defesa desse seu interesse. Corresponde ao exercício direto da sua função fiscalizadora, figurando como um legitimado ordinário, nos moldes do art. 6º do CPC.
3.3. Uma terceira proposta: legitimidade autônoma
Pela definição dada a respeito dos interesses difusos, foi visto que os mesmos apresentam uma titularidade especial, atribuída ao indivíduo de per si e à coletividade em sua totalidade. Trata-se de interesses sem destinatários determinados ou passíveis de identificação ou quantificação.
Desta maneira, enquadrando a ação popular em sede das ações coletivas, em função da defesa de ideais difusos, uma nova linha de pensamento se inclina no sentido de reconhecer uma terceira modalidade de legitimação ativa, principalmente diante da deficiência de se aplicar o art. 6º do CPC, voltado para a tutela dos conflitos de interesses interindividuais 14, em sede de causas supra-individuais, como ocorre no remédio constitucional em tela.
D acordo com Nelson e Rosa Nery,
Na hipótese de a legitimação legal para agir ser para a defesa de direitos de pessoas indeterminadas, direitos esses difusos ou coletivos, não ocorre a substituição processual como se concebe no processo civil individual. A natureza dessa autorização legal é ‘legitimação autônoma para a condução do processo (selbständige Prozessführungsbefugnis)’. É autônoma porque totalmente independente do direito material discutido em juízo: como os direitos difusos e coletivos não têm titulares determinados, a lei escolhe alguém ou algumas entidades para que os defendem em juízo. 15
O cidadão é titular do direito posto em juízo, mas também o é a coletividade. Não há como se identificar se ele age em defesa de um interesse próprio ou alheio, uma vez que ambos são concorrentes e não excludentes. O interesse em questão, objeto da ação popular, possui titularidade ampla, tornando a discussão sobre a legitimação ordinária ou extraordinária sem um termo final.
Já que a situação é anômala, assim também seria a legitimidade do cidadão-autor, sendo, então, a espécie autônoma, conjugando a defesa de direito próprio e alheio, a melhor saída para a situação-problema.
Embora abordando o tema em sede de ação civil pública, podendo ser transportado para a ação popular em virtude dos interesses difusos em jogo, Mancuso defende:
[...] a se admitir uma tal qualificação, tornar-se-ia necessário acrescentar que se trata de legitimação anômala de tipo misto, porque as entidades nominadas no texto em questão exerceriam legitimação ordinária (na ‘parte’ em que são portadoras de um ‘interesse próprio’) e legitimação extraordinária (na ‘parte’ que agiriam como representante ou substituto dos demais sujeitos a quem tocariam os interesses difusos). 16
A conjunção das duas espécies de legitimidade, previstas no CPC para disciplinar as relações de direitos individuais, dá origem à legitimação autônoma ou anômala de tipo misto, uma vez que não há como dissociar as duas em matéria de interesses difusos, por meio da ação popular.
E em assim entendendo, as questões suscitadas a respeito do efeito erga omnes da decisão e da impossibilidade de reconvenção perdem o objeto, uma vez que esta terceira modalidade de legitimação reúne as duas espécies dispostas no art. 6º do CPC, não mais se justificando a utilização desses argumentos para classificar em ordinária, em detrimento da extraordinária, e vice-versa.
4. CONCLUSÃO
Quando se discute a natureza da legitimidade do cidadão ao ajuizar uma ação popular, a problemática se atém em torno da titularidade dos interesses colocados em conflitos. Estes, assim chamados de difusos, alcançam não apenas o indivíduo legitimado a propor o remédio constitucional, mas também toda a coletividade a qual está inserido.
Em assim sendo, estaria o cidadão agindo em defesa de um direito de que detém a titularidade, correspondendo à modalidade ordinária do art. 6º do CPC, ou em defesa do interesse de todos os demais cidadãos, expressão da legitimação extraordinária?
Diante dos argumentos colocados com vistas a pôr fim a quaisquer dúvidas acerca da natureza dessa legitimação, parece-nos mais adequado optar pela solução proposta por Nelson e Rosa Nery e Rodolfo de Camargo Mancuso.
A legitimidade do cidadão-autor é específica das ações de caráter coletivo, referentes a interesses do próprio postulante da ação e dos demais membros da sociedade em que está inserido. Pretender classificá-la como puramente ordinária ou extraordinária seria o mesmo que negar a titularidade do interesse difuso em jogo ao cidadão ou à coletividade, uma vez que ambas são concorrentes em relação a interesses desse gênero.
Não haveria, portanto, como separar as duas espécies de legitimidade quando o cidadão ingressasse com uma ação popular. Os pontos de contato entre ambas são inegáveis, agindo o autor popular tanto em defesa de um interesse próprio, como em defesa de um interesse de toda a coletividade.
Porque se trata de um caso especial, o cidadão-autor da ação popular exerce o seu direito no papel de legitimado autônomo ou, como melhor soar para o caso, anômalo do tipo misto.