5.Defesa e proteção do Estado Democrático de Direito
O Estado, enquanto conjunção das dimensões institucional e individual, isto é, sentido lato e sentido stricto da formação social, usa dispositivos que visam à defesa e à proteção do modelo vigente, ou seja, a manutenção do status, mas nem sempre ficam claras as concepções de "defesa" e "proteção". É necessário resgatar o apropriado sentido jurídico destes dois termos, com vistas à compreensão dos diversos fatores, em ambas as dimensões, na consecução do Estado, preponderantes na inteligência da Eficácia Institucional de dispositivos constitucionais.
Defesa é modus operandi de proteção, enquanto esta última é diretamente a guarda como vínculo principal. O sentido de defesa está intrinsecamente ligado à ação que visa proteger. Contudo, a proteção não advém necessariamente de ação, podendo se manifestar também em forma de silêncio ou capitulação tácita.
Na dimensão institucional, como exemplo de proteção através de ação (defesa), poderíamos imaginar que o Estado, ao sofrer ameaça, usasse inclusive da força. Contudo a Constituição Federal não franquia ao Estado a utilização de defesa indiscriminada, e estabelece limitações do modus operandi da proteção deste e das instituições democráticas nos termos dos artigos 136 a 144. Entende o mundo livre, e a própria vontade maior de democracia de direito, que a entidade Estado, considerando sua pujança, não poderia receber "carta branca" de seus titulares para agir, mesmo para sua proteção.
Para Moraes (2004), que entende estes fenômenos como os Sistemas de Administração de Crises, a Constituição não permite o livre arbítrio do Estado (seus representantes) com vistas a minimizar a possibilidade de cometimento de abusos. Desta forma, a Carta Magna, que também é fruto de ricas experiências, comanda o limite claro entre as ações que visam à proteção do Estado e o totalitarismo. Parte substancial da doutrina constitucionalista, entretanto, corrobora com a dificuldade histórica de se apreciar estes atos discricionários pelo Poder Judiciário, em entendimento retilíneo acerca da conformidade com o dispositivo legal. Desta forma o Poder Judiciário não poderia apreciar o mérito político, mas tão somente os fatores que transcendem a posição normativa.
Contudo, comungamos com o entendimento de Di Pietro (2004) acerca da necessidade de fixação de limites aos atos discricionários, sejam relativos aos desvios de poder, ou no sopesamento dos motivos determinantes.
Também neste sentido entendemos que deva haver a conversão da dicção de Administração de Crises em maior correção semântica a partir de "Administração de Necessidades", pois, no caso específico de defesa e proteção do Estado, com o cuidado de não proceder a ingerências entres os poderes, esclareceria a natureza jurídica híbrida e estática do poder discricionário, e reconheceria na motivação justa sua primeira propulsão realizadora de atos. Esta discussão, a despeito da Carta Política de 1988 ter traçado mecanismos de proteção até mesmo em momentos como estes, em que o próprio Estado se defende, remanesce dos primeiros anos da República, por conta de renovações de estado de sitio e fechamentos do Congresso Nacional.
Ainda na dimensão institucional, em caráter mais diluído e por isso mesmo de difícil visualização, a proteção do Estado por vezes se manifesta através de dispositivos promotores de equilíbrio como o princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado, a função social da propriedade, ações pontuais como a produção normativa enquanto função não original dos poderes constituídos, ações declaratórias de constitucionalidade, entre ouros.
Não obstante, para o Estado Democrático de Direito deve restar claro que nenhuma necessidade de proteção justificará, por si só, e sem conseqüências, o uso dos dispositivos constitucionais de defesa. Esta mecânica jurídica flui com extrema facilidade no Estado brasileiro a partir de sua dimensão institucional, mas nem sempre visualizada pela sua dimensão individual.
Tais argumentações acerca da defesa e proteção do Estado - questão ainda mais ampla - são aqui necessárias somente como indicativos de que o Estado, embora não seja titular de direitos, possui vigorosos dispositivos de proteção institucional, mas estes são limitados por outros mecanismos de proteção do cidadão enquanto efetivo titular de todo processo.
Do ponto de vista da dimensão individual do Estado, a proteção se dá pela positivação de direitos dos cidadãos. A defesa desses direitos é efetuada através de dispositivos legais garantidores, materiais ou processuais, sendo também sua manifestação através de princípios consolidados no trabalho jurídico, bem como aqueles norteadores da representatividade e da administração pública. Existe também dispositivo que impede a usurpação de alguns direitos positivados, como as Cláusulas Pétreas (artigo 60, parágrafo 4° da Constituição Federal).
Cumpre ainda indicar, à luz da doutrina que se vem firmando, que a busca pela plena aplicabilidade das normas constitucionais, vinculando o legislador, tem sido outra vertente de defesa do cidadão para o cumprimento da vontade constituinte soberana.
No sentido deste trabalho, tem a dimensão individual do Estado mais um instrumento de defesa dos direitos historicamente requeridos pela sociedade, e que pode levar, como dissemos, não à eficácia operacional dos preceitos constitucionais, mas a solidificação destes no consciente coletivo, a ponto de conservar direitos e garantias mesmo havendo inovação do ordenamento jurídico maior. Este é o sentido da Eficácia Institucional.
As Cláusulas Pétreas, consideradas como última barreira entre o Estado Democrático de Direito e os modelos baseados no arbítrio, não são outros senão dispositivos de segurança construídos pelo poder constituinte, para assegurar que enquanto este Poder perdurar os titulares dele serão protegidos. Mas, é necessário abstrair que, sopesados ciclos histórico-políticos do Brasil, ainda existe o risco do constitucional originário, sendo este bastante para implantar totalmente uma nova ordem jurídica.
Assim, é licito que a Eficácia Institucional de dispositivos constitucionais seja a base indelével do direito, posto que advém do reconhecimento de institutos muito acima de qualquer poder que visasse reformas desconstitutivas de direitos. O veículo da Eficácia Institucional é a educação, exigível enquanto responsabilidade do Estado, que cumpre na forma de ensino. A educação é, portanto, não somente um direito positivado, mas o mais poderoso instrumento de proteção do homem livre.
Do enfoque de sua prestação pelo estado, a educação também pode ser vista em números, com vista a materializar seu desenvolvimento e assim mensurar o próprio Estado.
Segundo o IBGE (SIS, 2003), a população na faixa etária de 25 ou mais, isto é, historicamente a população com maior incidência de pais e mães, era de 99 milhões de pessoas. Destas, 85 milhões enquadravam-se no analfabetismo funcional [17]. Linhas gerais, significa imaginar que de cada 5 famílias brasileiras, 4 eram compostas de pais analfabetos funcionais .
A estes pais desprivilegiados da educação devemos agregar, proporcionalmente, outras 75 milhões de pessoas com idade entre 0 e 24 anos, que seriam os filhos, formando então 43 milhões de famílias de pais analfabetos funcionais.
Do universo de 75 milhões de filhos, somente 44 milhões freqüentam escolas (37 milhões delas no ensino público). Neste sentido, é licito calcular que de cada dois filhos destes pais apenas um é estudante.
Assim, os dados mostram que 80% das famílias brasileiras são formadas por pais analfabetos funcionais cujos filhos freqüentam escola. Destes jovens estudantes, 50% está em situação de distanciamento, posto que comporta jovens que trabalham durante o dia e estudam a noite (18 a 24 anos), e crianças em creches ou pré-escolas (0 a 6 anos). A outra metade dos filhos estudantes das 43 milhões de famílias educacionalmente desfavorecidas é composta pela faixa etária entre 7 e 17 anos, isto é, no ensino fundamental (7 a 14 anos), e ensino médio (15 a 17 anos).
A leitura do artigo 205 da Constituição Federal, que determina a responsabilidade pela educação ao Estado, a família e a sociedade, em relação às estatísticas, aponta para o cumprimento por parte do Estado de não mais que 20% desta responsabilidade. Quase a totalidade, isto é, 80%, recai sobre a sociedade que a divide com ações não governamentais, mídia, e a própria interação social.
Quanto às ações não governamentais, segundo as estatísticas (IBGE, 2002), a partir de 1990, isto é, logo após a Constituição Federal de 1988, foram criados 76% dos organismos que hoje operam com a defesa de direitos e minorias. Neste sentido, estes organismos representam hoje 16% do total de operação do Terceiro Setor (45 mil entidades). No total, os organismos não governamentais possuem 275 mil centros de atividades, sendo que a sua maioria (26%) é fundada em orientações religiosas e mais presentes nas regiões Nordeste e Sudeste.
Não conseguem, entretanto, atender mais do que 5% da sociedade, e nem sempre de forma gratuita. Exemplo sobre a implicação orçamentária em dispositivos educacionais produzidos sem a devida participação pecuniária do Estado é a cartilha pedagógica sobre o novo Código Civil (op. cit.), cujo conteúdo jurídico-pedagógico era inconfundível à proposta que hoje vemos como Eficácia Institucional, mas custava à família, à época, o equivalente a uma semana de provisão de carne, segundo informações do DIEESE [18] acerca do preço da cesta alimentar básica.
Com relação à educação, o Terceiro Setor tem operado muito mais na formação de unidades de ensino regular, e não especialmente em currículo de interesse jurídico com capacidade formadora. Outrossim, o estudo do IBGE de 2003 indica ainda que, embora seja obrigação do Estado, o atingimento da meta constitucional para o ensino fundamental (artigo 208, inciso I) foi de 97%, e em relação à progressão do ensino médio (inciso II) o atingimento foi de 75%.
Embora a meta constitucional para Estado quanto à educação esteja em vias de cumprimento nos próximos anos [19], é necessário que se clarifique que o projeto educacional brasileiro sofreu otimizações e reduções para obter maior fluxo em seu oferecimento. A eficácia operacional está, se não estabelecida, ao menos muito próxima da exigida. Contudo, não se pode afirmar que o mesmo ocorre quanto vemos pelo prisma da Eficácia Institucional.
Em 20% das famílias não há necessidade de maiores preocupações por parte do Estado, tendo em vista a posição relativamente estável em relação à educação. Entretanto, é possível observar que nos demais 80% dos núcleos familiares o Estado só participa com ¼ na formação cívica ideal.
Apenas como exemplo, poderíamos observar que a lei 8.663/93, que eliminou as disciplinas Educação Moral e Cívica, Estudos de Problemas Brasileiros, e Organização Social e Política do Brasil, também determinava que as cargas horárias destas disciplinas fossem convertidas em estudos de Ciências Humanas e Sociais (art. 2°). Neste sentido, a padronização curricular no ensino, que visa o cumprimento da meta constitucional, pode negligenciar a formação dos titulares do próprio Estado.
Braga (2004) entende que a sistemática educacional imposta pelo Estado suprime temas importantes na manutenção de sua própria característica de democrático de direito. Os PCNs de ensino médio, em ciências humanas, retirou-se o lastro Institucional pela ausência de estudo de importantes períodos do país, vilipendiando assim pontos esclarecedores para a construção jurídica do educando, em especial a fixação dos seus direitos. Exemplo é que no roteiro de ciências humanas destes PCNs não há uma única referência a Constituição Federal. Este fator é significativamente negativo, posto que na contramão do processo de fixação dos direitos, conforme o Ministro do STF Maurício Corrêa (Netto, 2003):
"Não há democracia sem participação ativa da sociedade civil e não há cidadania completa se homens e mulheres desconhecem seus direitos e deveres."
Os efeitos desta subtração podem ser severos e nocivos à conservação da democracia, pois a dilapidação do processo de reconhecimento jurídico do Estado é capaz de gerar ciclos sociais diferentes daqueles desejados pela Constituição Federal de 1988.
A questão, por óbvio, é a ausência de referência normativa nos conteúdos que levassem o educando a fazer contato prévio com o ordenamento jurídico ao qual pertence. Isto é, a proposta de se utilizar a Constituição Federal como referencial social, posto que ela possui especial característica analítica, capaz de abranger todos os temas contemporâneos, em especial aqueles que tratam dos direitos e garantias individuais, forma de governo, direitos políticos. Demais, fazendo tais dispositivos parte das chamadas cláusulas pétreas (art. 60, parágrafo 4°), nos parece evidente a inexistência de quaisquer óbices em sua difusão no circuito educacional. Nas palavras de Reale (Netto, 2003):
"Não se é cidadão, na plenitude desta palavra, sem um mínimo de consciência jurídica, assim como não se alcança a identidade nacional sem ter pelo menos notícia das partes mais importantes do ordenamento jurídico do País."
Os dados estatísticos sobre a educação promovida pelo Estado, através de observação mais profunda, mostram outro panorama que queremos destacar:
20% das famílias brasileiras possui, para sua proteção institucional, uma entidade que é, ao mesmo tempo, o orientador de direitos civis, educador, referencial comportamental de crianças, maior ou única perspectiva de desenvolvimento social, e base de um modelo político que se pretende democrático. Esta entidade é uma pessoa com não mais que 17 anos de idade, cursa os primeiros anos do ensino médio em uma escola pública, e em geral é pobre.
Infelizmente, a mesma pessoa que socorre institucionalmente a família é sobrecarregada por questões jurídicas relevantes: está mais acessível ao crime, alvo da política desenfreada de consumo, e bem mais cedo do que imagina sairá da proteção do do Estatuto da Criança e do Adolescente – lei 8,069/90. Sairá, aliás, sem conhecê-lo.
Também aos 16, o Estado, por conta da "democracia", permite-lhe votar (CF art. 14, parágrafo 1°, "c") sem saber o que é um partido político e qual sua importância história, ao mesmo tempo em que lhe "requer a cabeça" em perspectiva de maioridade penal (PEC – Projeto de Emenda Constitucional n° 173/93), sem lhe ensinar o que é ampla defesa (art. 5°, LV). De tão escassos e referentes estes jovens vivem a intolerância nacional, pois que não lhes são dados o direito de errar, isto é, se apenas um deles perder a fé no modelo constitucional, por sua posição estratégica social, arrastará uma geração passada e uma futura, engessando o Estado Democrático de Direito, que, sem que soubessem foi construído exatamente para servi-lo.
As demais famílias registradas no infortúnio educacional nacional (60%) adquirem educação através da mídia (em geral televisiva), vez que a condição de analfabetos funcionais não lhes permite obtê-la pela via escrita, ou fica à sorte das boas ações das organizações não governamentais. Estas famílias, segundo estatísticas (IBGE, 2001), contém pessoas na faixa etária de 15 a 17, mas 25,5% delas não estudam porque trabalham, e 5,9% não estudavam devido à distância entre a escola e seus lares, ou porque não havia vagas, situação já trazida de 1997 quando apenas 30,8% das pessoas desta faixa etária estavam no ensino médio.