INTRODUÇÃO
O presente estudo tem por objetivo investigar a possibilidade de reconhecimento da vulnerabilidade das “mulas” do tráfico de drogas. Para tanto, será utilizado, como base, o texto de Ela Wiecko, então Vice-Procuradora Geral da República, intitulado “problematizando o conceito de vulnerabilidade para o tráfico de internacional de pessoas”, constante da cartilha sobre tráfico de pessoas agrupado pela Secretaria Nacional de Justiça[1].
DESENVOLVIMENTO
É de se sublinhar, de logo, que o termo “vulnerabilidade” vem sendo utilizado por diversos âmbitos de conhecimento e incorporado em outros textos normativos (legais e administrativos), abarcando, por exemplo, a vulnerabilidade social, socioambiental, psíquica, a doenças, ao HIV/AIDS, do consumidor, institucional, de redes e sistemas[2].
Em se tratando de direitos humanos, a vulnerabilidade comumente vem sendo referida expressamente em diversos documentos internacionais sob a nomenclatura de “grupos vulneráveis”, sendo necessário, contudo, pôr em discussão algumas questões, dentre as quais: ser vulnerável é uma característica intrínseca de certas pessoas ou grupos sociais? Ou, por outro lado, se trata de uma categoria relacional para determinada situação? Qual a funcionalidade da categorização da vulnerabilidade? A atribuição de vulnerabilidade produz estigma ou garante proteção?[3]
A integrante dos quadros do Ministério Público Federal rememora, nesse contexto, que a Declaração e Programa de Ação de Viena, adotada pela Conferência Mundial dos Direitos Humanos em 25/06/1993, possivelmente, foi o primeiro documento internacional relevante a utilizar o conceito de vulnerabilidade, impondo a promoção e proteção dos direitos humanos de pessoas pertencentes a grupos que se tornaram vulneráveis, a exemplo dos trabalhadores migrantes, com o objetivo de eliminar toda e qualquer forma de discriminação contra os mesmos e de fortalecer e implementar, de maneira mais eficaz, os direitos humanos existentes[4]. Percebe-se, com isso, que “não há pessoas vulneráveis por si mesmas, elas se “tornam vulneráveis” em determinados contextos”, como as minorias[5].
Conquanto o texto do Programa de Viena tenha feito referência a pessoas pertencentes a minorias nacionais, étnicas, religiosas e linguísticas, a classificação das minorias étnicas como grupos vulneráveis é contestada, haja vista que ao considerar, por exemplo, os povos indígenas como grupos vulneráveis, o texto permite enxergá-los numa posição de subalternidade, o que não se coaduna com o direito de livre determinação[6].
Por sua vez, no direito brasileiro, é válido destacar o documento relativo às Regras de Brasília Sobre Acesso à Justiça das Pessoas em Condição de Vulnerabilidade, cuja aprovação se deu na XIV Conferência Judicial Ibero-Americana, realizada em Brasília, nos dias 4 a 6 de março de 2008, o qual conceitua pessoas em situação de vulnerabilidade, conforme regras 3 e 4, a seguir transcritas[7][8]:
(3) Consideram-se em condição de vulnerabilidade aquelas pessoas que, por razão de sua idade, gênero,202 estado físico ou mental ou, por circunstâncias sociais, econômicas, étnicas e/ou culturais, entre outras, encontram especiais dificuldades em exercitar com plenitude perante o sistema de justiça os direitos reconhecidos pelo ordenamento jurídico.
(4) Poderão constituir causas de vulnerabilidade, entre outras, as seguintes: a idade, a incapacidade,203 o pertencimento a comunidades indígenas ou a minorias,204 a vitimização,205 a migração e o deslocamento interno, a pobreza, o gênero e a privação de liberdade.
Nota-se que “o documento não trabalha com o conceito de pessoas ou grupos vulneráveis, mas com pessoas ou grupos em condição de vulnerabilidade, as quais também não o são por si mesmas”, mas sim em decorrência de sua consequência para a restrição ou negação de direitos, de tal sorte que as causas ou os fatores da vulnerabilidade são variáveis no tempo, no espaço e no contexto[9].
Nesse ponto, ao tratar sobre os fatores de risca no sistema de justiça, Eugenio Raúl Zaffaroni, concentrando as suas pesquisas no contexto latino-americano, propõe a vulnerabilidade como base para a resposta criminalizante das agências penais, o que confere subsídios para um melhor entendimento da vulnerabilidade da vítima[10].
Com efeito, para o jurista argentino, “é o grau de vulnerabilidade que decide se uma pessoa vai ser selecionada como suspeita, indiciada, acusada ou condenada em razão de um crime”, não sendo, pois, a prática do crime em si, haja vista que existem muitíssimos mais injustos penais iguais e piores que não modificam o sistema penal, deixando-o indiferente[11].
Os fatores de vulnerabilidade, por sua vez, podem ser visualizados em dois grupos, a saber, posição ou estado de vulnerabilidade e o esforço pessoal para a vulnerabilidade, sendo o primeiro majoritariamente social, pautado no grau de risco ou perigo que a pessoa corre só por pertencer a uma classe ou grupo social, assim como por se encaixar em um estereótipo, e sendo o segundo predominantemente individual, pautado no grau do perigo ou risco em que a pessoa se sujeita em virtude de um comportamento particular[12].
É de se concluir, diante dos argumentos expostos, que a vulnerabilidade “é uma categoria de conteúdo relacional, cuja finalidade é de assegurar proteção a pessoas e grupos sociais”[13].
Impõe-se, no entanto, visualizar como a vulnerabilidade é abordada no Protocolo de Palermo. Nesse sentido, o seu preâmbulo “considera mulheres e pessoas com idade inferior a 18 anos, independentemente do sexo, como vulneráveis ao tráfico e, portanto, merecedoras de proteção internacional”[14]. Não obstante o documento internacional valorize, a todo instante, a proteção em especial às mulheres e crianças, deve-se ressaltar que os homens não estão expressamente excluídos de proteção[15].
A “situação de vulnerabilidade”, por outro lado, é definida pelo Protocolo como “um dos meios de que se valem os agentes do tráfico para obter o consentimento de pessoas para seu recrutamento, transporte, transferência, alojamento e acolhimento”, visando a exercer atividades ou permitir condutas que posteriormente venham se revelar como formas de exploração[16].
É digno de destaque que, em contraposição a outros casos que afastam o consentimento, no caso de “situação de vulnerabilidade”, o agente do tráfico de pessoas não dispende grande esforço para concretizar seu intento, “pois não precisa ameaçar, coagir, enganar, fraudar, sequestrar, abusar de autoridade ou corromper”, sendo suficiente o recrutamento, transporte, transferência, alojamento ou acolhimento de pessoa aproveitando-se ou prevalecendo-se de sua situação de vulnerabilidade, pouco importando qual a percepção que a pessoa recrutada tem a respeito de sua vulnerabilidade[17].
De mais a mais, registre-se que o Protocolo indica, no seu artigo 9, item 4, alguns fatores que tornam as pessoas, sobretudo mulheres e crianças, vulneráveis ao tráfico, quais sejam: pobreza, subdesenvolvimento e desigualdade de oportunidades[18].
Torna-se essencial, posto isso, esclarecer as definições de vulnerabilidade social e de pobreza.
Nessa linha de raciocínio, o exame sobre a vulnerabilidade social foi se construindo a partir do final do século XX, em decorrência das restrições dos estudos sobre a pobreza e sobre os limitados resultados das políticas associadas a eles na América Latina, motivando, inclusive, a realização de análises não só sobre o fenômeno da pobreza, mas também sobre as diversas modalidades de desvantagem social[19].
Atualmente, a vulnerabilidade social é entendida como sendo o resultado negativo do vínculo entre a “disponibilidade dos recursos materiais ou simbólicos dos atores, sejam eles indivíduos ou grupos, e o acesso à estrutura de oportunidades sociais, econômicas, culturais”, proveniente do Estado, do mercado e da sociedade[20]. Além disso, há enfoque nas estratégias de uso dos ativos pelos atores, visando a enfrentar as mudanças estruturais de um dado contexto social, sendo esses os três elementos essenciais à concretização de situações de vulnerabilidade de indivíduos, famílias ou comunidades[21].
A seu turno, a pobreza pode ser definida como um fenômeno “multidimensional em que, além da falta do que é necessário para o bem-estar material, há falta de voz, poder e independência, falta de infraestrutura básica, falta de ativos físicos, humanos, sociais e ambientais” causando, consequentemente, maior vulnerabilidade e exposição ao risco[22]. Assim, “no estágio teórico atual, valoriza-se a autopercepção das pessoas que são consideradas vulneráveis, bem como a sua voz”[23].
Em face de todo o exposto, entende-se que a vulnerabilidade, para fins de proteção pelo Protocolo de Palermo, diz respeito à situação de pobreza, subdesenvolvimento ou desigualdade de oportunidades (em suma, vulnerabilidade socioeconômica), especialmente vivenciada por mulheres e crianças.
Como visto alhures, outrossim, a razão dessa proteção especial a mulheres e crianças não é outra senão histórica, de forma que outras partes da população não estão excluídas daquilo que se convencionou a denominar de “grupos vulneráveis”. Sobre a temática, Bristain leciona que[24]:
Por grupos vulnerables entendemos aquellos amplios sectores de la población que por su condición de edad, sexo, estado civil, origen étnico, y otros factores etiológicos, se encuentran em condición de riesgo, de necessidade, de marginación... que les impede incorporarse al desarrollo y aceder a mejores condiciones de justicia y bienestar.
É digno de nota que, em se tratando de vulnerabilidade socioeconômica, nem sempre para se desvencilhar desse estado serão utilizados meios lícitos, o que, contudo, não afasta, por si só, a admissão da situação que aflige a vítima.
Por conta disso, admite-se a possibilidade de reconhecer a vulnerabilidade socioeconômica das “mulas” do tráfico de drogas, desde que se tenham evidências de que elas, por causas transitórias ou permanentes, se encontravam em estado de risco ou de marginalização, sendo, portanto, igualmente dignas de proteção internacional.
CONCLUSÃO
Diante das bases teóricas construídas, admite-se a possibilidade de reconhecimento da vulnerabilidade socioeconômica das “mulas” do tráfico de drogas, contanto que se tenham evidências de que elas, por causas transitórias ou permanentes, se encontravam em estado de risco ou de marginalização.
REFERÊNCIAS
BERISTAIN, Antonio. En los Grupos Vulnerables: Su Dignidad Preeminente, Victimal. In: Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias. Boletim da Faculdade de Direito. Universidade de Coimbra. Vol. III, Coimbra: Coimbra, 2010.
BRASIL. Secretaria Nacional de Justiça. Tráfico de pessoas: uma abordagem para os direitos humanos. 1ª ed., Brasília: Ministério da Justiça, 2013.
IBERO-AMERICANA, CÚPULA JUDICIAL. Regras de Brasília sobre acesso à Justiça das pessoas em condição de vulnerabilidade. In: XIV Conferência Judicial Ibero-americana. Brasília. Disponível em: <https://www.anadep.org.br/wtksite/100-Regras-de-Brasilia-versao-reduzida.pdf>. Acesso em: 20 de junho de 2019.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. Trad. Vânia Romano Pedrosa e Amir Lopes da Conceição. RJ: Revan, 1991, p. 270 e ss. apudBRASIL. Secretaria Nacional de Justiça. Tráfico de pessoas: uma abordagem para os direitos humanos. 1ª ed., Brasília: Ministério da Justiça, 2013.
[1] BRASIL. Secretaria Nacional de Justiça. Tráfico de pessoas: uma abordagem para os direitos humanos. 1ª ed., Brasília: Ministério da Justiça, 2013.
[2] Idem. Ibidem, p. 138.
[3] Idem. Ibidem, p. 139.
[4] Idem. Ibidem, p. 139.
[5] Idem. Ibidem, p. 139.
[6] Idem. Ibidem, p. 139.
[7] Idem. Ibidem, pp. 139-140.
[8] IBERO-AMERICANA, CÚPULA JUDICIAL. Regras de Brasília sobre acesso à Justiça das pessoas em condição de vulnerabilidade. In: XIV Conferência Judicial Ibero-americana. Brasília. Disponível em: <https://www.anadep.org.br/wtksite/100-Regras-de-Brasilia-versao-reduzida.pdf>. Acesso em: 20 de junho de 2019.
[9] Op. cit., p. 141.
[10] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. Trad. Vânia Romano Pedrosa e Amir Lopes da Conceição. RJ: Revan, 1991, p. 270 e ss. apud Idem. Ibidem, p. 142.
[11] Idem. Ibidem, p. 142.
[12] Idem. Ibidem, p. 142.
[13] Idem. Ibidem, p. 143.
[14] Idem. Ibidem, p. 135.
[15] Idem. Ibidem, p. 135.
[16] Idem. Ibidem, p. 135.
[17] Idem. Ibidem, p. 136.
[18] Idem. Ibidem, p. 136.
[19] Idem. Ibidem, p. 145.
[20] Idem. Ibidem, p. 146.
[21] Idem. Ibidem, p. 146.
[22] Idem. Ibidem, p. 147.
[23] Idem. Ibidem, p. 147.
[24] Tradução livre: “Por grupos vulneráveis entendemos aqueles amplos setores da população que por sua condição de idade, sexo, estado civil, origem étnica, e outros fatores etiológicos, se encontram em condição de risco, de necessidade, de marginalização... que os impede de entrar em desenvolvimento e acesso a melhores condições de justiça e bem-estar”. BERISTAIN, Antonio. En los Grupos Vulnerables: Su Dignidad Preeminente, Victimal. In: Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias. Boletim da Faculdade de Direito. Universidade de Coimbra. Vol. III, Coimbra: Coimbra, 2010, p. 1.226.