O elefante no quarto: drogas e direitos humanos na América Latina (Tradução)

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15/07/2019 às 23:39
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Trata-se de uma tradução do artigo “El elefante en la habitación: drogas e derechos humanos en America Latina” em que analisa uma possível revisão na atual política de drogas na região e no mundo. RESUMO

¹Juan Carlos Garzón e Luciana Pol

² tradução por Matheus Maciel 

Diante das violações sistemáticas dos direitos humanos, é necessário rever a atual política de drogas na região e no mundo.

RESUMO: O artigo procura mostrar como as convenções e leis sobre drogas têm estado em tensão com os direitos humanos, com múltiplos impactos e consequências negativas, sendo um multiplicador de violência e repressão dos setores mais vulneráveis da população nos países que é implementado. A partir de uma análise dos efeitos da implementação do Regime Internacional de Controle de Drogas e elementos críticos em relação à violação dos direitos humanos, aponta os desafios representados pela realização do Período Extraordinário de Sessões da Assembleia Geral das Nações Unidas (UNGASS 2016, na sigla em inglês) para a definição de política de drogas nas próximas décadas, com ênfase particular na região da América Latina.

Na prática, o Regime Internacional de Controle de Drogas (RICD) resultou em abuso sistemático Direitos Humanos (RH) e liberdades fundamentais. Apesar das múltiplas evidências sobre os efeitos produzidos pela severa aplicação das leis sobre drogas, apenas recentemente começou-se a falar abertamente sobre esse problema. Durante décadas, a aplicação e monitoramento das convenções de controle de drogas negligenciaram a obrigação predominante dos Estados em relação aos Direitos Humanos. As instâncias multilaterais encarregadas da vigilância do RICD exerceram seus mandatos ignorando o elefante branco na sala. Diante dessa realidade, as vozes que demandam a revisão da atual política de drogas, no período que antecedeu a Sessão Especial das Nações Unidas 2016 (UNGASS 2016), pediram uma avaliação, estão ficando mais fortes dos avanços e retrocessos do atual regime. Este artigo tem o objetivo de analisar brevemente a tensão entre a aplicação do RICD e a garantia dos direitos humanos, mostrando como o âmbito da chamada "guerra às drogas" tem sido negligenciado e, no melhor dos casos, tem feito referências marginais às responsabilidades pelos Direitos Humanos.

Em um segundo momento, serão apresentadas evidências de como, na prática, a aplicação das leis sobre drogas produziu múltiplos efeitos e consequências negativas - com ênfase especial na América Latina. Por fim, este texto apresentará os desenvolvimentos recentes com vistas à UNGASS 2016.


O elefante na sala: O divórcio das políticas de drogas e Direitos Humanos

O Regime Internacional de Controle de Drogas baseia-se em três tratados: a Convenção Única sobre Entorpecentes de 1961, a Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas de 1971 e a Convenção contra o Tráfico de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas de 1988. De forma geral, o regime tem o objetivo  de controlar drogas para assegurar sua disponibilidade para fins médicos e científicos, além de prevenir o desvio para outros usos de um conjunto definido de substâncias. A partir da leitura dos Direitos Humanos, é importante destacar que as três convenções contêm em seu preâmbulo referências à "saúde" e ao "bem-estar humano" como objetivos "morais" superiores. Por outro lado, os Direitos Humanos só aparecem explicitamente uma vez nos três tratados - Artigo 14 (2) da Convenção de 1988.

Apesar das referências superficiais aos direitos humanos, como acontece com qualquer outro tratado, o ponto de partida é que as convenções devem ser aplicadas e interpretadas de acordo com as obrigações que coincidem com os direitos humanos. Como Rodrigo Uprimny aponta, o dever dos Estados de respeitar esses direitos é um mandado baseado na Carta das Nações Unidas, que é um tratado que predomina sobre qualquer outra convenção, de modo que as obrigações dos Estados contra as drogas devem ser interpretadas de maneira compatível com as obrigações internacionais de Direitos Humanos- e não o contrário. No entanto, na prática, houve um divórcio entre o cumprimento dos compromissos assumidos no âmbito do RICD e as obrigações de Direitos Humanos.

Como esse divórcio pode ser explicado? Não há uma única resposta. Por um lado, é possível argumentar que as convenções obrigam os países a adotar sanções penais para combater todos os aspectos relacionados à produção, posse e tráfico de drogas, o que levou à aplicação de uma abordagem repressiva. A adoção predominante à natureza punitiva das responsabilidades levou a abusos dos direitos humanos e à deterioração das liberdades pessoais. A partir desta posição, o cumprimento das convenções estimulou a violação das obrigações em matéria de Direitos Humanos.

Por outro lado, como tem sido defendido pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), ainda que os direitos humanos tenham sido violados em nome da luta contra as drogas, nada nas convenções justifica ações como tortura, coerção, humilhação durante o tratamento ou a pena de morte. 

De fato, as convenções permitem que os países respondam de maneira proporcional oferecendo alternativas às condenações por crimes menores. Nesta perspectiva, o problema não está nas convenções, mas na sua interpretação. A realidade exige analisar as convenções não tanto por suas intenções, mas por seus resultados, que não foram afinados nem privilegiaram as obrigações dos Estados em Direitos Humanos. Como afirmado por Damon Barrett, o RICD não conhece os riscos derivados de sua aplicação, não tem diretrizes claras e específicas sobre este assunto e não tem instâncias para regular e monitorar seu cumprimento - como acontece, por exemplo, no caso de atividades comerciais ou contraterrorismo.

Somente em 2008 a Comissão de Entorpecentes das Nações Unidas (CND) adotou uma resolução sobre Direitos Humanos. A aprovação deste documento só foi possível após a eliminação das alusões à pena de morte, a declaração sobre os direitos dos povos indígenas e mecanismos específicos de Direitos Humanos da ONU. Desde então (2008), as garantias de Direitos Humanos têm aparecido com mais frequência em resoluções e declarações.

O Relator Especial sobre o Direito à Saúde expressou preocupação com "o fato de que a atual abordagem ao controle de drogas causa mais danos do que o que está tentando evitar". Em 2012, uma declaração conjunta de várias agências da ONU pediu aos Estados que fechassem os centros de reabilitação obrigatórios e implementar serviços de saúde baseados em Direitos Humanos. Em 2010, o UNODC produziu um relatório para a CND sobre políticas de controle de drogas e justiça criminal de uma perspectiva de Direitos Humanos. Além disso, em 2012, o UNODC publicou uma nota de orientação para seu pessoal.

Além disso, o Relatório de 2015 do Conselho Internacional de Controle de Entorpecentes (INCB) expressou preocupação com os Estados em que a pena de morte continua sendo aplicada por delitos relacionados com drogas e o Comitê de Direitos Humanos da ONU fez uma apelação aos países para que parassem com essa prática.

Pouco a pouco, as referências ao "elefante" começaram a aparecer, embora ainda haja uma resistência significativa de alguns Estados que não o consideram necessário para que a aplicação das leis sobre drogas cumpra as obrigações de direitos humanos. Por exemplo, mais de doze países incluem, em sua legislação, a punição corporal como uma opção de pena disciplinar por delitos relacionados a drogas. Além disso, países como a Rússia e a China se opõem abertamente a essa discussão. No entanto, o debate sobre os abusos tornou-se mais intenso, enquanto as consequências negativas persistem. A perspectiva punitiva ainda é a norma, com um uso excessivo de Direito Penal para responder a problemas diretamente ligados à saúde e ao desenvolvimento.


"A guerra contra as drogas": Uma história de abusos dos Direitos Humanos

A criação e o desenvolvimento do regime internacional de controle de drogas tiveram múltiplos abusos e impactos negativos como correlatos. Em 2008, o Relatório Mundial sobre Drogas do UNODC12 identificou uma série de "consequências negativas não intencionais" de ações para o controle de drogas. No mesmo ano, em um guia para seus funcionários, o UNODC admitiu que "há um risco menor, mas presente, de que as atividades do UNODC tenham um impacto negativo sobre os direitos humanos". Na prática, o RICD resultou em um sistema de riscos, em que a "garantia" acabou sendo a regra.

O relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), recentemente publicado, afirma que "em muitos países ao redor do mundo, os esforços de controle de drogas resultam em graves violações dos Direitos Humanos". Além disso, o PNUD declara que "as comunidades também enfrentam grandes abusos de direitos humanos por parte de organizações de tráfico de drogas". Sob o regime atual, os Estados não apenas não se abstiveram de interferir no respeito aos Direitos Humanos, mas não tomaram as medidas necessárias para garantir e protegê-los.

A lista de impactos é extensa e suas implicações são profundas. Em suas manifestações mais graves, a aplicação das leis sobre drogas levou à tortura, execuções extrajudiciais e desaparecimentos forçados por agentes do Estado. Em nome da "guerra às drogas" e da luta contra o crime, as instituições negligenciaram suas obrigações com violações sistemáticas e em não poucos casos maciços. Estas ações caíram especialmente nas populações vulneráveis - jovens, pobres e em situações de marginalidade. 

Em países onde a luta contra o tráfico de drogas tem sido mais intensa, como é o caso da Colômbia, Brasil, México e Honduras - para citar alguns exemplos -, a repressão traduziu-se literalmente em uma "guerra", com um inimigo definido (produtores, consumidores, portadores de pequenas quantidades ou grandes "capos"), o uso de dispositivos armados (ligando forças militares a tarefas de segurança pública) e milhares de vítimas.

As intervenções realizadas no âmbito do RICD exacerbaram a violência e a insegurança que propuseram remediar. A luta contra o narcotráfico afetou muitas comunidades diretamente afetadas, seja por sua localização geográfica em relação às rotas do tráfico, ou pela dinâmica de violência associada ao tráfico ou venda a retalho. 

Uma meta-análise conduzida por Werb et al. concluiu que a violência armada e as altas taxas de homicídio podem ser uma consequência da proibição. No México, um estudo recente de Valeria Espinosa e Donald Rubin descobriu que as intervenções feitas pelo Exército no contexto da repressão ao tráfico de drogas causaram um aumento nas taxas de homicídio. Na Colômbia, algumas estimativas indicam que as atividades de produção de drogas reivindicam entre 4.000 e 7.000 pessoas a cada ano e geraram entre 180.000 e 277.000 pessoas deslocadas.

A rigidez das leis sobre drogas privilegiou o uso do direito penal como resposta, com a aplicação de sanções desproporcionais e o aumento progressivo das penalidades. No caso específico da América Latina, tanto as penalidades mínimas como as máximas multiplicaram-se por 20 nos últimos 50 anos. Uma menção especial exige a imposição da pena de morte em 33 países e territórios por delitos relacionados com drogas. Centenas de pessoas foram executadas em países como a China, Irã, Paquistão, Indonésia e Tailândia. Além disso, meio milhão de pessoas estão em centros de detenção - como medida para seu tratamento - em países como o Camboja, o Vietnã e o Laos.

Em alguns países, a repressão ao mercado ilegal de drogas justificou a introdução de diferentes órgãos legislativos excepcionais, que são contrários ao processo. Sob o argumento da excepcionalidade do crime organizado e da complexidade para sua perseguição, leis e números têm sido aplicados como a raiz que injustificadamente estendeu os poderes do Estado para prender uma pessoa, minando o próprio senso de Justiça. Como aponta Alejandro Madrazo, os custos da guerra às drogas também são contabilizados em custos constitucionais, isto é, o abandono de certos compromissos básicos das democracias, que se manifestam principalmente na redução ou abandono dos princípios da lei fundamental ou a reestruturação das responsabilidades governamentais, modificações introduzidas nos sistemas jurídicos como uma necessidade para combater a ameaça do narcotráfico e o tráfico de drogas.

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O uso excessivo de medidas repressivas - a maioria relacionada a delitos menores - teve o impacto do crescimento da população encarcerada, agravando o problema de superlotação em vários países. Somente nos Estados Unidos, o número total de pessoas nas prisões cresceu de 330.000 em 1972 para quase 2,3 milhões de pessoas em 2011 Em média, 50% dos presos nas prisões federais e 20% dos presos em cadeias estaduais foram condenados por vender ou usar drogas.

No caso do Brasil, durante a vigência da Lei de Drogas (Lei nº 11.343/06), o mínimo da pena por tráfico foi aumentado ao mesmo tempo em que a posse para consumo pessoal foi descriminalizada. Mas a lei não estabelece distinção objetiva entre essas categorias. Como resultado, a incidência de crimes no sistema de justiça aumentou consideravelmente, aumentando sua participação no número total de prisioneiros. Em 2006, 47.472 pessoas foram presas por tráfico de drogas, o que representou 14% dos presos por todos os crimes. Para 2013, dados oficiais mostram que 30% da população carcerária cometeu crimes de tráfico de drogas. Prisioneiros por delitos de drogas são um grupo muito significativo na maioria dos países latino-americanos, 45% na Bolívia, 34% no Equador, 24% no Peru. Autores como Loic Wacquant identificam encarceramento como mecanismo de controle contra grupos marginalizados (em substituição até mesmo aos guetos sociais), com a guerra contra as drogas como aparato de apoio e justificativa do processo criminal.

Uma questão especial de preocupação é a prisão de mulheres por delitos relacionados com drogas. Na América Latina, a população carcerária feminina praticamente dobrou entre 2006 e 2011, passando de 40.000 para mais de 74.000, a maioria relacionada a pequenos crimes relacionados às drogas, com impactos devastadores para as presas, seus filhos, famílias e comunidades. Por outro lado, os programas de erradicação forçada e de fumigação agrícola tiveram impactos negativos nas populações. Em alguns casos, essas ações levaram ao deslocamento de pessoas, à deterioração de seu bem-estar, à insegurança alimentar e ao conflito social. No caso específico da Colômbia, há evidências de que o uso de glifosato na pulverização teve efeitos negativos sobre a saúde humana e também sobre o meio ambiente.

Além disso, a penalização do consumo e os obstáculos à implementação de programas de redução de danos estimularam comportamentos de alto risco - como o compartilhamento de seringas e agulhas - e a disseminação em alguns países de HIV e hepatite C. O tratamento punitivo de um problema saúde pública - como o vício e o uso problemático de drogas - também impediu o acesso a tratamentos de saúde de qualidade e aumentou probabilidade de overdose de drogas.

Em suma, os impactos negativos da aplicação punitiva do modelo proibicionista foram amplos e severos. Em termos de seus próprios objetivos, o RICD fez progressos modestos; Apesar do progresso parcial em alguns países - como no caso do declínio nos níveis de consumo de cocaína nos Estados Unidos e na Europa, acompanhado por uma queda na produção - a magnitude da demanda por drogas não mudou substancialmente a nível mundial. Mas, além de ter baixos níveis de eficiência, na prática, o RICD traduziu-se, em alguns países, em uma verdadeira crise humanitária que recaiu sobre os setores mais vulneráveis da população. O acima exposto, com maior ênfase nos países que adotam medidas repressivas em contextos de fragilidade institucional, caracterizados por baixos níveis de transparência e baixa capacidade do Estado de fornecer bens públicos aos seus cidadãos.

Os repetidos abusos dos Direitos Humanos e a restrição das liberdades constituem um problema sistemático difícil de esconder. Apesar das evidências, a resistência em observar a aplicação das políticas de drogas sob a perspectiva dos Direitos Humanos continua sendo forte. O RICD tende a se proteger e preservar seu sigilo,com o argumento de que mudanças nas políticas de drogas poderiam corroer o sistema e comprometer sua legitimidade. Diante dessa realidade, a UNGASS 2016 e o processo preparatório - com diferentes espaços de discussão nas esferas multilaterais - constituem uma oportunidade para deixar claro o divórcio entre a RICD e os direitos humanos e a necessidade de incorporar diretrizes para orientar a implementação de políticas de drogas.

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Sobre o autor
Matheus Queiroz Maciel

Advogado, Assessor da Prefeitura Muncipal de Lauro de Freitas, Especialista em Direito Processual Civil e Mestrando em Saúde, Ambiente e Trabalho pela UFBA

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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