I – O celebérrimo autor de A Arte de Furtar[1] não acabava consigo entender que, sendo uma só a verdade, afirmasse, porém, cada um dos litigantes, nos pleitos judiciais, que a tinha por si: “O que me admira é que tomem dois advogados uma demanda entre mãos e entre dentes; um para a defender e outro para a impugnar; este pelo autor e aquele pelo réu, e que ambos afirmem a ambas as partes que têm justiça. Como pode ser, se se contrariam, e um diz que sim e outro que não? Necessariamente um deles há de mentir, porque a verdade consiste em indivisível, como diz o Filósofo”[2].
A liberdade de opinião, atributo fundamental do homem, solenemente consagrada pelas constituições modernas (a do Brasil transcreveu-a em seu art. 5º, nº IV: “é livre a manifestação do pensamento…”), é a que enseja e explica essa contradição lógica; ela é a que escusa tais paradoxos e induz à diversidade de interpretações das regras de Direito.
Daqui a existência de exegese, muita vez antagônica, de um mesmo preceito legal. E, o que é mais, porque não raro da primeira eminência intelectual os sujeitos que a elaboram, depara sempre numerosos adeptos.
Todas as doutrinas, ainda as absurdas, têm lá seus fiéis sequazes. Não é muito, pois, que, também nos arraiais das ideias jurídicas, intrépidos vexilários alcem o estandarte de ruidosas polêmicas em derredor de um texto de lei.
O Direito, contudo, pregava Carlos Maximiliano, deve ser interpretado inteligentemente: “não de modo que a ordem legal envolva um absurdo, prescreva inconveniência, vá ter a conclusões inconsistentes ou impossíveis”[3].
II – A questão relacionada com a possibilidade jurídica de aplicar-se ao furto qualificado o privilégio do § 2º do art. 155 do Código Penal é das que fazem recrudescer as desinteligências que dividem o foro.
Reza, com efeito, o citado dispositivo legal que, “se o criminoso é primário, e é de pequeno valor a coisa furtada, o juiz pode substituir a pena de reclusão pela de detenção diminuí-la de um a dois terços, ou aplicar somente a pena de multa”. É o furto privilegiado.
Tratando-se de furto simples, será de rigor a aplicação do § 2º do art. 155 do estatuto penal, desde que presentes seus requisitos. Mais que faculdade do juiz, cuida-se aí de direito público subjetivo do agente, como anotou Celso Delmanto[4].
Todavia, se a aplicação da figura do privilégio aos casos de furto simples nenhuma dificuldade oferece, o mesmo não passa com respeito aos de furto qualificado, que, ao parecer de alguns juristas(e esses de alto merecimento), não na admitem.
Hoeppner Dutra é dos que interpretam restritivamente a norma do § 2º do art. 155, “verbis”: “O furto mínimo, pela índole do preceito, é crime privilegiado (delictum exceptum). A sua imediata colocação após o artigo caput, com o fim de reger a pena nele cominada, restringe o benefício à figura do furto simples”[5]. Igual doutrina traz o doutíssimo Nélson Hungria[6].
III – Hoje, no entanto, vem recebendo sufrágios numerosos a interpretação que estende o privilégio também ao furto qualificado.
Paulo José da Costa Jr., que é justamente contado entre os primeiros penalistas contemporâneos, discorreu nesta substância em escólio ao capítulo do furto: “Pela colocação do privilegium, logo abaixo do furto simples e do furto noturno, seria lógico restringir sua aplicação a ambasas modalidades. Entretanto, como a presente faculdade legal é mais um instrumental de que disporá o magistrado para melhor individualizar a pena, tem-se decidido pela sua aplicação mesmo em casos de furto qualificado. Satisfeitos os requisitos da primariedade e do pequeno valor, o benefício é automático”[7].
É opinião em que conspira também Damásio E. de Jesus: “Em princípio, como no homicídio, o tipo qualificado não afasta o privilégio. Entretanto, para que a causa de atenuação da pena do furto mínimo se aplique ao qualificado, além de seus requisitos legais, é necessário que o sujeito apresente antecedentes e personalidade capazes de lhe permitirem o benefício”[8].
Com este magistério, que se esforça no salutar princípio da socialização do Direito Penal, conformam-se venerandos julgados de todos os Tribunais do País.
Por esta craveira decidiu também nosso egrégio Tribunal de Alçada Criminal, como o demonstram os acórdãos a seguir transcritos por suas ementas:
a) “Em face do Direito vigente, a melhor interpretação é aquela que atende à finalidade da norma, e não apenas à ordem de colocação dos dispositivos no texto legal. Deste modo, há de prevalecer o critério teleológico na interpretação do § 2º do art. 155 do CP, fazendo jus ao tratamento privilegiado os condenados que se encontram nas condições desse dispositivo” (RJDTACrimSP, vol. 1, p. 107; rel. Souza Rego);
b) “O entendimento de que não se aplica o privilégio do § 2º do art. 155 do CP às formas qualificadas decorre de sua colocação na lei, portanto restrita, porém inexiste impedimento em sua aplicação analógica, em se tratando de casos excepcionais, tais como primariedade e bons antecedentes do réu, mesmo porque tal faculdade legal instrumentaliza mais o magistrado na individualização da pena” (Idem, vol. 17, p. 97; rel. Passos de Freitas);
c) “É possível a aplicação do privilégio, disposto no § 2º do art. 155 do CP, ao furto qualificado, sendo que a colocação topográfica dos parágrafos referentes às figuras qualificada e privilegiada não impede a adequação destas, de forma a melhor obedecer aos princípios de necessidade e suficiência de que trata o art. 59 do CP” (Idem, vol. 21, p. 174; rel. Abreu Machado).
Tal interpretação doutrinária, posto energicamente repelida pelo colendo Superior Tribunal de Justiça[9], vai adquirindo notável prestígio, assim na literatura como nos pretórios, pois responde ao intuito do legislador: evitar que as penas de curta duração, ineficazes as mais das vezes para a emenda do infrator primário, operem como verdadeiro fator criminógeno.
A razão no-la deu o eloquente Mirabeau, retratando o cunho deletério dos presídios: “O amontoamento de homens, como o de maçãs, gera a podridão”[10].
Notas
[1] Andava em causa a autoria deste livro singular: alguns o reputavam parto feliz do engenho de Vieira; outros davam por seu autor a Tomé Pinheiro da Veiga (cf. Inocêncio Francisco da Silva, Dicionário Bibliográfico Português, 1858, t. VIII, p. 329 a 331); quais o atribuíam à pena bem aparada de Antônio de Sousa Macedo (cf. Solidônio Leite, A Autoria da Arte de Furtar, 1917, p. 26); quais, à derradeira, juravam havê-lo escrito Manuel da Costa (cf. Arlindo Ribeiro da Cunha, A Língua Portuguesa, 1945, 3a. ed., p. 359). De presente, porém, está liquidada a questão: o verdadeiro autor da obra não é outro senão “o Pe. Manuel da Costa” (Roger Bismut, in Arte de Furtar, edição crítica, 1991, p. 24).
[2] Op. cit., 1652, p. 365.
[3] Hermenêutica e Aplicação do Direito, 1933, p. 183.
[4] Código Penal Comentado, 1986, p. 266.
[5] O Furto e o Roubo, 1955, p. 167.
[6] Cf. Comentários ao Código Penal, 1980, t. VII, p. 32.
[7] Direito Penal Objetivo, 1a. ed., p. 279.
[8] Código Penal Anotado, 1995, p. 480.
[9] Cf. RJDTACrimSP, vol. IV, pp. 243-244, que tirou à luz veneranda decisão do STJ. Seu relator (o Senhor Ministro William Patterson) autorizou-a com nove arestos daquela alta Corte de Justiça, nos quais se afirma “inadmissível a incidência do privilégio do § 2º do art. 155 do CP às formas qualificadas de furto”.
[10] Apud Hoeppner Dutra, op. cit., p. 163.