Algumas anotações sobre o dever de reparar e da liquidação da obrigação

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25/07/2019 às 11:44
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III – AS FORMAS DE LIQUIDAÇÃO

Discute-se a forma da liquidação.

A liquidação consiste em traduzir o dano em prestação pecuniária, e é o mais frequente, porque as mais das vezes não será viável a recomposição da coisa ou a prestação de fato especificamente.

A liquidação, que constitui um complemento do título judicial ilíquido, se faz por meio de decisão declaratória, cujos limites devem ficar circunscritos aos limites da sentença liquidanda, não podendo ser utilizada como meio de impugnação ou de inovação do que foi decidido no julgado (art. 509, § 4º, CPC/2015). Apenas os denominados pedidos implícitos, tais como juros legais, correção monetária e honorários advocatícios, podem ser incluídos na liquidação, ainda que não contemplados na sentença. Objetiva-se afirmar o quantum devido e não o quid.

A iliquidez pode ser total ou parcial. É totalmente ilíquida a sentença que, em ação de reparação de danos, apenas condena o vencido a pagar lucros cessantes (o que razoavelmente deixou de ganhar) referentes aos dias em que o veículo ficou parado. No caso de iliquidez parcial, poderá o credor (ou o devedor), concomitantemente, requerer o cumprimento da parte líquida nos próprios autos, e a liquidação da parte ilíquida, em autos apartados (art. 509, § 1º, CPC/2015).

O CPC de 2015 contempla duas formas de liquidação: por arbitramento e pelo procedimento comum. A diferença entre estas e as formas previstas no Código de 1973 (por arbitramento e por artigos) é apenas de nomenclatura. De acordo com o CPC/1973, na liquidação por artigos observa-se o procedimento adotado no processo do qual se origina a sentença. É possível, portanto, que a liquidação se realize pelo rito comum sumário ou pelo rito comum ordinário. Como o CPC/2015 prevê um procedimento único para todas as ações de conhecimento, a liquidação de sentença que dependa da prova de fatos novos somente será possível com utilização do procedimento comum.

Far-se-á a liquidação por arbitramento quando (art. 509, I, CPC/2015):

a) determinado pela sentença ou convencionado pelas partes: a convenção das partes, geralmente, é anterior à sentença e nela contemplada;

b) o exigir a natureza do objeto da liquidação. Aplicam-se à liquidação por arbitramento as normas sobre a prova pericial (art. 510, CPC/2015), que, como se sabe, consiste em exame, avaliação ou vistoria. Exame consiste na inspeção para verificar alguma circunstância fática em coisa móvel que possa interessar à solução do litígio. Vistoria é a inspeção realizada em bens imóveis. Avaliação tem por fim a verificação do valor de algum bem ou serviço.

O credor ou o devedor requererá liquidação por meio de simples petição. O juiz determinará, então, a intimação para a apresentação de pareceres ou documentos elucidativos, na tentativa de apurar o quanto devido. No mesmo despacho, caso não possa decidir de plano, nomeará perito, fixando o prazo para entrega do laudo.

Note que o novo Código permite que as próprias partes apresentem os documentos e pareceres necessários à apuração do quantum debeatur sem a necessidade de prévia nomeação de perito (art. 510, primeira parte). Somente quando o juiz, de posse dos elementos apresentados pelos interessados, não puder decidir de plano o valor da condenação, será possível a produção de prova pericial.

A decisão proferida no procedimento liquidatório tem natureza interlocutória, razão pela qual cabível o recurso de agravo de instrumento (art. 1.015, parágrafo único, CPC/2015).

O agravo de instrumento, de regra, não tem efeito suspensivo. Assim, a menos que o relator imprima tal efeito ao recurso, a execução prescinde aguardar o julgamento do agravo interposto contra a decisão que pôs fim à liquidação.

Finalizada a liquidação, pode o credor partir para a execução da sentença, podendo ser provisória ou definitiva. Definitiva, se a sentença transitou em julgado (art. 523, CPC/2015); provisória, caso a sentença tenha sido impugnada por recurso desprovido de efeito suspensivo (art. 520, CPC/2015).


IV -– AS PERDAS E DANOS

O Código Civil estatuiu, como se viu, que sobrepondo-se a qualquer modalidade de liquidação da obrigação, a regra genérica dos efeitos da obrigação que tanto no que concerne a que vem ex contractu, quanto nas ex delicto.

Sabe-se do Digesto, Livro 46, Título VIII, fr. 13) que o devedor, sujeitando-se às perdas e danos, deve-as às inteiras, compreendendo o damnun emergens e o lucrum cessans. Na categoria do dano emergente situa-se aquilo que o ofendido efetivamente perdeu em consequência do fato danoso. Na classe do lucro cessante, aquilo que razoavelmente deixou e ganhar, como enunciado por Paulus.

A vítima somente tem direito ao ressarcimento ao dano direto e concreto, em qualquer caso. O dano indireto ou remoto, como o dano hipotético, não pode ser objeto de indenização, ainda que o fato gerador seja o procedimento doloso do reus debendi.

Mas essa reparação não pode transformar-se em motivo de enriquecimento. Apura-se o quantitativo do ressarcimento inspirado no critério de evitar o dano(de damno vitando), não, porém, para proporcionar à á vítima um lucro(de lucro capiendo). Diz-se que ontologicamente subordina-se ao fundamento de restabelecer o equilíbrio rompido, e destina-se a evitar o prejuízo. Há de cobrir a totalidade do prejuízo, porém, limita-se a ele. A indenização é colocar alguma coisa no lugar daquilo de que a vítima foi despojada, em razão do dano. Se ressarce o dano, não se lhe pode aditar mais do que pelo dano foi desfalcado o ofendido. No caso de a prestação em espécie ser viável(res in loco rei), cabe ao prejudicado persegui-la acrescida de juros, como ensinou Lalou(Responsabilité Civile, n. 62). Não sendo possível a obtenção específica da res debita, a vítima faz jus a um valor que a substitua em toda a plenitude.


V – O DANO MORAL

Louve-me da lição de Sérgio Cavalieri Filho(Programa de Responsabilidade Civil, 9ª edição revista e ampliada, São Paulo, Atlas, pág. 82) para quem se pode conceituar o dano moral por dois aspectos distintos. Em sentido estrito, dano moral é a violação do direito à dignidade. Por essa razão, por considerar a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem corolário do direito à dignidade que a Constituição inseriu em seu artigo 5º, V  e X, a plena reparação do dano moral.

Sendo assim qualquer agressão à dignidade pessoal que lesiona à honra, constitui dano moral e é indenizável. ¨

É a linha do pensamento trazido pelo Ministro Cézar Peluso, no julgamento do RE 447.584/RJ, DJ de 16 de março de 2007,  onde se acolhe a proteção do dano moral como verdadeira tutela constitucional da dignidade da pessoa humana, considerando-a como um autêntico direito à integridade ou incolumidade moral, pertencente à classe dos direitos absolutos.

Por outro lado, o Superior Tribunal de Justiça, em decisão da lavra da Ministra Denise Arruda, Primeira Turma, REsp 910.794/RJ, DJe de 4 de dezembro de 2008, RSTJ volume 213, pág. 155,  deixou claro que não merece prosperar a tese de que o recém-nascido não é apto a sofrer dano moral por não possuir capacidade intelectiva para avaliá-lo e sofrer abalos psíquicos. Isso porque o dano moral não pode ser visto sob o enfoque puramente psíquico, que depende de relações emocionais da vítima, pois o que interessa é a tutela da dignidade, fundamento central dos direitos humanos que deve ser protegida e, quando violada, sujeita à reparação devida

Como configura-se o dano moral?

Penso que deve-se levar em conta a lógica do razoável, na busca dessa configuração. Assim mero dissabor, aborrecimento, mágoa, irritação ou sensibilidade exacebada estão fora do âmbito do dano moral.

Exige-se uma manifestação intensa a ponto de romper o equilíbrio psicológico do indivíduo.

Necessário a prova do dano moral.

Ainda é Sérgio Cavaliere Filho(obra citada, folhas 90) quem diz:

¨Neste ponto a razão se coloca ao lado daqueles que entendem que o dano moral está ínsito na própria ofensa, decorre da gravidade do ilícito em si. Se a ofensa é grave e de repercussão, por si só justifica a concessão de uma satisfação de ordem pecuniária ao lesado. Em outras palavras, o dano moral existe in re ipsa; deriva inexoravelmente deo próprio fato ofensivo, de tal modo que, provada a ofensa, ipso facto está demonstrado o dano moral à guisa de uma presunção natural, uma presunção hominis ou facti, que decorre das regras da experiência comum.¨

Assim o dano moral decorre da gravidade do próprio fato ofensivo, de sorte que provado o fato, provado está o dano moral.

Mas em havendo responsabilidade civil do Estado será necessário provar que o comportamento omissivo decorreu de culpa ou dolo.

Bem disse Celso Antônio Bandeira de Mello(Curso de Direito Administrativo, 17ª edição, São Paulo, Malheiros, pág. 895) que quando o dano foi possível em decorrência de uma omissão do Estado(o serviço não funcionou tardia ou ineficientemente) é de aplicar-se a teoria da responsabilidade subjetiva.

Só faz sentido responsabilizá-lo se não cumpriu o dever legal que lhe impunha obstar ao evento lesivo.

Necessário provar que o Estado agiu por negligência, imprudência ou imperícia(culpa) ou então agiu com o deliberado propósito de violar a norma que o constituía em dada obrigação(dolo).

Bem ainda sintetiza Celso Antônio Bandeira de Mello(obra citada, pág. 897):

¨se o Estado, devendo agir, por imposição legal, não agiu ou o fez deficientemente, comportando-se abaixo dos padrões legais que normalmente deveriam caracterizá-lo, responde por esta incúria, negligência ou deficiência, que traduzem um ilícito ensejador do dano não evitado quando, de direito, devia sê-lo. Também não o socorre eventualmente incúria em ajustar-se aos padrões devidos.¨

A deficiência foi, sem dúvida culposa, não se admitindo que a Administração que podia cumprir-lo antes, não a fizesse, levando o menor, ofendido em sua dignidade, a esperar de forma interminável por um tratamento do Estado.

Tal se configurou numa humilhação dolorosa e frustrante dada a inércia do Estado. Veja-se o exemplo de um menor, que estava em hospital público, com evidente risco de vida, na espera interminável de tratamento pela Administração, levando sua mãe a angústia de ver o tempo passar e seu filho não resistir. Não se fala apenas na aflição da mãe, fala-se na triste espera de um menor recém-nascido por uma cirurgia que se afigura urgente e necessária.

Não se trata aqui de falar-se em dano moral coletivo. Fala-se num dano moral individual, envolvendo pessoa certa hipossuficiente, em juízo tutelada pelo Parquet, em sua missão constitucional.

Repito que o que está em discussão é a dignidade da pessoa humana. Trago a lição do Ministro Luiz Fuz, no RMS24197/PR, DJe de 24 de agosto de 2010, quando disse que a ordem constitucional, à luz do artigo 196 da Constituição Federal, consagra o dever do Estado, que deverá por meio de políticas sociais e econômicas propiciar aos necessitados não qualquer tratamento, mas o tratamento mais adequado, capaz de dar ao paciente maior dignidade sofrimento menor.

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No caso, a conduta da Administração levou ao paciente a sofrimento maior, quando devia agir com maior celeridade para um tratamento mais adequado ao caso.

.A  matéria com relação a dano moral coletivo já foi objeto de apreciação no julgamento do Recurso Especial nº 598281/MG, Relator Ministro Teori Zavascki, DJ de 01 de junho de 2006, pág. 147. Há uma absoluta incompatibilidade do dano moral com a indeterminção que se exige para o dano moral coletivo.

Está sepultada de maneira absoluta e sem reservas a tese reacionária que inadmitia o dano moral. Modernamente admite-se a tese da reparabilidade do dano moral difuso, coletivo ou individual homogêneo. Aceitamos o conceito de um patrimônio moral transindividual na linha já traçada por André de Carvalho Ramos(A ação civil pública e o dano moral coletivo).

Colaciono importante decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, na Ap. Civil nº 5943/94, 2ª Câmara, TJRJ, Relator designado Desembargador Sérgio Cavalieri Filho, in Revista de Direito do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, n.26, 1996, Degrau Cultural, p.225 – 231, quando lembra que o Código de Defesa do Consumidor coloca entre os direitos básicos do consumidor(toda pessoa física ou jurídica) a efetiva reparação de danos patrimoniais e morais individuais, coletivos e difusos

. A Lei nº 8.078/90 previu a possibilidade de reparação dos danos materiais ou morais tanto do indivíduo como dos danos coletivos, que atinjam um grupo de pessoas. Admite-se que os entes coletivos possam ser atingidos moralmente, assegurando-se a indenização correspondente.

Dir-se-á que o dano moral é incomensurável, mas isso não pode ser óbice à aplicação do direito e a sua justa reparação. A reparação moral deve se utilizar dos mesmos instrumentos da reparação material, já que os pressupostos(dano ou nexo causal) são os mesmos. A destinação de eventual indenização deve ser o Fundo Federal de Direitos Difusos previsto na Lei nº 7.347. O Código de Defesa do Consumidor contempla a indenização do dano moral, no art. 6º, incisos VI e VII, ao dizer que são direitos básicos do consumidor, dentre outros, a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais, morais, individuais, coletivos e difusos; e o acesso aos órgãos judiciários e administrativos, com vistas à prevenção ou reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos, assegurada a proteção jurídica, administrativa e técnica dos interessados.

 Da mesma sorte o Estatuto da Criança e do Adolescente. A Constituição Federal, no art. 37, § 6º, da Constituição Federal estabelece a responsabilidade civil do Estado por ato de seus agentes de ordem patrimonial e moral. Se o Estado gera dano, produz evento lesivo, é caso de responsabilidade objetiva. Discussão há com relação aos danos por omissão do Estado. Para Celso Antônio Bandeira de Mello(Curso de Direito Administrativo, São Paulo, ed. Malheiros, 6ª edição, pág. 515) quando o dano foi possível em decorrência de uma omissão do Estado(o serviço não funcionou, funcionou tardia ou ineficientemente) é de aplicar-se a teoria da responsabilidade subjetiva, observando-se a dupla modalidade que é dolo ou culpa.

No dano moral coletivo, da mesma forma que no dano moral de natureza individual, a responsabilidade, segundo a doutrina(Xisto Tiago de Medeiros Neto, Dano Moral coletivo,  pág. 152) independe da configuração de culpa, decorrendo do próprio fato da violação como expressão do desenvolvimento da responsabilidade objetiva.

Sintetiza-se a posição da doutrina no Brasil no sentido de que o regime jurídico baseado na culpa não se adapta à responsabilidade por danos causados a bens e interesses coletivos difusos, admitindo-se que, em tal sede, a responsabilidade seja objetiva no que concerne aos interesses metaindividuais. Lembro que o quantum, nos casos de destinação da parcela quanto a interesses coletivos e difusos, que se propõe para tanto, será revertido para o Fundo de Bens Lesados(Fundo de Defesa de interesses difusos – Lei nº 9.008, de 24 de julho de 1985, que trata o art. 13 da Lei nº 7.347, e será apurado por liquidação de sentença, isto porque estamos diante de interesses indivisíveis. Já no que concerne a condenação por danos morais oriundos de lesão a direitos individuais homogêneos, a parcela pecuniária será direcionada a cada um dos indivíduos favorecidos na demanda e que vierem a comprovar, em juízo, tal condição.

 Quanto a prova, André de Carvalho Ramos(A ação civil pública e o dano moral coletivo, Revista de Direito ao Consumidor, nº 25 – janeiro/março de 1998, Instituto Brasileiro de Política e Direito ao Consumidor) chega a dizer, de forma extremada, que o dano moral coletiva goza de presunção absoluta. Data vênia o que se há de comprovar é a existência de um quadro fático presumivelmente propício segundo um critério de razoabilidade.

Já o Anteprojeto do Código de Obrigações de 1941, ao deixar ao juiz o poder de fixar a reparação, fazia-o acompanhar da recomendação de que seria “moderadamente arbitrada”(artigo 181). Após, no Projeto de Obrigações de 1965 do Professor Caio Mário da Silva Pereira, manteve-se o mesmo princípio segundo o qual no caso de dano simplesmente moral, o juiz irá arbitrar moderada e equitativamente a indenização(artigo 879). O projeto do Código Civil de 2002, de 1975, Projeto 634 – B, abrangendo no conceito amplo de ato ilícito o dano ainda que exclusivamente moral(artigo 186), não cogitou de sua limitação nem recomendou seja moderado o ressarcimento. Isso não impede que o juiz proceda que a indenização, em termos gerais, não pode ter o objetivo de provocar o enriquecimento ou proporcionar ao ofendido um avantajamento, por mais forte razão deve ser equitativa a reparação do dano moral para que não se converta o sofrimento em móvel de captação de lucro.

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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